Diálogo

"Problemas rotineiros de casais ganham lente de aumento na pandemia", diz psicólogo

Na entrevista ao Programa Bem Viver, Lúcio Costa faz análise e dá dicas sobre como lidar e cuidar do relacionamento

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Dados do Google mostram que a busca pela expressão “divórcio on-line” saltou 10.000 % somente na segunda quinzena de abril - Zoriana Stakhniv/Unsplash

O contexto gerado pela pandemia do coronavírus e a rotina de confinamento familiar viraram tema recorrente na boca dos brasileiros, em especial dos que se mantêm em esquema de home office. Com isso, a intensa convivência entre os casais entrou para a lista dos desafios do momento. “Os problemas rotineiros da vida diária ganham uma lente de aumento agora”, salienta o psicólogo e psicanalista Lúcio Costa, em entrevista ao Brasil de Fato. 

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E, para que a relação fuja das garras do estresse econômico e emocional da atualidade, o profissional aponta que a boia de salvação para aliviar o relacionamento e evitar um divórcio pode estar na via do diálogo e da escuta – gêneros de primeira necessidade, segundo Costa.

Ao refletir sobre o tema, o especialista afirma que “é tempo de se rever” e lembra ainda a importância da – sempre bem-vinda – divisão justa de tarefas domésticas. Confira a seguir a entrevista na íntegra.  

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Brasil de Fato: Os casais, em geral, estão passando mais tempo juntos agora, por força desta situação de isolamento, de pandemia. Este contexto todo de estresse econômico e dúvidas sobre o futuro pessoal e profissional pode afetar um pouco o relacionamento?

Eu acho que o grande desafio – e que pode afetar, obviamente – é como nós conduzimos os conflitos que aparecem e que, neste contexto de pandemia, se agravam. Os problemas rotineiros da vida diária ganham uma lente de aumento neste momento, por uma série de questões que todos nós estamos acompanhando. Mas acho que a grande questão é o que fazer e como fazer pra lidar com esses conflitos existentes. Acho que estamos num momento de, fundamentalmente, devido a esse convívio mais próximo, aprender a escutar. É algo que parece óbvio e elementar.

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Numa relação mais intensa, principalmente de casais vivendo e passando 24 horas do dia praticamente convivendo, às vezes, tendemos a perder a capacidade de escuta e, quando a gente perde essa capacidade, a gente perde a capacidade de compreensão e de dar e criar estratégias pra superação de problemas. Mas acho que sim, que tem que se pensar muito bem em como adotar estratégias que, fundamentalmente, passam pela comunicação pra superação desses problemas neste período.  

Dados do Google mostram que a busca pela expressão “divórcio on-line” saltou 10.000% só na segunda quinzena de abril, entre os dias 13 e 29 daquele mês. Isso surpreende você, de alguma forma?

Eu acessei alguns dados que fazem um contraponto a esse, que são da Central Notarial de Serviços Eletrônicos e Compartilhados (Censec) e mostram que, de fevereiro a abril deste ano, diminuiu em 43% o numero de divórcios no Judiciário. Óbvio que tem um elemento aí: o acesso ao Judiciário também está limitado devido a este contexto. Mas, certamente, acho que teremos aí, no pós-pandemia, que a gente não sabe muito bem quando será, muitos elementos de análise no que se refere à relação das pessoas. Vira e mexe nós temos acesso a noticiários, principalmente os que trazem violência contra a mulher neste contexto de pandemia, [com] a narrativa de que a casa tem sido o lugar menos seguro pra mulher neste momento.

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Então, do ponto de vista analítico, é após este momento que a gente vai conseguir dimensionar como que as pessoas, os casais, as relações sobreviveram ou não a esse processo. É alarmente pensar que muitas famílias e muitas relações têm sido destruídas pela falta de possibilidades, de criar alternativas pra que esse convívio continue seu circuito normal, como era antes da pandemia, digamos assim. 

Em alguns países há notícias que as pessoas saíram da quarentena direto pro cartório, pra selar o fim da união conjugal. Será que o Brasil pode ser mais um exemplo? Ou você acha que questões culturais locais podem exercer influência sobre isso?

É interessante pensar isso e é difícil falar sobre isso porque a relação depende de um contexto. Então, uma coisa é você falar de uma relação que acontece numa região de classe média ou classe alta e outra coisa é falar de uma relação que ocorre nas favelas, nas comunidades, com uma dinâmica de vida completamente diferente, com obrigações e respostas às demandas completamente diversas. E é muito difícil chegar num ponto conclusivo sobre isso porque a dinâmica, e eu insisto nessa questão, a comunicação é um pilar central pra que as coisas possam ser mais bem encaminhadas e resolvidas, inclusive os conflitos.

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Nós temos aí uma situação que está mudando a vida de todo mundo, em geral, e nas relações, obviamente, isso também reverbera. Nós temos particularidades culturais, regionais e sociais pra pensar essa dinâmica familiar, mas é um desafio, de fato, passar por isso. E vou insistir no ponto do diálogo porque, se eu tenho uma boa escuta e um bom diálogo, as coisas ficam mais fáceis de serem digeridas e os problemas ficam mais fáceis de serem superados coletivamente.

O que você tem observado dos casais que você atende? Tem alguns aspectos que chamam mais a atenção quando a gente olha pra dificuldade de se conviver neste momento de pandemia e isolamento?

Eu acho, por exemplo, que é um momento em que a gente tem que olhar – ou tentar exercer isso de maneira contínua – e aumentar a tolerância. É um momento no qual os problemas estão postos. Pra algumas famílias, as dívidas se acumulam, a renda acaba sendo perdida em função da interrupção do seu trabalho, e isso, entre outros vários problemas, se acumula numa relação. E o que eu tenho percebido, principalmente no consultório, é que cada vez mais as pessoas estão menos tolerantes com o outro, e a perda da tolerância, obviamente, tem como resultado o confronto. Não chamo nem de conflito porque isso é o que nós temos na rotina diária, e o confronto parte de outra perspectiva, que coloca um em oposição ao outro, na qual um ganha e o outro perde.   

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A construção de estratégias pra superação desse problema... O que eu tenho percebido é uma dificuldade de como criar estratégias pra que os problemas e a convivência sejam colocados num nível minimamente harmônico. Acho que tem outra questão que é importante dizer, que é o fato de, nesta fase, a gente ter perdido muito a nossa individualidade devido ao convívio quase compulsório, obrigatório. A gente acaba perdendo os nossos espaços de individualidade, e essa é uma questão importante, porque nós temos que ter a nossa individualidade, em alguma medida, preservada, e isso é muito difícil pra algumas regiões do país, pra algumas comunidades, em função de estarem convivendo muitas pessoas dentro de uma casa pequena.

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Essa é uma perspectiva que tem que ser observada, e também os momentos coletivos. No caso dos casais, o momento do casal, o momento com os filhos pra quem tem filho... São desafios que chegam no consultório e as pessoas [ficam] completamente perdidas sobre como organizar tudo isso, além de várias outras coisas que nós poderíamos falar sobre horas aqui a respeito das nuances das relações neste momento.          

A eventual crise que pode surgir num relacionamento a dois num momento como este de pandemia e isolamento é de todo um mal ou pode ser também positiva? Um relacionamento que sobrevive a uma quarentena como esta pode também se fortalecer, em vez de se esgarçar a ponto de viver um fim?

Numa relação antes da pandemia, vamos usar isso aqui como marcador, problemas já existiam e existiam também estratégias pra lidar com eles. O que ocorre é que, neste momento, as pessoas têm que redimensionar as suas estratégias pra lidar com a relação. Penso que [isso] tenha um potencial muito interessante, porque se, num momento de crise – e não só num momento de crise social, mas de crise subjetiva –, as pessoas conseguem construir estratégias de superação dos seus problemas, isso, sem sombra de dúvida, pode fortalecer um laço, um afeto que já existia e já funcionava.

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Então, eu penso que é uma oportunidade pra se rever. Nós estamos num momento de revisão, portanto, rever como eu converso com o outro, como interajo com o outro, como eu exerço a capacidade de escuta e das questões que estão no outro é um caminho fundamental e muito potente pra que esse laço afetivo se fortaleça com o passar do tempo e da própria pandemia.

Você já falou de tolerância e diálogo, mas tem algo mais que pudesse ser dito para os casais que enfrentam uma crise no relacionamento neste momento?

Eu não vejo outra via que não seja a do diálogo e a reflexão sobre como ele tem se estabelecido neste momento. A escuta sobre as questões do outro é de fundamental importância, porque é isto: a partir do momento em que me disponho a escutar o outro, eu vou compreender o universo dele, e as estratégias surgem a partir disso, inclusive de convívio. Combinar, pactuar ações e encaminhamentos pras coisas, [promover] a divisão das tarefas domésticas, que, numa cultura machista, os homens interpretam como ajuda à companheira e, na verdade, é dever dele também dividir essas tarefas. [É] dividir as tarefas ordinárias, rotineiras, mas também dividir espaços em que o casal possa se conectar.

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Obviamente, há que se considerar que, na realidade de muitos brasileiros, isso fica mais difícil, mas é tentar um jeito de criar momentos a dois, criar estratégias de contato, porque, inclusive, a gente perde a escuta e perde também, com isso, o toque. E esta é outra estratégia muito importante: como o casal pode produzir consensos a partir das diferenças, porque procurar culpado, procurar o errado ou o certo é o caminho pra um maior tensionamento. Então, se eu tenho um companheiro ou uma companheira, o que fica é como eu consigo convidá-lo ou convidá-la pra produzir um consenso. Isso é uma estratégia que, obviamente, cada casal, dentro da sua particularidade, tem que pensar e definir como fazer isso, mas penso que o caminho para que uma relação seja saudável passa por essas questões.        

Edição: Lucas Weber