Talvez possamos resgatar os nomes que não são erros e expor seu exemplo ao sol das cidades
Na temporada de matar estátuas ou, mais precisamente, o que elas encenam sobre seus pedestais ao jogarem dia e noite na cara dos transeuntes a infâmia da escravidão, da tortura e do assassinato, é bom falar das homenagens que ninguém lembrou, dos vultos que se dissipam na névoa da História, da carne que não se converteu em bronze. De quem merecia ser estátua. Alguém, por exemplo, que impediu o bombardeio de uma cidade, evitando a morte de centenas ou milhares de pessoas.
Dois episódios esclarecem do que se trata. No primeiro deles, o massacre acontece, devastador. A ação começa com a decolagem de 30 aviões da base aérea de Morón. É uma quinta-feira, 16 de junho, e falta um punhado de minutos para a uma da tarde. Seu destino é a Plaza de Mayo, coração de Buenos Aires, diante da Casa Rosada, onde se juntou uma multidão para apoiar o governo popular de Juan Domingo Perón. Na fuselagem de cada um, o desenho da cruz encimado por V, significando “Cristo Vence”. É o começo de um golpe militar.
Durante a tarde despejam toneladas de bombas de 50 e de 100 quilos. As primeiras atingem um carro e matam seis crianças. Ao fim de quatro horas de explosões, incêndios e rajadas de metralhadora, restam 308 mortos, um número impreciso de feridos e muitos corpos despedaçados e carbonizados, nunca identificados. Perón rechaça e derrota o golpe. Mas por pouco tempo. Será derrubado naquele mesmo ano de 1955. Não se sabe se os resistentes da Plaza de Mayo ganharam estátua.
Seis anos depois, no Brasil, prepara-se outro ataque aéreo à outra sede de governo, cercada por uma multidão e numa praça central de uma cidade. É a mesma inspiração. Às seis horas da manhã de 28 de agosto de 1961, tudo está pronto para a decolagem, desde a base aérea de Canoas, de 12 aviões Gloster Meteor, armados com bombas de até 250 quilos. Receberam as ordens do general Orlando Geisel, chefe de gabinete do ministro da Guerra, Odílio Denys. Também é um golpe militar.
A esquadrilha vai bombardear o palácio Piratini, região central de Porto Alegre, onde o governador Leonel Brizola está entrincheirado. Protegido por tropas da Brigada Militar, dispõe-se a resistir e assegurar a posse de João Goulart, legal e legítimo presidente após a renúncia do titular Jânio Quadros. Será uma chacina até porque, como na Argentina, a praça está tomada pelo povo. Mas não se consumará porque os aviões não decolarão. Seus pneus foram esvaziados, as bombas desarmadas e sacos de areia estão espalhados na pista. Rebelados, os sargentos da base, apoiados por alguns oficiais, impedem a tragédia.
Alguns brasileiros conhecem o gesto de bravura mas poucos sabem do nome dos seus autores. Nunca se saberá quantas vidas salvaram. Não são nome de avenida, praça ou estátua. Ninguém se importou.
Adiaram a ditadura que se seguiria ao bombardeio que não houve. Mas chegaria três anos depois com seus marechais, generais, brigadeiros, almirantes, coronéis e delegados de polícia, poucos deles com a coragem posta à prova. Seriam bajulados com ruas, praças, viadutos, pontes, monumentos, rodovias, cidades e até escolas. Para nossa vergonha, seus nomes continuam lá.
Há quem diga que não vale a pena erguer monumentos. “Um erro em bronze é um erro eterno”, escreveu o poeta Mário Quintana. Temos nossa vida urbana povoada por muitos desses erros eternos. O levante nos Estados Unidos e na Europa anda removendo alguns de seus erros das praças para ocultá-los em salas sombrias. É um caminho possível. Continuarão eternos mas na escuridão. E talvez possamos resgatar da escuridão da memória nacional, os nomes que não são erros e expor seu exemplo ao sol das nossas cidades.
Edição: Rodrigo Durão Coelho