No atual momento histórico, está ocorrendo um acelerado processo para tornar a água propriedade privada de empresas multinacionais. Na última quarta-feira (24), por 65 votos favoráveis e 13 contrários, o Senado Federal aprovou a lei 4.162/2019, que trata da privatização do setor de saneamento no Brasil. O texto agora aguarda sanção presidencial.
Segundo a nova lei, a partir de março de 2022, todos contratos de prestação de serviços de saneamento (o que inclui distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto e resíduos) existentes entre os municípios brasileiros e as estatais de saneamento, em sua maioria, poderão ser revisados e reavaliados.
Ao invés de continuarem a existir os contratos de programa, será obrigatório a realização de editais de licitação entre empresas públicas e privadas, que poderão acarretar, em menos de dois anos, na privatização da maioria dos serviços de saneamento no país.
Isso significa que, se antes, a privatização era uma possibilidade dentro da legislação do saneamento, agora, tornou-se quase que uma obrigação, no novo marco legal.
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As empresas estatais só poderão renovar os contratos se conseguirem comprovar que possuem viabilidade financeira e técnica para gerir os serviços por 30 anos. A nova lei também determina que a Agência Nacional das Águas (ANA) passe a ser a única responsável pelas normas de referência da regulação dos serviços de saneamento, incluindo a adoção do escalonamento tarifário em todas as contas de água.
Além desta nova lei, existe também a proposta de criação de mercados de águas, por meio do PL 495/2017, em tramitação no Senado, que buscará privatizar a Transposição do Rio São Francisco e de outras bacias hidrográficas, bem como, a possível venda da Eletrobras, com a outorga de 47 lagos hidrelétricos.
Também está em discussão no setor elétrico a aprovação do mecanismo de separação de lastro e energia, que irá impor um preço na água dos reservatórios e vinculará o preço da água ao preço da energia, tornando algo que hoje não está monetizado ao valor potencial da água para produção de energia elétrica. Ao bebermos água, pagaremos como se estivéssemos bebendo eletricidade.
Mas, qual a relação entre todas essas iniciativas? Tudo isso faz parte de uma grande estratégia do capital que visa transformar a água em mercadoria e propriedade privada, em todo território nacional.
Neste sentido, a aprovação do PL 4.162 simboliza não só uma grande perda de nossa soberania, enquanto povo brasileiro, mas também uma maior possibilidade de avanço de todas as outras pautas neoliberais, em tramitação no Congresso, que dizem respeito a implementação da estratégia do capital sobre toda a água existente Brasil.
Transposição do São Francisco
A transposição do Rio São Francisco, também chamada de “Projeto de Integração de Bacias”, foi anunciada durante muitos anos como uma das principais soluções para resolver o problema da falta de acesso à água no Nordeste, e tem como principal objetivo ligar as águas do Velho Chico, em Pernambuco, com águas dos estados do Ceará, Rio grande Norte e Paraíba.
Trata-se de uma obra de infraestrutura gigantesca que possui dois eixos que captam as águas do São Francisco para elevar de forma mecânica o eixo norte, a partir de Cabrobó (PE), com extensão de 400 km e uma altura de 188 metros, e o eixo leste, que possui uma extensão de 217 km e 332 metros de altura. Sem falar nas dezenas de quilômetros que as águas devem percorrer nas respectivas bacias receptoras. Tudo isso agora está ameaçado de se tornar um negócio particular de grandes empresas multinacionais.
Parte desta grande obra foi inaugurada nesta sexta-feira (26), na região de divisa entre os estados de Pernambuco e Ceará, por Jair Bolsonaro, que tem atacado de forma desrespeitosa e neofascista os nordestinos e incentivado o surgimento de novos casos da covid-19 no Brasil, ignorando totalmente protocolos técnicos e orientações dos organismos de saúde. Indigno, portanto, de inaugurar qualquer obra, quiçá esta, com envergadura histórica e estratégica, no nordeste do país.
A região nordeste tem uma população de mais de 57 milhões de habitantes, de acordo com o último censo, com o total de nove estados, e caracteriza-se por possuir um clima quente e seco, e a maior parte da região semiárida, com pouca variação de temperatura durante o ano, sendo, portanto uma das regiões do Brasil com menor distribuição e acesso à água e saneamento.
Transportar água para garantir o seu acesso (ou consumo) em locais longínquos e secos do nordeste sempre foi uma promessa e um grande sonho do povo nordestino. No entanto, atualmente, há muitas contradições, conflitos e disputas em torno da água da transposição do Rio São Francisco que precisamos olhar de perto.
Se por um lado a transposição pode ser a solução para que o povo trabalhador tenha acesso ao direito à água, de forma digna e plena tal como foi prometido, por outro lado, esta pode ser a via pelo qual se realizará os planos do capital, caso seja aprovado o PL 495/17, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
O mercado da água
O PL 495, em tramitação no Senado, diz que é preciso criar mercados de água em bacias hidrográficas brasileiras sob a alegação de que esta é a forma de haver uma atribuição eficiente dos recursos hídricos. No projeto, a Bacia do Rio São Francisco é citada como território potencial para criação de mercados de águas, por apresentar recorrentes casos de conflitos pelo uso dos recursos hídricos, no Nordeste.
Na nossa compreensão, a criação de um mercado da água significa permitir que grandes grupos econômicos, que atuam tanto no agronegócio, setor elétrico, mineração e saneamento, como Ambev, Vale, Suez, Coca-Cola, BTG Pactual, Itaú, AEGEA, BRK Ambiental, controlem e se apropriem de forma privada dos rios e das águas subterrâneas do Brasil, por meio do que eles chamam de “negociação sobre o direito de usos das reservas disponíveis de água”.
Na prática, isso será o estabelecimento da água como uma propriedade privada. O “excedente” de água, isto é, a água que não estiver sendo utilizada para produção de eletricidade poderá ser vendida no mercado livre pela própria empresa que detém a outorga, gerando um mercado de compra e venda de água em períodos de escassez e estiagem.
Se isso acontecer, ao invés de garantir a universalização do acesso à água, o que ocorrerá é a proibição do acesso e a total exclusão do direito à água para o povo. As pessoas ficarão proibidas de acessar gratuitamente qualquer fonte de água nos rios, lagos e açudes. Além disso, as tarifas de água vão explodir pois, além da privatização dos serviços de saneamento, o preço a ser cobrado pelo metro cúbico (m³) de água passará a ser medido conforme o preço da energia elétrica aplicada pelo mercado, causando mais sede e aumento nos custos de vida da população.
Assim, também aumentará a destruição de nascentes e de rios inteiros e o desmatamento de regiões ribeirinhas e áreas de preservação, além da destruição da soberania do país, com entrega de bens do povo brasileiro ao controle de empresas transnacionais, bancos e fundos internacionais de investimento. Ou seja, a água passará ao controle do capital financeiro.
Desta forma, nós entendemos que, é necessário fortalecer a luta contra toda e qualquer forma de privatização da água, seja a privatização do setor de saneamento ou dos rios e aquíferos brasileiros.
A água é do povo, é um patrimônio brasileiro e deve ser um direito de toda a humanidade, e não um recurso a ser mercantilizado para atender os interesses do capitalismo.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) reafirma: “a privatização da água faz mal ao Brasil!”
*Dalila Calisto e José Josivaldo Alves integram a Coordenação Nacional do MAB
Edição: Geisa Marques