Coluna

Uma janela contra Bolsonaro?

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Antifascitas se reuniram contra ato bolsonarista em frente ao Comando Militar do Sul em Porto Alegre - Alass Derivas
A oposição a Bolsonaro é muito maior, mas o terreno pela frente é minado

No momento em que o Brasil ultrapassa as 34 mil mortes por coronavírus, tornando-se o terceiro país neste ranking nefasto, crescem os movimentos de oposição e uma faísca de indignação se espalha pelas ruas. A oposição a Bolsonaro é muito maior, mas o terreno pela frente é minado, como vamos tentar entender nos pontos abaixo.

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1. Amanhã será maior?

Algo se moveu desde o fim de semana passada e não foi o passeio racista de Sara Winter nem a cavalgada de Bolsonaro. Os atos puxados por torcidas organizadas e a repressão policial direcionada aos protestos pró-democracia desencadearam uma série de manifestações nas redes sociais e viralizaram o termo "antifascista". No que pode lembrar o estopim de 2013, a repressão policial motivou a convocação de novos atos para este final de semana. Simultaneamente, três manifestos que se pretendem amplos na composição foram lançados nos últimos dias: o movimento #Somos70%; o manifesto "Estamos Juntos", com 250 mil assinaturas; e um manifesto de ONGs e entidades empresariais. A manifestação criou um dilema para as frentes de oposição que até então têm defendido a manutenção do isolamento social. Senadores de partidos de oposição publicaram uma nota recomendando que as pessoas não compareçam aos protestos e há quem veja nas convocações uma armadilha, como o sociólogo Luiz Eduardo Soares, para quem as manifestações seriam usadas para justificar um golpe, como a dupla Bolsonaro e Mourão demonstrou recorrendo às tradicionais acusações de que os manifestantes são baderneiros, marginais e terroristas. Já o deputado Glauber Braga (PSOL) pergunta: se nós recuarmos, os fascistas recuarão? Se nós avançarmos, eles recuarão?

Nos manifestos, há uma ausência óbvia: Lula. Ao contrário de outros correligionários, o ex-presidente evitou assinar o manifesto Juntos, que vai de Caetano Veloso a Lobão. O seu argumento é de que não existe "Fora, Bolsonaro" sem "Fora, Paulo Guedes". Na verdade, o manifesto Juntos não fala sequer em impeachment ou em "fora, Bolsonaro". No Opera Mundi, Haroldo Ceravolo escreve que não é Lula quem está impedindo uma frente ampla, mas “um centro e uma direita que insistem em defender o programa econômico de Paulo Guedes e que acham que Sérgio Moro ainda está vivo, e não entubado”. Já a Folha de S.Paulo lembra que figurinhas da direita também não assinaram — curiosamente a turma que emergiu de 2016, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e Janaina Paschoal (PSL) —, mas também o presidenciável João Dória (PSDB).

2. Para quem precisa

Simbolicamente, o conflito na Avenida Paulista também é ilustrativo do papel que as Policiais Militares têm cumprido como base social do bolsonarismo. Imagens mostram, inclusive, um coronel da reserva da PM paulista provocando a situação que levou ao conflito. Para além da predileção ideológica, o Estadão revela que são ex-militares e policiais militares e federais que formam a rede de informação pessoal de Bolsonaro, que ele mesmo chamou de "Abin paralela". São milhares de policiais fornecendo informações que são filtradas por aliados mais próximos e transmitidas diretamente ao celular de Bolsonaro. O governo trabalha até para certa institucionalização dessa rede, preocupado com o avanço das investigações sobre fake news. Vale lembrar que, um dia antes de vetar a possibilidade de reajuste dos servidores, Bolsonaro publicou uma medida provisória que determina aumento salarial para os integrantes das forças de segurança do Distrito Federal e dos estados do Amapá, Roraima e Rondônia. Muito mais grave é a postagem de Moro segundo a qual Bolsonaro, como já se suspeitava, pretendia comandar uma rebelião armada de policiais contra os governadores favoráveis ao isolamento social. O sinal amarelo já acendeu para os governadores, como João Dória, bem lembrados dos recentes episódios no Ceará contra o governador petista. Toda vez que você ver um motim de policiais, ele é liderado por um bolsonarista, avisa Thomas Traumann. Para outros governadores adversários, como Wilson Witzel, aí a tarefa é para a Polícia Federal, como vimos na semana passada. A Folha detalha como a ação contra o governador fluminense, determinada às pressas pela PGR, está cheia de falhas e é baseada nas publicações no Twitter do próprio Witzel.

As manifestações de domingo também mexeram com os brios de outra ala militar do governo, as Forças Armadas. Agora devidamente vestindo a camisa do governo, abandonando a função de “adultos na sala” — deixa o cara trabalhar, diz o ziguezagueante Hamilton Mourão —, os militares temem que as manifestações ganhem corpo e tomem a proporção de um Chile em 2019 ou idênticas aos Estados Unidos nesta semana. Vale lembrar que, se o quesito é manifesto, os militares já assinaram 13 documentos em defesa de Bolsonaro, enquanto o próprio já ameaçou colocar as Forças Armadas sete vezes nas ruas contra a oposição. Se por um lado também olham com desaprovação o movimento de Bolsonaro com os policiais e temem que um impeachment manche a imagem da instituição, por outro, os militares debatem animadamente sobre o fechamento de instituições nos grupos de WhatsApp. Ainda assim,  um tanto constrangido pelo sobrevoo de helicóptero nas manifestações contra o STF no domingo, o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva tomou a iniciativa de procurar o STF para tentar pacificar os atritos com o governo. Enquanto isso, o defenestrado Santos Cruz confirma o que qualquer estudante de Direito sabe: não existe poder moderador na Constituição e as Forças Armadas não podem intervir em instituição nenhuma.

3. É por aqui?

Tudo isso acontecendo e, para Augusto Aras e Rodrigo Maia, nada diz respeito a nenhum dos dois. Se o comportamento de Aras seria o termômetro para uma possibilidade de impeachment, esse caminho parece encerrado. Segundo levantamento da BBC, Aras já se reuniu com Bolsonaro duas vezes mais que sua antecessora e nesta semana deu duas declarações em consonância com o Planalto, uma defendendo o fato de Bolsonaro não usar máscara em público e outra sobre o mítico artigo que permitiria as Forças Armadas intervirem em outras instituições. Além disso, Aras também decidiu retomar a negociação da delação premiada do advogado Rodrigo Tacla Duran, num movimento que está sendo interpretado como uma tentativa de Bolsonaro em tornar Moro inelegível em 2022. Já Rodrigo Maia promete apenas cautela e que analisará os pedidos de impeachment no momento adequado. O atalho para o fim do governo Bolsonaro parece estar sendo pavimentado em outro terreno: enquanto a CPMI das Fake News identificou 2,065 milhões de anúncios pagos com verba da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) em sites de fake news, os ministros do STF tem demonstrado inédita unidade neste tema e estão construindo estratégias para assegurar a formação de maioria em favor da continuidade das apurações do inquérito criado e conduzido pela própria Corte. Condutor das investigações sobre as milícias virtuais, Alexandre de Moraes acaba de tomar posse no TSE. Se a investigação do STF é questionável, não soa incoerente que ela possa alimentar o caminho mais legalmente respaldado para dar resposta à questão do fim deste governo, escreve Maria Mello, na Carta Capital. O julgamento sobre dois dos seis pedidos começam no próximo dia 9 e já existe até um precedente de condenação no TSE por impulsionamento ilegal de conteúdo digital na campanha eleitoral, a cassação do mandato da ex-senadora Selma Arruda (Podemos-MT), confirmada há pouco mais de um mês no Senado. Para cassar a chapa presidencial, bastariam os votos de 4 dos 7 ministros do TSE, entre eles, os ministros do Supremo, Barroso, Alexandre e Edson Fachin. Não há muita dúvida de que, diante dos ataques do bolsonarismo ao STF, os três votariam contra Bolsonaro, avalia Helio Gurovitz no G1.

4. Uma morte por minuto

De novo, como temos insistido semana após semana, só num país moral e politicamente dilacerado pela ascensão da extrema direita, não é prioridade a contenção da pandemia que já matou 34 mil pessoas em menos de três meses. É como se o Barradão, estádio do Vitória da Bahia, estivesse lotado de brasileiros mortos por uma mesma doença. Oficialmente, diga-se. Porque há muito mais mortes não sendo registradas, como mostra este artigo esclarecedor. Pelo contrário: o governo consolida a presença militar no Ministério da Saúde, oficializa o interino militar na titularidade da pasta e ainda chama para um cargo estratégico um empresário dono de cursinho de inglês e fanático da cloroquina, enquanto adota uma estratégia para “resolver” o problema da escalada de mortes: atrasar a divulgação do boletim epidemiológico para depois do Jornal Nacional. Como se isso bastasse para esconder o tamanho da tragédia: na quarta (4), o Brasil registrou 1473 mortes em 24 horas, o que equivale a mais de uma morte por minuto. Já somos o terceiro país que mais perdeu vítimas para o coronavírus, atrás apenas do Reino Unido e dos Estados Unidos, dois países aliás que começaram esta jornada negando a gravidade da pandemia - posição na qual só Bolsonaro se mantém, já que até a Suécia, exemplo usado pelos negacionistas brasileiros, passa a admitir que agiu errado. Para o presidente sem caráter, está tudo bem porque a morte é o destino de todos. E ainda não chegamos ao fundo do poço: desde médicos consultados em uma pesquisa da Associação Paulista de Medicina (APM) até a Organização Mundial de Saúde (OMS), o consenso é de que o pior ainda está por vir, sendo que há projeções indicando que poderíamos quadruplicar o número de mortes. No momento, depois de afetar as grandes capitais e os estados do Norte e do Nordeste, o coronavírus começa a acelerar em regiões até então menos atingidas e é por tudo isso que reabrir comércio e mandar a população às ruas é como mandar todo mundo para um abatedouro.

5. Plano infalível

Era de se esperar que, com o país acumulando resultados negativos na economia desde antes da pandemia, o governo tivesse um plano de recuperação. Mas não esperem isso de Paulo Guedes. Como alerta Vinicius Torres Freire, Guedes insiste no mesmo plano que elabora há quase dois anos: cumprir o teto de gasto, arrebentar de vez com as leis trabalhistas, privatizações para atrair investimento privado e, se tudo der certo, isso se transformaria em obras em...2023. Daí a prioridade em retomar a proposta do marco regulatório do saneamento, que facilitaria a ofensiva privada sobre as empresas públicas de água e esgoto nos municípios. E nem mesmo os coleguinhas neoliberais acreditam na eficiência de seu plano. O próprio presidente do Banco Central reconheceu que o capital estrangeiro debandou do país desde o começo do ano e não deve voltar tão cedo. Aliás, “quem vai tomar a decisão de investir num país, num investimento com prazo de cinco, dez anos, se não sabe a direção da política econômica para os próximos dois, três anos?”, avisa o banco JP Morgan. Ainda assim, o governo vai insistir em aumentar a ajuda para grandes empresas, aquelas com faturamento entre 10 e 50 milhões de reais, e liberar a demissão de até 50% dos funcionários nas empresas que aderirem ao programa de financiamento de salários. Quanto ao auxílio emergencial, Guedes só libera mais R$ 600 em uma, duas ou três parcelas na proposta da equipe econômica.

6. No chão

Um dos maiores polos tecnológicos do país, a Embraer parece não saber para onde vai e certamente não atrai interesse algum do governo federal. Com a desistência da compra pela Boeing e com as consequências da pandemia no mercado aéreo, a Embraer anunciou esta semana que registrou um prejuízo líquido de R$ 434 milhões no primeiro trimestre deste ano. O prejuízo líquido total foi de R$ 1,276 bilhão. Segundo a empresa sediada em São José dos Campos, a chinesa Comac, a russa Irkut e a indiana Hindustan estariam interessadas em compra ou parceria com a aérea brasileira, mas até o momento não há nada de concreto. Enquanto isso, a empresa reduziu salários dos funcionários e busca financiamentos no BNDES. Com saldos negativos, a tendência favorece quem compra e não quem está a venda, e é provável que um novo negócio leve uma das poucas empresas de ponta nacional por ainda menos do que o acordo com a Boeing. Ao mesmo tempo, uma longa batalha judicial deverá ser travada nos Estados Unidos: a Embraer acusa a empresa americana de romper o contrato por conta dos seus próprios problemas financeiros e agora é a Boeing quem acionou um processo de arbitragem contra a empresa brasileira pelo fracasso do acordo de US$ 4,2 bilhões.

7. Vidas negras importam

A morte do norte-americano George Floyd, asfixiado por um policial ajoelhado sobre seu pescoço no dia 25 de maio, desencadeou uma onda de protestos diários nos Estados Unidos, que se alastrou pelo mundo e no Brasil ganha contornos tragicamente nacionais. Por aqui, o número de pessoas negras mortas pela polícia é 17 vezes maior do que nos Estados Unidos e casos recentes insuflaram a indignação contra nosso racismo estrutural. O caso do menino Miguel, de cinco anos, que caiu do nono andar de um edifício de luxo no Recife após ser deixado no elevador pela patroa de sua mãe, mostra as profundezas da nossa tradição racista e colonial - a dona da casa é primeira-dama do município de Tamandaré e a empregada doméstica, mãe de Miguel, é registrada como funcionária da prefeitura. No Rio de Janeiro, são evidentes as provas de que os policiais envolvidos na morte do adolescente João Pedro cometeram uma série de irregularidades. Como sempre acontece nestes casos, o submundo da internet põe em circulação montagens falsas que associam as vítimas à criminalidade. No Rio Grande do Sul, policiais perseguiram um carro de aplicativo e dispararam 35 tiros contra o carro onde estavam um angolano em visita ao Brasil e sua amiga brasileira, que acabou morrendo. Enquanto isso, o presidente do órgão governamental dedicado à preservação da cultura negra chama o movimento negro de “escória maldita”. São casos que mostram que o racismo brasileiro é “o pior do planeta”, na acepção do rapper Emicida. E indicam que a luta antifascista passa fundamentalmente pela luta antirracista.

8. Ponto final: nossas recomendações de leitura

Apresentamos, a seguir, algumas recomendações de leitura:

. Lembram o que fizeram no verão passado?. A comparação com as Diretas Já de 1984 é presunçosa e descontextualizada, lembra mais uma valsa nostálgica de quem não quer assumir responsabilidade pelos descalabros cometidos, escreve o historiador Francisco Foot Hardman.

. “Sem entender a eleição de Bolsonaro, não é possível afastá-lo”, afirma Marcos Nobre.. Em entrevista ao Brasil de Fato, o filósofo discute a movimentação na base bolsonarista, a atuação da polícia e das torcidas, mas adverte que é preciso entender a complexidade que gerou o bolsonarismo.

. Repressão policial em São Paulo deixa claro que PM tem lado. E não é o dos democratas. O cientista político Vitor Marchetti discute o papel e ameaça das polícias militares, resquício da ditadura militar, em entrevista para a Rádio Brasil Atual.

. Polícias fraturadas. Sejam nas militares, seja na Federal, a relação entre política e polícia é tênue, escreve Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na revista Piauí. Lima também escreve, com o coronel da reserva da PM paulista Glauco Carvalho, até onde vai esta polícia diante da sedução de Bolsonaro com promessas, cargo e poder?

. A anomia do Estado. Artigo de Luís Felipe Miguel mostra que a institucionalidade que foi rompida em 2016 para retirar do jogo o campo popular hoje se mostra incapaz de regular os conflitos entre os grupos dominantes.

. Autoritarismo de Bolsonaro é legado da Lava Jato.  O gosto pelos golpes e pela ameaça às instituições começou com a ação da Operação Lava Jato, afirma o criminalista Alberto Toron para a Folha.

.“Os militares estão numa encruzilhada, um encontro marcado com a história do Brasil”. Em entrevista para Jacobin, José Dirceu faz autocrítica da relação dos governos petistas com os militares e prevê que contradições surgiram no meio das Forças Armadas.

. Os limites do oportunismo vira-casaca no Itamaraty. Secretário Especial de Assuntos Estratégicos no governo Temer, Hussein Kalout critica o aparelhamento e a subordinação do Itamaraty a política de extremismo ideológico.

. Quem é Sarah Winter e seu plano de 'ucranizar' o Brasil. João Filho liga os pontos no The Intercept sobre as relações de Sarah Winter com as milícias ucranianas e movimentos neonazistas.

. Os pedidos de impeachment de Bolsonaro. Especial da Agência Pública organiza os 41 pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro por temas, mostra uma linha do tempo dos motivos para impeachment e ainda permite que o leitor acompanhe o andamento dos processos na Câmara.

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Edição: Camila Maciel