MARCAS DO GOLPE

Prefeita boliviana repudia retrocesso de Áñez e defende desenvolvimento com Luis Arce

"Acredito que a Bolívia viveu um retrocesso de mais de 70 anos"

São Paulo (SP) |
"Acredito que teremos de ir às urnas e eleger um governo democraticamente" - El dia Digital

*com Mariano Vazquez

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Após anúncios contraditórios, a presidente interina da Bolívia, Jeanine Áñez anunciou que promulgaria a lei que estabelece as eleições em 6 de setembro, doze dias após ser sancionada pelo Senado. 
A decisão foi tomada após dois meses de manifestações políticas por novas eleições, por meio dos "petardazos", manifestações com fogos de artifício realizadas todos os domingos no país.

 A prefeita de Vinto, Patricia Arce, teve sua imagem mundialmente conhecida no dia 6 de novembro do ano passado ao ser espancada e arrastada pelas ruas, obrigada a caminhar de pés descalços, tendo o cabelo cortado e manchado pelos que, desrespeitando as urnas, afastaram o presidente Evo Morales. O presidente deposto é agora chefe de campanha do Movimento pelo Socialismo (MAS), pela qual Arce é candidata ao Senado.

"Será difícil, sabemos, mas não vou me calar, inclusive vou recorrer a organismos internacionais se necessário para garantir que seja feita Justiça, caso não encontre resposta no meu país", afirma Arce.

Ela denuncia que continua sendo perseguida pelo governo da autoproclamada Jeanine Áñez, a quem denuncia por “corrupção e irresponsabilidade no combate à pandemia”. Patricia Arce reitera a necessidade da eleição do candidato do MAS à presidência no próximo dia 6 de setembro. “Luis Arce é saúde e desenvolvimento, Áñez é retrocesso, agressão e morte”, sintetiza.

Como prefeita de Vinto, você denunciou a barbárie dos fascistas bolivianos e a manipulação da mídia em favor de sua desumanidade. De todo o trágico daquele dia, onde queimaram a Prefeitura, lhe cortaram o cabelo, a arrastaram e espancaram, o que mais lhe doeu?

Creio que é o fato de que, diante de tudo o que aconteceu, fartamente documentado e denunciado à Promotoria e aos organismos internacionais, até agora não ter havido nenhum avanço. É de não ter ocorrido nenhuma acusação formal dos envolvidos, em que pese termos dado todo o apoio necessário, feito as investigações por conta própria, conseguido vídeos e entregado nomes à Procuradoria. Porém, lamentavelmente, até o dia de hoje, não obtivemos nenhuma resposta.

O que realmente me deixa espantada é o fato do procurador do Estado, numa conferência que tivemos com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ter ouvido de uma deputada de direita a denúncia de que eu cometi um auto-atentado. E o que mais me surpreende é o fato desse mesmo procurador ter dado mais crédito à alegação de que eu tenha cometido semelhante barbárie. Foram por este caminho em vez de investigar a veracidade dos acontecimentos. É espantoso que, diante de tudo o que fizeram contra minha pessoa, autoridades pensem assim e se comportem desta maneira.

Diante de tudo o que ocorreu, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos inclusive pediu que fossem adotadas medidas de proteção para sua pessoa. Elas foram cumpridas?

De forma alguma, embora eles aleguem que as tenham adotado. Não foram cumpridas nenhuma das medidas de proteção solicitadas pela CIDH. Absolutamente nenhuma. E a Comissão não só pediu que fossem adotadas, como prorrogadas. Mas nada.

Você foi novamente atacada e sua casa invadida pela polícia com falsas acusações de violar a quarentena. A Justiça se pronunciou diante deste novo atropelo?

Não, tudo pelo contrário. Ao invés disso invadiram minha casa, arrancaram os meus filhos dos seus dormitórios, me expulsaram, roubaram as memórias das câmeras de segurança, sequestraram nossos telefones, nos levaram como se fôssemos delinquentes, nos fotografaram e prenderam. Num primeiro momento diziam que estávamos bebendo na minha residência, o que jamais puderam comprovar.

Fazíamos uma comemoração porque era o aniversário do meu filho mais velho. Por conta desta festa até fizeram um exame etílico, que deu zero grau alcoólico, e nem isso conseguiram provar. Como não havia álcool, disseram que eu estava tendo uma reunião com altos funcionários do Movimento Ao Socialismo (MAS), o que também não puderam demonstrar.

Diante destas acusações sem provas solicitei à Justiça para que pudesse ter acesso às câmeras de segurança, para poder ver quem entrou na casa aquele dia. Mas também para que pudessem ver como eles ingressaram, em nove carros, fortemente armados, alguns encapuzados, como se fosse uma enorme operação e nós estivéssemos cometendo um grande delito. Fomos levados presos e acusados de permitir que uma terceira pessoa ingressasse no local. Éramos nove pessoas, a maioria vivia na minha casa, um amigo que veio recolher um equipamento de biossegurança, e meu chofer.

Por uma acusação tão grosseira, uma punição tão desproporcional…

Foram duas noites horríveis que passamos atrás das grades. Levaram o meu filho menor de 16 anos para um centro de reabilitação onde lhe mantiveram preso junto a meninos que este dia haviam cometido uma tentativa de assassinato. Realmente foi a pior tragédia das nossas vidas. Já não temos segurança em nossa própria casa. E é lamentável porque nenhuma das autoridades, nem estaduais, nem nacionais, se manifestaram sobre este fato. Ao contrário, seguem querendo nos processar por violar a quarentena e por fazer mal à saúde.

Neste momento de profunda confrontação com as forças do atraso, qual é o significado de sua candidatura como mulher e anti-imperialista ao Senado?

Se vê que a intenção deles é buscar de qualquer forma e de todas as maneiras que eu desista da minha candidatura. Por isso não sofri somente com isso, mas com inumeráveis atropelos e todo tipo de processos para que joguemos a toalha. Mas não vou dar este gosto a eles, nem vou permitir que outras mulheres passem pelo que passei. É algo traumático. Realmente a dor que conseguiram causar, o dano psicológico e emocional aos meus filhos é imperdoável. Então estamos aí.

Da minha parte, comecei a processar a polícia porque cometeram atos de perseguição. Será difícil, sabemos, mas não vou me calar, inclusive vou recorrer a organismos internacionais se necessário para garantir que seja feita Justiça, caso não encontre resposta no meu país.

Como estão as eleições presidenciais?

Primeiramente é preciso dizer que o governo central tem utilizado a pandemia para querer nos amedrontar, nos silenciar, utilizando a existência do coronavírus como mecanismo político para calar a todos os opositores. Atualmente foi dito que as eleições deveriam ter ocorrido em maio, foram suspensas e transferidas para agosto e, agora, as forças políticas do meu país, junto com o órgão eleitoral, entraram em comum acordo e fixaram a nova data para 6 de setembro.

Então, a senhora Jeanine Áñez, que é a atual presidente transitória, declarou num primeiro momento que iria promulgar a lei, mas agora já disse que não vai fazer. Então estamos esperando que se cumpram os dez dias úteis necessários para que a presidente faça as suas observações. [Fruto de um acordo entre todos os partidos, o Projeto de Lei 691 foi aprovado no dia 9 de junho em sessões da Câmara e do Senado, e na presença do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Salvador Romero]. Nesta semana, elas retornarão ao Senado e então, certamente, será promulgada a lei.

O processo está na reta final

Eu vejo com muita esperança a candidatura à presidência de Luis Arce Catacora, não só como uma resposta aos problemas que estamos vivendo na economia – por tudo que já fez como ministro do companheiro Evo Morales, pelo desenvolvimento proporcionado ao país -, mas como resposta ao drama da saúde, pelas imensas dificuldades que estamos vivendo.

Nos primeiros 70 dias em quarentena ainda pensávamos que o governo central poderia se preocupar em equipar nossos hospitais com aparelhos, oferecer kits de biossegurança e de combater a propagação da enfermidade. Infelizmente, os dias se passaram, a quarentena se expandiu com o contágio descontrolado e nos encontramos assim. Agora se fala em fazer um novo isolamento. Para enfrentar esta situação, a maior parte da população vê Luis Arce como uma solução e como uma saída a este problema que a Bolívia está vivendo.

Quais medidas foram tomadas pelo governo da autoproclamada para enfrentar o trágico aprofundamento da pandemia, além da corrupção, como no caso da compra dos respiradores?

Posso falar como prefeita, já que todos os prefeitos estão enfrentando o mesmo dilema por não termos recebido nenhum tipo de ajuda do governo central. Nenhuma ajuda para combater uma pandemia desta magnitude. Estamos enfrentando com recursos próprios, tivemos que fazer algumas reformulações, o que é lamentável, porque não há nem mesmo uma normativa, sequer uma restrição.

E isso pode ser visto desde uma máscara, que pode custar 5 bolivianos ou 15 bolivianos, pois não há quem normatize o preço de nada. As clínicas privadas estão especulando e o governo central não dirige absolutamente nada, não tem um plano de ações para combater a pandemia. Na realidade só o que temos visto é a multiplicação de casos de corrupção, cada vez mais lamentáveis.

De concreto, prometeram que iriam chegar 500 respiradores e até o dia de hoje não vimos um único. Aliás, os que foram vistos não serviam para as Unidades de Terapia Intensiva (UTI).

A partir de tudo isso colocaram em prisão domiciliar o envolvido em corrupção [o ex-ministro da Saúde, Marcelo Narvajas, responsável pela compra de 170 respiradores superfaturados de US$ 7 mil por mais de US$ 27 mil, causando um prejuízo de mais de US$ 3 milhões aos cofres públicos], enquanto há companheiras que estão injustamente em prisões, como Patricia Hermosa, encarcerada por ser a chefe de gabinete de Evo.

Vale lembrar que quando a detiveram, Patrícia estava grávida. É lamentável como o seu processo vem sendo manejado e manipulado pela Justiça. Na realidade, estão usando a pandemia para poder aterrorizar, amedrontar, para também poder prender muita gente que não divide suas ideias, que não compartilha da sua ideologia.

Esta é a dor que estamos vivendo aqui. Não há liberdade de expressão, há pessoas que pelo simples fato de escrever ou se manifestar em redes sociais foram punidos e encarcerados. É uma lástima tudo o que estamos vivendo em nosso país.

Especificamente para as mulheres, o que vem significando estes meses de Áñez no poder?

Acredito que a Bolívia viveu um retrocesso de mais de 70 anos, porque não consigo compreender como uma mulher estando na cabeça do executivo possa ter tanto ódio, tanto rancor. Acredito que não é coerente, nem nada ético ou moral, brincar com a saúde de outra mulher, como fez com a vida de Patricia Hermosa, chegando ao ponto de fazê-la perder seu filho. Foi presa pelo simples fato de ser a chefe de gabinete do presidente, e Evo continuará sendo nosso presidente, porque ganhamos as eleições em outubro de 2019.

Patricia Hermosa, chefe de gabinete do presidente Evo Morales, foi presa de forma completamente arbitrária enquanto estava grávida e perdeu o bebê

Foi extremamente grave o que fizeram com Patricia, porque poderiam fazer com qualquer mulher, poderiam ter feito comigo. É por isso que queremos que estes atos não fiquem impunes. E seguiremos denunciando porque hoje se trata de Patricia Hermosa, de Patricia Arce, mas se seguimos com esse governo logo poderia tratar-se de qualquer outra Patricia.

Pelos massacres de Senkata e Sakaba, onde mataram 35 bolivianos, as tropas do exército e da polícia militar permanecem impunes, assim como os que ordenaram a ação. O que deve ser feito para que o país retome sua trajetória democrática e restabeleça a verdade histórica?

Acredito que teremos de ir às urnas e eleger um governo democraticamente. Deve ser assim. Não há outra forma, esta é a única solução. Porque o que temos visto até os dias de hoje são pessoas mortas e feridas, sem que ninguém seja responsabilizado por isso. Temos visto bastante corrupção e não há nenhum detido. E isso continuará assim se seguirmos com esse regime.

Uma última mensagem ao grande número de bolivianos que vivem na Argentina e no Brasil e que votaram massivamente no MAS nas últimas eleições

Gostaria de fazer um chamamento a todos os irmãos bolivianos que se encontram na Argentina e no Brasil, mas também nos demais países, que é importante que vão às urnas, que participem do processo eleitoral, porque está em jogo o futuro do nosso país.

Nos custou 14 anos para recuperar a democracia, para recuperar nossos recursos naturais, e nestes poucos meses estamos a ponto de perder tudo, a ponto de voltarmos a ser o país mais pobre. Realmente este golpe de Estado é resultado da luta de classes, da disputa ideológica, da luta pela propriedade do lítio, pois sabemos muito bem que a Bolívia tem a maior reserva desta riqueza no mundo. Precisamos participar das eleições desde onde nos encontramos, pois somos responsáveis do que irá acontecer. Está em nossas mãos o futuro da nossa Bolívia.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Pedro Carrano