Dados da Pesquisa Industrial Mensal (PIM), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do início de junho, mostram que a produção da indústria brasileira teve um recuo expressivo no mês de abril deste ano, o primeiro que começou e terminou sob as medidas de isolamento social decorrentes da pandemia de covid-19.
A retração foi de 18,8% com relação ao mês de março – a pior comparação entre os meses da série histórica, cujo início foi em janeiro de 2002 – e de 27,2% em relação a abril de 2019. Apenas a título de comparação, durante a greve dos caminhoneiros, entre 21 de maio e 1º de junho de 2018, que travou o escoamento e a comercialização da produção industrial no Brasil, o recuo foi de 11%.
Entre as atividades industriais que apresentaram maiores retrações, está o setor dos veículos automotores, reboques e carrocerias, com cerca de 88,5%, intensificando o recuo em relação a março em 28%. Por outro lado, as atividades que aumentaram a produção, ainda que de maneira pouco expressiva em relação aos recuos, foram de produtos alimentícios (3,3%) e de produtos farmoquímicos e farmacêuticos (6,6%).
Desindustrialização do Brasil
Para Juliane Furno, doutoranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a retração era esperada em decorrência das medidas de isolamento. A economista afirma, no entanto, que “o problema da indústria é anterior a isso”. De fato, a participação das atividades industriais no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro vem apresentando decréscimos alternados desde a década de 1990, mas que se intensificaram desde 2016.
No primeiro trimestre de 2020, quando o PIB recuou em 1,5%, segundo o Sistema de Contas Nacionais Trimestrais, do IBGE, o setor industrial apresentou uma retração de 1,4% em relação ao último trimestre de 2019. No acumulado do PIB do ano anterior, a indústria recuou 1,1%.
Para Furno, a escolha dos governos brasileiros em fabricar e vender produtos de baixo valor agregado, como petróleo cru, laranja e soja contribui para a redução da importância da indústria no PIB. Na contramão, os produtos com grande valor agregado, como os bens duráveis, são produzidos fora do país. Quando muito, apenas a montagem final é realizada internamente, remetendo o acúmulo de valor – chamado de consumo intermediário – à indústria estrangeira.
“O fato da gente precisar importar grande parte desse bem intermediário para a fabricação do produto final vai apontando o quanto a gente está perdendo esses elos da cadeia produtiva industrial brasileira”, aponta Furno, para quem “isso é um atestado de desindustrialização.”
Problema antigo
Na década de 1990, com o neoliberalismo em franca expansão no Brasil, as políticas industriais se voltaram para a abertura econômica e a concorrência entre as indústrias nacionais e estrangeiras, o que estimularia as transformações produtivas necessárias para modernizar esse setor. Com os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff, explica Furno, o rumo da política industrial sofreu algumas alterações, como capacitação de mão de obra, crédito às indústrias e avanço na ciência e tecnologia, mas que não foram o suficiente diante da fabricação em produtos de baixo valor agregado.
“Desde o governo Temer, e agora no governo Bolsonaro, não existe uma política industrial e um esforço em elaborar um projeto de diagnóstico de como está a indústria, quais são os gargalos e principais desafios e em criar uma política para estimular que o setor industrial tenha capacidade reconectar ou de adensar essas cadeias produtivas”, afirma Furno.
Não existe uma política industrial e um esforço em elaborar um projeto de diagnóstico de como está a indústria, quais são os gargalos e principais desafios.
Seguindo esta linha de prioridades, Brasil torna-se refém da transferência de valor para outros países, explica a economista.
“Ao exportar bens primários e importar artigos industriais, tem-se uma tendência a transferir valor para esses países industrializados a medida que os bens industriais vão agregando tecnologias, vão sendo preços reais ascendentes, porque vão incorporando valor. E as laranjas e bananas continuam com o mesmo preço real ou até tendo o preço reduzido dependendo muito também da dinâmica internacional da oferta e da procura.”
“Em frangalhos”
Além da desindustrialização, a retração no setor também reflete o mercado doméstico em crise, segundo o professor do Departamento de Teoria Econômica, da Unicamp, Marco Antonio Rocha. Com a demanda por bens e serviços em queda, devido à pandemia e à recessão econômica, chega menos dinheiro para as empresas e os investimentos caem. Por sua vez, sem a aplicação de recursos, a modernização das linhas de produção fica estagnada, tornando os equipamentos obsoletos e diminuindo a produtividade das empresas.
De acordo com o Indicador Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), que monitora os investimentos para ampliar a produtividade industrial, houve um recuo na taxa de FBCF de 27,5% em abril deste em relação ao mês anterior.
“Essa crise interrompe investimentos, retarda a modernização das plantas produtivas e aí se tem o aumento da queda da competitividade da indústria nacional.” Para Rocha, o Brasil já se encontra nesse cenário de “indústria em frangalhos”, o que dificulta a reação efetiva à crise econômica intensificada com a pandemia de covid-19. ]
Se qualidade dos empregos gerados é muito baixa, é difícil criar mecanismos de recuperação do mercado doméstico.
Rocha destaca a reestruturação do mercado doméstico, sobretudo com a Reforma Trabalhista, do governo de Michel Temer, em 2017: “desestruturou a capacidade de ter um mercado doméstico vigoroso”. Para ele, a reforma gerou empregos de qualidade muito baixa, os chamados empregos informais, tornando difícil a construção uma demanda interna por bens e serviços capaz de estimular a indústria nacional.
“Se qualidade dos empregos gerados é muito baixa, é difícil criar mecanismos de recuperação do mercado doméstico. Esses mecanismos dependem de uma estrutura de ocupação mais sólida, estável”, afirma Rocha.
O pior ainda está por vir?
Ainda que o cenário retratado pelos números assuste, como definiu Rocha, para ele, “o pior ainda está por vir”. Segundo ele, os contratos de compras e os cronogramas de investimentos são um tanto inelásticos. Em outras palavras, significa que demoram para reagir as condições externas, uma vez que, por exemplo, as compras realizadas ou investimentos já estavam em andamento antes da pandemia.
A indústria brasileira está completamente incapacitada para o enfrentamento.
Rocha avalia que, na esteira desses fatos, a dificuldade maior será observada no momento da retomada internacional das atividades industriais pós-pandemia. Para ele, ocorrerá uma retração expressiva no comércio internacional, marcada pelo acirramento dos mercados concorrentes, criando guerras comerciais semelhantes ao embate visto entre Estados Unidos e China nos últimos anos.
“Nesse cenário de aumento da concorrência internacional, a indústria brasileira está completamente incapacitada para o enfrentamento”. Ainda mais “se a gente não tiver minimamente alguns instrumentos de defesa também do nosso mercado interno, de fomento à proteção das empresas, de todo o conjunto de pequenas e médias empresas que são importantes sobretudo na geração de emprego”, afirma Rocha.
Outros dados da Pesquisa Industrial Mensal
A diminuição da produção também foi verificada em outros setores, como de equipamentos de transporte (-76,3%), produtos têxteis (-38,6%), bebidas (-37,6%), móveis (-36,7%), máquinas, aparelhos e materiais elétricos (-33,8%), metalurgia (-28,8%), equipamentos de informática, produtos eletrônicos e ópticos (-26,0%), produtos de borracha e de material plástico (-25,8%), produtos derivados do petróleo e biocombustíveis (-18,4%) e outros produtos químicos (-7,3%).
Edição: Rodrigo Chagas