Entrevista

Bianca Santana e a pergunta urgente: quando o movimento negro convoca atos, quem vai?

Escritora refuta que manifestações americanas coloquem pressão nos movimentos brasileiros

Ouça o áudio:

Bianca Santana processará Jair Bolsonaro. O presidente a acusou de ter produzido uma notícia falsa - Foto: João Benz
Escritora refuta que manifestações americanas coloquem pressão nos movimentos brasileiros

A escritora, jornalista e pesquisadora Bianca Santana, convidada do BdF Entrevista desta semana, se tornou uma das vozes mais escutadas dentro do movimento negro brasileiro, com trânsito livre entre lideranças reconhecidas como a filósofa Sueli Carneiro; Milton Barbosa, fundador do Movimento Negro Unificado (MNU); a socióloga Vilma Reis; Entre outros.

Na semana em que os estadunidenses saíram às ruas para protestar pela morte de George Floyd, imagens de prédios e viaturas incendiados tomaram conta das redes sociais no Brasil, quase sempre acompanhadas de uma legenda que propunha uma ironia: “A nota de repúdio deles”. Para Bianca Santana, a pandemia inspira cuidados especiais, "principalmente os mais pobres", o que gera dúvidas na escritora sobre a realização de manifestações neste momento. 

Porém, excetuado o período de pandemia, Santana estimula a comparação, mas vai além, reivindica que se entregue ao movimento negro brasileiro, então, o protagonismo nas ruas e que as pessoas compareçam aos atos chamados por ele.

“Tem um olhar para o movimento negro brasileiro bastante equivocado, que nos coloca em um lugar de quem deve somar às outras forças e movimentos do país, mas não no lugar de quem convoca e orienta o que é necessário”, aponta a escritora, que pergunta: “quando a garota Aghata Félix foi assassinada ano passado, no Rio de Janeiro, o movimento negro convocou atos pelo Brasil todos e aqui em São Paulo tivemos o ato na avenida Paulista. Quem respondeu a essa convocação? Tomara que agora, vendo os movimentos americanos e a quantidade de pessoas brancas que também vão à rua, a partir de uma pauta antirracista, tomara que a sociedade brasileira compreenda esse chamado.”

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Na última segunda-feira (8), Bianca decidiu processar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que em uma live no dia 28 de maio afirmou que ela escreveu uma notícia falsa em seu blog, pendurado no portal UOL. O texto, segundo o mandatário, seria sobre uma votação de “ lei brasileira de inclusão de pessoas com deficiência”. Tema que nunca gerou uma manifestação pública da escritora.

“Desse jeito, parecendo confuso, ele me acusa de escrever algo que nunca escrevi e de publicar uma notícia que eu nunca escrevi, são duas acusações muito graves e que nenhuma pessoa deveria fazer. Mas pensando que eu sou jornalista e que ele é o presidente da República, isso é ainda mais grave.”

Enquanto se abriga em casa, por conta do coronavírus, Bianca Santana se debruça sobre outra importante tarefa de sua vida. Ela está escrevendo a biografia da filósofa Sueli Carneiro, uma das mais importantes intelectuais do Brasil. Em paralelo à investigação para o novo livro, alcançou o título de doutora em Ciência da Informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), após uma pesquisa sobre a memória e escrita de mulheres negras.

Confira alguns trechos da entrevista.

Brasil de Fato: Na semana passada, era comum ver publicações nas redes sociais mostrando imagens dos protestos do movimento negro americano pela morte de George Floyd, com a legenda “a nota de repúdio deles. A ação direta do movimento negro americano trouxe pressão para os movimentos sociais brasileiros?

Bianca Santana: Eu espero que tenha trazido lições, essa é a verdade. Tem um olhar para o movimento negro brasileiro bastante equivocado, que nos coloca em um lugar de quem deve somar às outras forças e movimentos do país, mas não no lugar de quem convoca e orienta o que é necessário. Se o racismo é um problema tão estrutural, ele estrutura a igualdade de classe junto com gênero, como a gente não considera o que o movimento negro coloca como prioridade.

Para citar eventos recentes, não precisamos ir longe. Quando a garota Aghata Félix foi assassinada ano passado, no Rio de Janeiro, o movimento negro convocou atos pelo Brasil todos e aqui em São Paulo tivemos o ato na avenida Paulista. Quem respondeu a essa convocação? Tomara que agora, vendo os movimentos americanos e a quantidade de pessoas brancas que também vão à rua, a partir de uma pauta antirracista, tomara que a sociedade brasileira compreenda esse chamado.

Porém, é equivocado achar que no Brasil a gente não tem se movimentado, essa é uma luta histórica. Podemos falar do movimento contemporâneo, mas desde muito tempo o movimento negro se organiza no Brasil e propõe mudanças para a sociedade brasileira. Se formos pegar como exemplo o 7 de julho de 1978, que é quando o Movimento Negro Unificado (MNU) faz um ato unificado na frente do Theatro Municipal, precisamos lembrar que era regime militar e aquele era o primeiro grande ato público, ainda no regime militar, que reúne milhares de pessoas no centro de São Paulo.

Naquele ato, tínhamos como eixos principais o combate a discriminação racial, a denúncia da falácia da democracia racial, parar a violência policial e também por democracia. Então, não é de hoje essa convocatória. Estamos o tempo buscando alianças na sociedade, par que de fato o protagonismo do movimento negro seja reconhecido no país.

A forma como está colocado o debate sobre pautas identitárias te agrada?

Bianca Santana: Sempre que ouço assim nomeado, como “pautas identitárias”, porque me parece uma forma perversa de isolar determinadas lutas e determinados sujeitos de luta. Então é como se os homens brancos de esquerda fossem movimento social e como se mulheres feministas fossem uma caixinha, que eu chamo de “pauta identitária” e como se o movimento negro, que não só representa a maior parte da população brasileira, como também pensa mudança social para todo mundo, fosse outra caixinha.

Primeiro, temos que compreender o que é identidade, e aí recomendo a leitura de Stuart Hall, para quem costuma falar de forma equivocada sobre movimento identitário. Todo mundo tem identidade e identidade não é algo fixo, ela sempre se desloca. Eu, Bianca, me reconheço como mulher negra, que tem identidade periférica, mas que hoje se desloca. Sou uma mulher negra feminista, mas isso não me encaixota num lugar de pauta identitária. Eu somo força à diversos movimentos preocupada com questões de toda humanidade. Aí é muito curioso, há quem diga que esses “movimentos identitários são um problema para a esquerda”. Por quê? Quem é o sujeito que consegue olhar para a sociedade toda? É o homem branco? E esse sujeito branco, não é uma identidade? Quem consegue se olhar no espelho e falar “olha, estou vendo um ser humano” é só que desloca os outros sujeitos, classificando como “outro” ou “identitário”.

É muito comum que você tenha uma mulher se olhando no espelho e veja uma mulher. Ou uma mulher negra, que olha no espelho e veja uma mulher negra. Mas esse homem branco, sujeito universal, invetado pelo colonialismo e pelos europeus, com uma dinâmica racista, ele se reconhece como universal e desloca as outras pessoas e denúncias. Não acho que esse termo cabe, identidade todo mundo tem e precisamos compreender as denúncias específicas dos grupos específicos, não como algo que atrapalha, mas como proposta de mudança social para todas as pessoas.

Nesta semana, você anunciou que está processando o presidente Jair Bolsonaro. O que aconteceu?

Bianca Santana: Eu fui alertada por um amigo que o presidente tinha me citado em uma live em suas redes sociais. Não fazia sentido, entrei no link, demorei a encontrar. Mas de fato, o presidente tinha lido meu nome e uma manchete que eu nunca escrevi, então eu demorei para conseguir processar assisti algumas vezes para formular uma hipótese. Como é que naquela live semanal, que umas 300 mil pessoas já assistiram, ele cita o nome de uma pessoa e ele lê uma manchete que eu nunca escrevi? Na hora, eu pensei, será que ele se atrapalhou?

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Bom, naquela semana, eu tinha escrito sobre as relações da família Bolsonaro com a milícia, que é acusada de ser responsável pelo assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, eu pensei: “Será que ele estava com isso na mão e leu a manchete errada”? E ele encena um pouco. Essa confusão me parece performática na ação do presidente, ele usa simbologias da supremacia branca americana e joga com o fato de que naquela semana os produtores de leite combinaram outra coisa. Então, me parece que esse jeito de gerar confusão também é um método e parecer confuso também é uma narrativa. Desse jeito, parecendo confuso, ele me acusa de escrever algo que nunca escrevi e de publicar uma notícia que eu nunca escrevi, são duas acusações muito graves e que nenhuma pessoa deveria fazer. Mas pensando que eu sou jornalista e que ele é o presidente da República, isso é ainda mais grave.

É inaceitável que o presidente da República me acuse de ter feito uma notícia falsa. Eu conversei com advogadas da Coalização Negra por Direitos, até porque, naquela mesma semana, nós fizemos uma campanha contra a federalização da investigação do caso da Marielle. Isso vai diretamente contra o interesse da Procuradoria-Geral da República, que foi quem pediu a federalização do caso. Agora, você imagina, em um cenário em que o presidente afirma que interferir na Polícia Federal para proteger os seus amigos, o que significaria federalizar o caso Marielle?

Essas relações dele com a milícia que é acusada pelo assassinato da Marielle são muito complexas e me surpreende muito como os pontos não são ligados. Fica parecendo que é uma grande teoria da conspiração e que é uma coisa abstrata.

Edição: Rodrigo Chagas