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Até onde Bolsonaro pode chegar?

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"Tem sido o núcleo ativista militar que tem cumprido este papel de “irmão mais forte” para esses grupos de extrema-direita" - Fernando Souza / AFP
O governo irá até o ponto que a aliança entre rentistas e militares for eficaz

A resposta mais adequada parece ser a de que o governo Bolsonaro chegará, ou se manterá, até onde dois setores sociais, específicos, puderem levá-lo com o objetivo de garantir seus ganhos. A fração dirigente da burguesia rentista e o núcleo ativista dos militares.

Em meio a um emaranhado difuso de interesses e políticas, esses parecem ser os que têm estabelecido um objetivo com certa racionalidade, portanto, mais específico na manutenção e sobrevida do governo Bolsonaro.

A fração rentista da burguesia, absolutamente internacionalizada, é o real núcleo dirigente do bloco no poder emergido a partir do golpe do impeachment de Dilma Rousseff. Dirigiu o processo de derrubada do governo anterior e estabeleceu as bases de sustentação do breve mas decisivo governo Michel Temer. Foi neste governo que se deu um dos pilares do momento atual da hegemonia mercadista no Brasil, a reforma trabalhista. Ou seja, as mudanças em todo o sistema de proteção ao trabalhador e ao valor do trabalho, que é a principal estratégia de manutenção das altas taxas de acumulação de capital das grandes empresas financeiras mundiais, em uma economia em crise.

O governo Bolsonaro garantiu a continuidade dessa estratégia de transferência acelerada de recursos econômicos e recursos financeiros da classe trabalhadora em direção aos cofres do rentismo local e mundial. Consolidadas as informações sobre a execução orçamentária do governo Bolsonaro no ano de 2019, fica muito claro quem ganha com sua manutenção.

Os gastos da União com juros e amortizações de dívidas consumiram 38,27% de tudo que foi gasto ou investido no ano de 2019 pelo governo Bolsonaro. Enquanto que os gastos, somados com saúde, educação, assistência social e trabalho, atingiram 13,78% no mesmo ano.

Acompanhamos, semanalmente, o governo Bolsonaro atender os interesses do grande capital. São novas portarias administrativas, medidas provisórias, projetos de lei, emendas constitucionais, vetos presidenciais emitidos pelo governo Bolsonaro e aprovados no Congresso Nacional, com o mesmo sentido de transferir renda e capital da classe trabalhadora para a fração rentista da burguesia. Seja a que hospeda essa riqueza no Brasil ou a que hospeda nos paraísos fiscais do exterior.

Exemplos recentes disto são o veto presidencial ao auxílio financeiro a estados e municípios, no valor de R$ 8,6 bilhões que seriam destinados ao enfrentamento da covid-19, oriundos da extinção do Fundo de Reserva Monetária, e a aprovação da emenda constitucional 10/2020, que dá autonomia ao Banco Central para comprar dos bancos amigos, dívida antiga dificilmente cobrável, acumulados ao longo de 15 anos em montante superior a R$ 1 trilhão. Os bancos passarão ao governo papéis podres e receberão títulos da dívida pública brasileira, que paga os maiores juros do mundo.

Esta política de austeridade, posta em prática a partir de Temer, foi aprofundada no governo Bolsonaro, o que lhe garante uma espécie de “funcionalidade” à fração rentista da burguesia, dirigente deste bloco no poder.

A manutenção desta política tem alto custo político, entretanto. A associação entre o neoliberalismo e o autoritarismo é ascendente em todo o mundo. Os grupos políticos neofascistas são quem têm demonstrado maior disposição em garantir, com base na disputa aberta de valores ideológicos e morais, esta regressão autoritária, chave para aplicação destas medidas radicais de austeridade e expropriação dos trabalhadores.

Mas não sãos os grupos neofascistas que dão garantias autoritárias a esse bloco no poder no Brasil. Tem sido o núcleo ativista militar que tem cumprido este papel de “irmão mais forte” para esses grupos de extrema-direita.

Da mesma forma, mas em sua proporção, os militares têm motivos objetivos para cumprir este papel de sustentação do governo. Parece pouco, mas este setor bonapartista obteve no governo Bolsonaro um conjunto de ganhos expressivos. Sua base social e corporativa, identificada como os militares, que no sentido genérico do termo envolve os profissionais de médias patentes das forças armadas e as corporações policial-militares, ficaram fora da reforma da previdência garantindo a manutenção de todos os benefícios históricos. Não estão inclusos na vedação de reajustes salariais e ganharam maior legitimidade social, inclusive para disfarçar eventuais envolvimentos com milícias para-militares ilegais, como as previstas no conceito de exclusão de ilicitude do projeto neofascista de segurança proposto pelo ex-ministro Sergio Moro, em nome de Bolsonaro.

Para estes ganhos objetivos, os militares de alta patente, em especial do Exército - arma que entre as três forças singulares, exército, marinha e aeronáutica, menos se modernizou nas últimas décadas - ocuparam postos proeminentes no governo, sendo indissociáveis deste. Sãos os oficiais generais do núcleo dirigente que estabelecem, através das ameaças explícitas e veladas contra a democracia, uma espécie de muro de proteção ao governo Bolsonaro, a partir do temor sobre um “golpe de Estado” suficiente para que, até o momento, os setores liberais conservadores não invistam no impeachment de Bolsonaro, apesar dos abundantes motivos constitucionais e materiais.

Os outros setores do bloco no poder contribuem para a sustentação do governo Bolsonaro, mas de forma secundária e, em alguns casos, já de forma claudicante.

A burguesia do agronegócio local, porém, absolutamente dependente das exportações e do mercado internacional, que define os preços de seus produtos, não viu satisfeitas suas expectativas econômicas e de lucros. As exportações declinaram fortemente. A China, principal mercado consumidor dos produtos locais, se tornou alvo de uma campanha retórica de ataques e o próprio governo secundarizou os investimentos no setor, tendo a agricultura sido beneficiada com incríveis 0,54% do orçamento realizado em 2019. A dissidência aberta do governador do Estado de Goiás, Ronaldo Caiado, conservador de direita e líder dos ruralistas, não tem a ver apenas com as divergências no enfrentamento da pandemia. Trata-se também de descontentamento que começa a tomar corpo neste setor.

A burguesia local, dependente das relações internacionais mas subordinada politicamente, começa a estabelecer uma relação ambígua com Bolsonaro. Alguns de seus líderes, de política de extrema-direita, tais como este setor altamente sonegador e devedor de impostos vinculado ao comércio, mantém o apoio e até financiam os grupos bolsonaristas de inclinação neofascista. Há um conjunto de setores da burguesia local dependente que não assume posição de frente na defesa de Bolsonaro. Seu interesse em “furar o bloqueio” contra a covid-19, quebrando as regras de isolamento social permitindo a abertura do comércio e das fábricas, é seu ponto de contato com Bolsonaro. Contudo, o distanciamento do PSDB e do DEM, as críticas de Fernando Henrique Cardoso, o conflito com o governador de São Paulo, João Doria, as tensões com o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia e com os ministros do Supremo Tribunal Federal de inclinação liberal conservadora, são os sinais solidamente fortes de uma crise no bloco no poder.

As lideranças nacionais das igrejas evangélicas neopentecostais, que organizam uma base proletária e semiproletária em torno de uma explicação religiosa e moral para um mundo de relações de trabalho precárias e de empobrecimento, parecem ser os mais fiéis nesta esfera subordinada no bloco no poder. Articulam através do “Centrão”, um bloco parlamentar de vários partidos-legendas, uma bancada no Congresso Nacional a sustentar as medidas austericidas e a bloquear o impeachment, ao menos, por enquanto.

A sustentação do governo Bolsonaro, portanto, tem como principais sujeitos de sustentação a fração rentista da burguesia e os oficiais militares do Exército. Deles se geram as iniciativas políticas, tanto no campo parlamentar, mas principalmente no campo das forças do empresariado. Não à toa, diferente da maioria das áreas onde o núcleo bolsonarista efetivamente determina as ações do governo, a decisão sobre as medidas econômicas está “terceirizada” aos agentes mercadistas, que operam diretamente sobre o Ministério da Economia, tendo o ministro como um agente político seu.

Bolsonaro manterá o bloqueio às iniciativas de impeachment enquanto for capaz de manter essa estratégia de dois governos combinados dentro de seu governo: o governo bolsonarista-militar e o governo Guedes-rentistas. O governo irá até o ponto que a aliança entre rentistas e militares for eficaz e resistir aos desgastes promovidos pela luta política, promovida pelos trabalhadores e pelos setores democráticos.

 

Edição: Marcelo Ferreira