O pé no pescoço de George Floyd e João Pedro é o mesmo pé que sufoca o povo venezuelano
Ano passado eu andei com Mariela Machado pelo em seu conjunto habitacional conhecido como Kaikachi, no bairro de La Vega (Caracas, Venezuela).
Depois que Hugo Chávez foi eleito presidente em 1999, um grupo de trabalhadores da cidade viu um pedaço de terra ocioso e ocupou. Mariela e outros levaram sua reivindicação ao governo.
“Nós construímos esta cidade. Conseguimos construir nossas próprias casas. Tudo o que queremos são máquinas e materiais”. O governo os apoiou e então construíram um encantador complexo de vários andares que abriga 92 famílias.
Do outro lado da rua há um prédio de classe média. Às vezes, conta Mariela, as pessoas desse prédio jogam lixo em Kaikachi.
“Eles querem que sejamos despejados”. Se o governo bolivariano cair, ela ressalta, um governo da oligarquia ficará do lado desses moradores e despejará as famílias – principalmente as afro-venezuelanas – que construíram o conjunto habitacional e o entregará a um administrador. Ela diz que essa é a natureza de sua luta, uma luta de classes para defender as preciosas conquistas dos pobres contra a oligarquia.
Onde quer que você vá entre a classe trabalhadora venezuelana e os pobres urbanos, você é recebido com uma identidade efusiva: chavista. Essa palavra é usada por mulheres e homens leais a Chávez, certamente, mas também à Revolução Bolivariana que sua eleição inaugurou.
Revoluções são difíceis; elas devem reduzir centenas de anos de desigualdade, corroer as expectativas culturais e construir as bases materiais para uma nova sociedade.
As revoluções, escreveu Lenin, são “uma longa luta de classes, difícil e obstinada que, após a derrubada do domínio capitalista, após a destruição do Estado burguês (…) não desaparece (…) mas apenas muda suas formas e, em muitos aspectos, se torna mais feroz”.
Os ombros curvados devem se endireitar e as aspirações, para além das necessidades mais básicas, devem ser atendidas.
Essa foi a agenda colocada em prática por Chávez. Inicialmente, as receitas do petróleo forneceram os recursos para esses sonhos – tanto na Venezuela como em outros lugares do Sul Global – mas depois que seu preço entrou em colapso, em 2015, impactou a capacidade do Estado venezuelano de aprofundar as mudanças revolucionárias. Mas o processo revolucionário não se enfraqueceu.
A partir de 1999, as principais empresas de petróleo e mineração fizeram o possível para deslegitimar o processo revolucionário na Venezuela. Fizeram isso não apenas para ter acesso aos recursos venezuelanos, mas também para garantir que seu exemplo não inspirasse outros países.
Em 2007, por exemplo, Peter Munk, diretor da Barrick Gold no Canadá, escreveu uma inflamada carta ao Financial Times com o título “Deter a demagogia de Chávez antes que seja tarde”. Munk comparou Chávez a Hitler e Pol Pot, dizendo que esses “demagogos autocráticos” não poderiam agir.
O que incomodou Munk – e executivos de empresas de mineração como ele – é que Chávez estava realizando uma “transformação passo a passo da Venezuela”. Qual a natureza dessa transformação passo a passo? Chávez e a Revolução Bolivariana estavam retirando recursos de empresas como Barrick Gold e destinando sua riqueza para beneficiar não apenas o povo venezuelano, mas também os povos latino-americanos e de outros lugares. Esse modelo deveria ser destruído.
Em 2002, os Estados Unidos – com fundos do National Endowment for Democracy e da USAID – tentaram um golpe de Estado contra Chávez. Esse golpe fracassou decisivamente, mas não impediu outras investidas. Em 2004, o embaixador dos EUA, William Brownfield, redigiu um plano de cinco pontos: “o foco da estratégia”, escreve ele, “é 1) fortalecer as instituições democráticas [ou seja, oligárquicas]; 2) penetrar [que significa desorientar e comprar] na base política de Chávez; 3) dividir o chavismo; 4) proteger negócios vitais dos EUA e 5) isolar Chávez internacionalmente”.
Esses são os elementos da guerra híbrida contra a Venezuela, uma guerra cujas táticas variam de sanções a estrangulamento da economia, disseminação de desinformação e isolamento do processo revolucionário. Todas as tentativas foram feitas pelo governo dos EUA e seus aliados (incluindo o Canadá e vários governos da América Latina) para derrubar não apenas os presidentes Chávez e Nicolás Maduro, mas também a revolução bolivariana em sua totalidade.
Se os EUA e seus aliados vencessem essa guerra, não há dúvida de que iriam apagar o conjunto habitacional de Kaikachi, onde Mariela Machado é uma liderança local.
Quando conheci Mariela em 2019, os EUA estavam tentando colocar Juan Guaidó – um político insignificante dentro da Venezuela até aquele momento – como presidente. Pessoas como Mariela saíam às ruas diariamente para resistir à tentativa de golpe e guerra híbrida projetada por Washington pelas empresas transnacionais e pela antiga oligarquia da Venezuela.
Chavistas como Mariela entenderam muito bem os comentários de Chávez de 2005: “Golias não é invencível. Isso o torna mais perigoso, porque, quando começa a perceber suas fraquezas, começa a recorrer à força bruta. O ataque à Venezuela, utilizando força bruta, é um sinal de fraqueza, fraqueza ideológica”.
Essa fala de Chávez dialoga com o que Franz Fanon escreveu em L’an V de la révolution algérienne (1959): “O que estamos realmente testemunhando é a lenta mas certa agonia da mentalidade dos colonos” e a “mutação radical” que o processo revolucionário produz na classe trabalhadora.
Chavismo é o nome da energia revolucionária, da mutação radical da personalidade do venezuelano que não está mais disposto a se curvar diante da oligarquia ou de Washington, mas digno na luta, não está disposto a aceitar uma vida de submissão.
Durante o período da pandemia, um mundo sensível teria se unido para condenar a asfixia a lugares como Venezuela e Irã, que enfrentam uma guerra híbrida de Washington, que diminuiu a capacidade desses países de combaterem o vírus.
Mas, em vez de encerrar ou mesmo suspender a guerra híbrida, o governo estadunidense – e seus aliados canadenses, europeus e latino-americanos – intensificaram os ataques à Venezuela que varia desde impedir que o país use recursos de combate à covid-19 do Fundo Monetário Internacional (FMI) até acusar – sem evidências – os principais líderes venezuelanos do narcotráfico e tentar invadir o país.
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social trabalhou em estreita colaboração com Ana Maldonado, da Frente Francisco de Miranda (Venezuela), Paola Estrada, da Assembleia Internacional dos Povos e Zoe PC, do Peoples Dispatch, para elaborar o estudo CoronaChoque n. 2: CoronaChoque e a guerra híbrida contra a Venezuela (junho de 2020).
O texto mostra como – apesar dos pedidos das Nações Unidas – os Estados Unidos persistiram e até aumentaram sua política de sanções e ataques militares. Te convidamos a ler nosso estudo, discuti-lo com seus/suas amigos/as e companheiros/as e faça uma ampla divulgação.
Palavras como “democracia” e “direitos humanos” foram esvaziadas de seu significado pela guerra híbrida. Os Estados Unidos acusam a Venezuela de “violar direitos humanos”, ao mesmo tempo que opera uma política de sanções equivalente a um crime contra a humanidade; os EUA – do nada – escolhem um homem que unge como presidente da Venezuela em nome de “democracia” sem se preocupar com os processos democráticos dentro da Venezuela.
Anos antes de Chávez vencer a eleição, o poeta venezuelano Miyó Vestrini escreveu sobre essa manipulação da linguagem:
Gostaria de saber se os direitos humanos realmente
são uma ideologia.
Fernando, o único barman alcoolista que não se aposentou,
fala em rimas:
‘a noite é uma escuridão
e não tenho meu coração.’
Pelo que entendi, ele é um dos poucos que ainda
acha que os direitos humanos são morais.
Certamente, em Washington eles tratam os “direitos humanos” como um instrumento de guerra.
Enquanto isso, cinco petroleiros iranianos quebraram o que é efetivamente um embargo dos EUA à Venezuela para levar gasolina para o país. O primeiro navio, Fortune, entrou no dia 24 de maio e o quinto, Cravo, aportou dia 1 de junho.
No ano passado, um navio iraniano, Grace 1, foi sequestrado em Gibraltar, mas desta vez os Estados Unidos não puderam provocar um incidente. Ajuda o fato de a China e a Rússia apoiarem a Venezuela com recursos para ajudar na luta contra a covid-19 e da China deixar claro que não permitirá uma mudança de regime em Caracas. Isso não é proteção suficiente, no entanto; nada em nossos dias parece impedir Washington de conduzir uma guerra.
As ruas dos EUA estão em chamas mais uma vez por causa do assassinato de George Floyd, um homem negro, desarmado, asfixiado por um policial branco e seus cúmplices em Minneapolis. Malcolm X disse uma vez: “Não sou eu que tenho rancor. É você que tem o pé no meu pescoço”.
Uma semana antes de George Floyd ser assassinado, João Pedro Mattos Pinto (14 anos) foi morto pela polícia no Rio de Janeiro (Brasil) enquanto brincava no quintal de sua casa; alguns dias após seu assassinato, as forças de ocupação israelenses assassinaram Iyad el-Hallak (32 anos), que trabalhava e frequentava uma escola para pessoas com necessidades especiais na antiga Jerusalém.
O pé no pescoço de George Floyd, João Pedro e Iyad el-Hallak é o mesmo pé que sufoca o povo venezuelano, que sofre todos os dias a guerra híbrida orquestrada pelos EUA.
Edição: Leandro Melito