O debate acerca da renda básica cidadã tomou fôlego no último período diante da flagrante necessidade de fomentar políticas que amparem as populações mais desfavorecidas, que foram escancaradas com a chegada do novo coronavírus no Brasil.
Esse debate, sobre a instauração de uma renda básica, não é novo por aqui sendo popularmente conhecido como a bandeira encabeçada pelo ex-senador Eduardo Suplicy.
Num país como o Brasil de uma profunda desigualdade estrutural, a discussão sobre politicas publicas que tragam resposta as estas mazelas, sempre fizeram parte da disputa politica e econômica.
E a própria equipe econômica do atual presidente da República se deu conta disto. Na ultima semana o ministro da economia Paulo Guedes, anunciou a possibilidade não só de estender o atual plano de renda emergencial, mas também torna-la uma política permanente.
Nomeada por Paulo Guedes como Renda Brasil, e sem muitas informações oficiais, a política pretende substituir o Bolsa Família, considerada uma “herança” dos governos petistas, além de ser mais abrangente que esta, por incluir os trabalhadores informais, que hoje são cerca de 38 milhões de pessoas.
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A sinalização positiva sobre a instauração da renda cidadã de forma permanente, vinda de um governo que têm atacado frontalmente as politicas públicas que garantem condições básicas de sobrevivência de grande parte da população brasileira, indica de partida dois elementos importantes.
A primeira delas, é saldo eleitoral que os desdobramentos da implementação desta política podem trazer. Perdendo cada vez mais avaliações positivas sobre sua atuação governamental, o presidente Bolsonaro percebe cada dia mais a necessidade de pensar contrapartidas que tragam respostas a estes resultados.
Nesse caso, olhando para as experiencias dos governos anteriores, que implementaram políticas de transferência de renda que, ao serem bem sucedidas, trouxeram saldo positivo nas urnas, Bolsonaro também pode apostar nesse elemento. Assim, não só mantendo políticas de transferência de renda direta, como aumentando seu valor nominal.
Num país como o Brasil, em que mais da metade da população vive com menos de 1 salário mínimo, e uma grande parcela da população está em condições de extrema pobreza, políticas de transferência de renda transformam significativamente as condições de vida destes contingentes populacionais que, sob o medo da fome, votam justificadamente pela defesa pragmática das suas condições imediatas de sobrevivência.
Isso não significa minar a extrema necessidade da consolidação desta política. É uma política de importância sumária no contexto em que a miséria é a realidade brutal para um grande número de pessoas, sendo assim, a implementação da renda básica, por si, é uma conquista a despeito de quem a encabeça.
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Entretanto, olhar para as condições que se colocam para sua implementação sim, é passível de avaliações críticas. No caso da Renda Brasil, a sinalização, já de partida, da extinção de outras politicas como Bolsa Família, Abono Salarial, seguro-defeso e salário família, ou seja, politicas com atuação focalizada que visam combater a pobreza, diz muito sobre como esse processo pode se dar no país.
Nesse sentido, a segunda grande preocupação é que a implementação de uma renda mínima permanente se torne justificativa para a extinção de politicas públicas de amplo espectro ou o esvaziamento de financiamento para serviços ofertados gratuitamente pelo Estado.
Um estudo desenvolvido pelo Cedeplar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de declarações de outros economistas que têm se debruçado sobre a temática, mostram que o custo fiscal da implementação de uma renda emergencial pode ser baixo, face a outras políticas hoje em vigência e, que, portanto ela é perfeitamente possível de ser efetuada.
Além disto, ela possui um alto fator multiplicador que, ao distribuir renda para os mais pobres, mantém os níveis da demanda agregada através do consumo e, assim, dinamiza a economia.
Deste modo, a grande preocupação é que o governo passe a optar fatalmente por manter uma só política, no caso a renda básica, com a desculpa de que não há orçamento suficiente para manutenção do conjunto de serviços que hoje são ofertados pelo Estado.
Em outras palavras, é que o custo operacional de uma política de renda básica pode, aos olhos deste governo ávido por implementar uma agenda de austeridade, ser mais “vantajoso” e subsidiar um pretexto que desresponsabiliza gradualmente o Estado da manutenção de outras políticas públicas essenciais, com a premissa de que as pessoas tendo renda podem pagar por tais necessidades.
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A privatização dos serviços públicos, como a saúde, é uma pauta de governos comprometidos com politicas neoliberais, jogando para o setor privado o dever de ofertar estes serviços sob um preço que deve ser pago pelos usuários.
Medidas adotadas no último período, como a PEC do teto dos gastos, que congela os investimentos em saúde e educação, por exemplo, vão de encontro com esta intenção.
A garantia de renda, sobretudo aos mais pobres, é uma condição elementar para minimizar injustiças históricas que estruturam nossa condição social, como a concentração de renda e a pobreza. Mas, a oferta de serviços públicos gratuitos, garantidos pelo Estado, é o que sustenta o sentido do estado em si, enquanto entidade que deve estar a serviço do conjunto da sociedade.
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Nesse sentido, a renda emergencial deve ser um tijolo de uma construção mais ampla, que necessariamente deve estar associada a um conjunto de politicas públicas que componham uma seguridade social satisfatória a todos os cidadãos. Que as pessoas tenham renda para se alimentar, vestir e ir ao cinema, mas também tenham direto garantido de acesso gratuito a um sistema de saúde, escolas, transporte e etc.
Num momento como este que vivemos, como estaríamos sem o Sistema Único de Saúde (SUS)? Seria possível as pessoas se tratarem em hospitais privados com R$ 600 reais?
É, portanto, elementar que nesta importante batalha pela implementação de uma renda básica, ser inegociável a manutenção e, até mesmo, a ampliação da oferta gratuita dos serviços públicos elementares que garantam a dignidade da vida humana, que não parece ser o compromisso do atual governo.
*Iriana Cadó é economista especialista em economia social e do trabalho e militante da Consulta Popular
Edição: Leandro Melito