Tomar e redistribuir milhões de hectares de terras de grandes devedores da União para destinar a milhões de trabalhadores que querem e precisam produzir é o caminho para implementar, em parte, uma reforma agrária no Brasil.
É o que prevê o ponto chamado Terra e Trabalho, do Plano Emergencial de Reforma Agrária Popular, lançado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 5 de junho.
O movimento propõe recolher, sem custos, 6 milhões de hectares de apenas 729 empresas/famílias devedoras da União, que têm débitos de mais de R$ 200 bilhões, conforme levantamento divulgado pelo próprio MST. A área corresponde a 6 milhões de campos de futebol.
Segundo dados divulgados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no ano passado, os grandes devedores, com débitos superiores a R$ 15 milhões, são responsáveis por 62% da dívida ativa da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que atingem um valor total de R$ 1,368 trilhão.
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O objetivo do plano, segundo Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, é pressionar governos para que tratem a reforma agrária como uma saída política e econômica para a crise atual do país.
“Nossa principal intenção com o plano é o mecanismo político, porque os mecanismos jurídicos e os mecanismos institucionais existem, mas, infelizmente, só funcionam com pressão política dos próprios interessados – no caso, as pessoas que querem a terra –, mas também da sociedade", afirma.
Ela ressalta que, embora a Constituição garanta que as terras que não cumprem função social têm que ser destinadas ao assentamento de famílias, sempre faltou vontade política para tanto.
“O que nos falta é uma questão política, que não é só de um governo, infelizmente, que é uma questão do quanto que o Brasil foi relativizando o tema da desigualdade social, da concentração de terra. Só que agora bateu no limite, e bateu no limite da pior forma, com a pandemia”, diz Kelli.
Nossa principal intenção com o plano é o mecanismo político, porque os mecanismos jurídicos e os mecanismos institucionais existem.
Para a liderança do MST, a redistribuição de terras é a única resposta viável para reduzir a latente desigualdade brasileira. “Não tem como o Brasil se esquivar do tema da estrutura fundiária agrária extremamente concentrada para poder resolver seus problemas sociais. Essa resposta não é nova. Ela já foi dada pelos movimentos na década passada, antes de existir MST”.
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Luta pela terra
Uma das notórias devedoras da União é a Usina Santa Helena, com sede em Santa Helena de Goiás (GO). Conforme a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a dívida atual da empresa, somando apenas os dois cadastros em nome da usina, é de mais de R$ 1 bilhão.
A empresa é vinculada ao Grupo Naoum, investigado por fraudes durante o processo de recuperação judicial.
Em razão das dívidas, a Fazenda Nacional confiscou 5 mil hectares das terras da usina para receber parte da dívida com a União, em 2015. Como o território perdeu função social e passou a pertencer ao Estado, o MST logo ocupou o lugar.
As famílias, porém, passaram a ser perseguidas, relata Gilvan Rodrigues, da coordenação do MST em Goiás. “Percebemos um processo de uma tentativa de criminalizar as famílias que ocuparam aquela área. Era um acampamento bem grande, na época, e bastante perseguido pela Justiça. Tanto é que, em 2016, o juiz da comarca de Santa Helena, Thiago Brandão Boghi, pede mandado de prisão para quatro militantes do MST, qualificando o MST como uma organização criminosa”.
Boghi é notório fã do ex-juiz Sergio Moro e do presidente Jair Bolsonaro, o que expressa, inclusive, em sentenças. Dos quatro mandados que ele expediu, três foram cumpridos.
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O juiz também mandou cumprir reintegração de posse no local, mas o Tribunal de Justiça de Goiás suspendeu por tempo indeterminado. A ideia era expulsar, em plena pandemia, cerca de 250 famílias, que se aglomeram precariamente em 15 hectares terra.
“A vida em um acampamento é toda improvisada. A água é extraída dali mesmo, de cisternas, sem muita condição de tratamento, as famílias vivem debaixo de barraco de lona, sujeitas a vento, frio, calor intenso que faz em algum período do ano. Vivem do básico, porque não conseguem produzir, em função do tamanho da terra que têm, para tirar todas as suas necessidades básicas”, conta Gilvan.
Além das condições já deploráveis, os acampados ainda convivem com ameaças constantes. “Estão cercados de canaviais e, em todos os anos, esses canaviais pegam fogo, de forma criminosa. A suspeita é que a própria usina faça isso. Mas, como não tem prova, não tem como acusar. Fogo em canavial ninguém controla, devasta tudo”, afirma o militante.
"Sob a lona preta"
Outra situação, também envolvendo o setor sucroalcooleiro, envolve a Usina Martinópolis, em Serrana (SP), na região de Ribeirão Preto. Segundo a PGFN, a empresa deve R$ 7 milhões, somando débitos tributários e Fundo de Garantia.
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A usina foi condenada por dívidas no fim da década de 1980, mas a execução ainda não foi feita. Enquanto aguardam a morosidade da Justiça, os donos arrendam as terras e geram lucros com elas, ainda hoje.
“É um processo que tem mais de 30 anos. Há uma morosidade jurídica sem fim. Enquanto isso, os proprietários da área vão fazendo uso indiscriminado, obtendo lucro com fazenda pelo arrendamento da fazenda, e com uma dívida milionária de sonegação fiscal. Certamente, não há interesse político em realizar a reforma agrária nessa área”, diz Frederico Firmiano, do MST em São Paulo.
Não há interesse político em realizar a reforma agrária nessa área.
A área foi ocupada pelo movimento em 2008, dando origem ao acampamento Alexandra Kollontai. As condições não fogem da precariedade de outras ocupações. Falta água, falta comida, falta emprego.
“Desde 2008, o acampamento está ali construído, em uma área bastante pequena, em situação de um constrangimento material e subjetivo absoluto. As famílias vêm enfrentando dificuldades de toda a sorte, desde as condições de moradia – vivem sob a lona preta –, condição de trabalho e renda, sobretudo agora, nesta conjuntura de pandemia, em que a natureza do trabalho em geral exercido pelos acampados tende a desaparecer”, comenta Firmiano.
Para ele, só o assentamento pode salvar essas famílias da miséria. “Não há medidas paliativas que deem conta de resolver essa situação. Somente o assentamento dessas famílias”, diz.
O militante considera que, além do básico, a reforma agrária pode alavancar o país. “A garantia de alguns institutos mínimo, como moradia e produção de alimentos, para algumas famílias de trabalhadores no país, pode contribuir sobremaneira para encontrarmos caminhos para escapar da crise”.
Edição: Rodrigo Chagas