Quinta-feira, 18 de junho de 2020, à noite. No Estádio Maracanã, onde está instalado um hospital de campanha onde profissionais da saúde tentam salvar vidas e lutam a cada dia contra o novo coronavírus, o Flamengo, que escalou suas estrelas, e o Bangu disputaram uma partida pelo Campeonato Carioca. Com estádio vazio e com cara de pelada, o encontro nem foi transmitido pela televisão. Na mesma noite, duas pessoas morreram nesse hospital.
A imagem é revoltante e evidencia um profundo desprezo pela vida humana.
O Brasil, país que concentra o maior número de mortes e casos confirmados de coronavírus no continente, foi o primeiro país onde o futebol retornou na América do Sul. Infelizmente, rever a bola rolando não é uma surpresa - em um país liderado por um governo grotesco e incompetente, que no lugar de trabalhar para superar a crise é um sistemático produtor de novas.
Também não é uma surpresa que seja o Rio de Janeiro o placo desse triste espetáculo. Um mês atrás, os presidentes do Flamengo e do Vasco, Rodolfo Landim e Alexandre Campello, respectivamente, reuniram-se com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), apelando para o pronto retorno do Campeonato Carioca: uma “forçação de barra”.
::Papo Esportivo | Dirigentes de clubes cariocas disputam o campeonato da insensatez::
Na bizarra foto do encontro, na qual todo mundo aparece sem máscara e sorridente, os dirigentes posam junto ao presidente e seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), investigado por desvio de dinheiro da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) no caso da “rachadinha”, que teve desdobramentos recentes com a prisão do seu ex-assessor Fabrício Queiroz. A reunião e a posterior pressão surtiram efeito, e o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) atendeu ao pedido de Bolsonaro, permitindo a volta do campeonato, assim como o fez o governador do estado, Wilson Witzel (PSC).
Infelizmente, também não é novidade a total falta de sensibilidade e negligência da diretoria do Flamengo.
O ápice da desídia é a morte dos garotos do Ninho, nefasto episódio no qual dez jogadores da base do Flamengo faleceram num incêndio no Centro de Treinamento do time. Até hoje as famílias esperam e lutam por uma reparação justa. A diretoria do clube, por sua vez, disputa real por real, enquanto tem investido pesado de forma sistemática no elenco.
Esse mesmo investimento e seu sucesso esportivo, incluído o título da Copa Libertadores na épica vitória de Lima, no Peru, blindaram a diretoria de críticas e contribuíram para que elas se diluíssem na onda de justificado fervor rubro-negro que tomou conta do Brasil. Nessa onda, surfaram políticos de extrema direita como Bolsonaro, Witzel e até o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL), tristemente lembrado por quebrar a placa de Marielle Franco e que ganhou camisa do time com o número 17. Dias depois dos vazamentos do The Intercept, Bolsonaro e Moro compareceram ao Estádio Mané Garrincha, em Brasília, para assistir a um jogo do Flamengo, onde tiraram fotos com camisas do time.
A onda baixou porque o futebol parou. Mas os mercenários continuam a surfar.
E os argumentos para a volta da bola se parecem bastante com os argumentos para a volta de tantas outras atividades econômicas. É que de fato o que está em jogo não é a saúde das pessoas. É o dinheiro. Fora argumentos metidos a sensíveis como os de Crivella, que afirmou que a população do Rio de Janeiro “aguarda ansiosa para ver seus times voltarem à campo” pois o futebol “traz um alento enorme para nossa alma”, as poucas tentativas de defesa de uma medida tão absurda são rebuscadas e mesquinhas. O certo é que a volta do já desvalorizado Carioca despertou expectativas quase nulas - e mais críticas que aplausos.
O Flamengo é hoje o time com maior influência e entrada no governo e em todos os âmbitos do poder. É quem mais vende e quem mais ganha. É o “todo poderoso” dentro de campo. Mas o povo assiste de fora esse processo, com ingressos cada vez mais caros e uma elitização radical dos estádios. O protagonismo do Flamengo não é o protagonismo do povo rubro-negro, verdadeiro sustento do time em cada canto do país. É um protagonismo institucional funcional ao projeto político da diretoria do Flamengo, tomada de assalto por uma patota de safados que só pensam em dinheiro e “sucesso”, para os que a vida não vale muita coisa. Qualquer coincidência com o que acontece com o Brasil na era Bolsonaro é pura realidade. Afinal de contas, o Flamengo virou uma metáfora do Brasil.
*Marcelo Aguilar é jornalista.
Edição: Mariana Pitasse