Marxismo

Artigo | Todos começamos com Marta Harnecker

Há um ano, a educadora e intelectual marxista chilena falecia em decorrência de tumores no cérebro

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Marta Harnecker, que faleceu em 15 de junho de 2019, participou da "Via Chilena ao Socialismo" e atuou nos governos revolucionários de Cuba e da Venezuela - Arquivo

Em uma entrevista, o então vice-presidente boliviano Alvaro Garcia Linera e o deputado espanhol Pablo Iglesias trocavam impressões sobre obras clássicas e sobre a iniciação política de cada um, quando o dirigente espanhol sentenciou: “Todos começamos com Marta Harnecker”. A definição é precisa não apenas para dois expoentes jovens da esquerda, como para milhares de pessoas que reivindicam o marxismo e o socialismo nas últimas quatro décadas.

Não é exagero afirmar que, provavelmente, Marta Harnecker seja a principal difusora do pensamento de Marx e Lênin na América Latina para sucessivas ondas de militantes, desde a publicação de seus Cadernos de Educação Popular, nos anos 1970, seguido pelos Conceitos elementares do materialismo histórico. Ao mesmo tempo, sua própria trajetória militante e intelectual é ilustrativa do percurso da esquerda latino-americana na segunda metade do século 20.

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Nascida em Santiago do Chile, em 1937, iniciou sua militância na juventude católica, sendo, mais tarde, profundamente impactada pela Revolução Cubana, como todos seus contemporâneos. Foi orientada por Louis Althusser, na França, e, no retorno ao Chile, participou ativamente da construção do governo do socialista Salvador Allende, período em que escreve os Cadernos de Educação Popular como forma de levar as discussões ao maior número de trabalhadores urbanos e camponeses.

Com o golpe militar de Augusto Pinochet, no Chile, exila-se em Cuba, a partir de onde continua a registrar, discutir e elaborar sobre a experiência cubana, mas também sobre a Revolução Sandinista e a revolução em El Salvador.

A partir dos anos 1990, estudaria ainda as experiências de governos locais progressistas na América do Sul que se iniciavam, como, por exemplo, nos primeiros mandatos do Partido dos Trabalhadores no Brasil e da Frente Amplia no Uruguai, até, finalmente, assessorar e refletir sobre o processo bolivariano na Venezuela.

Nos anos 1990, após a queda do Muro de Berlim, uma elite acadêmica e eurocêntrica, aproveitando a onda de crítica da experiência soviética, criticou e condenou a obra de Harnecker como “mecaniscista” e “manualesca”. Ora, justamente ao contrário desta aristocracia intelectual, Marta era a materialização do “intelectual orgânico”, profundamente vinculada com os movimentos políticos, contradições e questões de nosso tempo.

Sua obra não teve apenas a capacidade de realizar e incorporar a autocrítica do período anterior, como sua produção nos anos 1990 – assim como já o fazia na década anterior – teve a sensibilidade de identificar novas práticas e formulações da esquerda latino-americana. Tanto que sua análise leva em conta os acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) quanto as experiências de poder local em toda a América do Sul.

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Em Desafios da esquerda latino-americana (Expressão Popular, 2019), Harnecker identifica três fatores para a crise da esquerda: a crise teórica, com o abandono do materialismo histórico dialético como instrumento de análise da realidade; por consequência, sem conseguir identificar as contradições na análise da realidade, a esquerda não é capaz de entender as mudanças no mundo do trabalho e na sociedade e, portanto, é incapaz de produzir um programa de transformações para este tempo, esta é a segunda crise; e, por fim, os instrumentos de luta social do século 20 tornam-se incapazes de enfrentar os desafios dos novos tempos, seja pelo engessamento, sejam pelas duas crises anteriores citadas.

Sua última publicação em português, Um mundo a construir (Expressão Popular, 2018), é, de certa forma, uma síntese das duas últimas décadas de seu trabalho. Nele, Marta faz um balanço das experiências em curso naquele momento dos governos progressistas na América do Sul, sem sectarismo, nem triunfalismo, atenta para seus avanços e para suas contradições. Destaca todas as formas de exercício popular do poder e enfatiza que não há processo transformador sem que haja protagonismo popular. Mais uma vez, sem construir fórmulas e permanentemente apontando que cada processo depende da correlação de forças que encontra em cada país.

Na terceira parte de Um mundo a construir, Marta retorna ao tema do novo instrumento político, tema também presente em Ideias para a luta (Expressão Popular, 2018). Harnecker retoma o conceito gramsciano de hegemonia, como capacidade de uma classe transformar sua visão de mundo e sua interpretação da realidade em um projeto universal.

A tarefa do instrumento político é justamente a construção desta nova hegemonia. Portanto, ele é portador de um projeto para a sociedade, a partir de seu lugar, mas apresentando-o para o conjunto desta sociedade. De maneira que este instrumento se produz na luta – ou melhor, nas diversas e diferentes lutas contra-hegemônicas – e deve ter capacidade de atrair para este projeto e formar em torno dele um bloco social, amplo e diverso, cujo parâmetro é justamente este novo projeto de sociedade. Por isso, este instrumento deve ser dirigido de forma coletiva – e não de forma burocrática ou como expressão de um pensamento monolítico.

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Logo, este novo projeto, portado pelo instrumento político, é resultado de uma visão de mundo, de uma interpretação da realidade contra-hegemônica, mas que se traduz em uma plataforma de lutas que seja capaz de alterar a correlação de forças na sociedade e de construir mudanças reais na vida das pessoas. E, por fim, mas não menos importante, sua militância deve ser expressão hoje do porvir que este projeto representa, como pedagogos populares.

Trata-se, na verdade, de uma equação complexa em que as novas formas organizativas não serão – e nunca poderiam ser – construídas a priori, e sim como resultado das lutas deste tempo que são produzidas e produzem uma plataforma de reivindicações reais e concretas, capazes de transformar a realidade e mudar a correlação de forças, na medida em que conscientize e atraia outras pessoas e setores para este projeto. Não para exigir o possível. O projeto neoliberal afirma que o possível é microscópio. Ao contrário, lembrava e enfatizava várias vezes Marta, a política é arte de fazer o impossível.

Somente uma intelectual orgânica com presença nas lutas populares seria capaz de compreender os dilemas do movimento político de forma tão sensível e propor – mais uma vez – não fórmulas, mas caminhos para a superação de sua crise teórica, programática e orgânica. O que significa que ainda que tenha nos deixado em junho de 2019, ainda leremos muito Marta Harnecker e muitos ainda começarão a caminhar com a sua ajuda.