Pernambuco

Coluna

Os nove andares do Atlântico Negro

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As "torres gêmeas" do Recife ficam na zona central da cidade e já protagonizaram um caso emblemático de especulação imobiliária - Paulo Emílio
O 9º andar do qual caiu o menino Miguel da Silva, hoje, é tão profundo quanto as águas do Atlântico

Mais uma semana se passa e somos obrigados a nos deparar com outro caso brutal e chocante de morte de uma criança negra. Desta vez a vítima foi Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata Souza. O menino Miguel foi deixado sob os cuidados da patroa de sua mãe, Sari Gaspar Corte Real, enquanto a empregada foi passear com o cachorro da família. Logo após, a criança foi colocada dentro de um elevador sozinha pela patroa para minutos depois, cair do 9º andar do edifício sinônimo de ostentação e riqueza na cidade do Recife, as famosas Torres Gêmeas.

O racismo está explícito em cada detalhe da morte de Miguel: na empregada doméstica trabalhando durante uma pandemia, obrigada a passear com o cachorro da patroa, serviço considerado como essencial; na necessidade de uma mãe preta ter de levar seu filho para o trabalho diante da recusa do Governo Federal em garantir, nesses tempos, estabilidade profissional, auxílio emergencial ou mesmo creche pública e de qualidade; na patroa que estava “fazendo as unhas” enquanto a mãe, Mirtes, deixou Miguel aos seus cuidados; no fato de a patroa, Sari Gaspar Corte Real, considerar que uma criança negra de 5 anos tem a capacidade de tomar conta da própria vida sozinha, ao passo em que a sua própria filha, com praticamente a mesma idade ficou em casa, guardada sob os seus olhares; na possibilidade de pagamento de R$ 20.000,00 de fiança e na proteção dada durante os primeiros dias à identidade da patroa branca.

São inúmeros os pontos que denotam os absurdos racistas nos quais esse acontecimento se enquadra. No entanto, cabe fixar os olhares em um detalhe importantíssimo do caso que até certo ponto pode passar desapercebido aos olhos viciados de uma sociedade acostumada a tratar a si mesma como o paraíso da democracia racial: o nome e sobrenome da patroa, branca, rica é Sari GASPAR CORTE REAL; o nome da criança morta é Miguel Otávio Santana DA SILVA. Grifos extremamente importantes.

Em uma breve pesquisa podemos encontrar o sobrenome GASPAR CORTE REAL em citação a uma distinta família de colonizadores portugueses responsáveis pela exploração da chamada Terra Nova, datando de mais de 500 anos atrás. Em contraponto, ao pesquisar sobre a origem do sobrenome DA SILVA, encontramos interligado ao sequestro dos negros e negras escravizados, tirados das suas terras (e dos seus nomes de origem) que depois de cruzarem o Atlântico, chegavam ao Brasil e eram forçados ao batismo de um nome português.

Com uma análise histórica simples, pode-se perceber, portanto, a ironia contida no caso do homicídio do menino negro Miguel da Silva quando ele estava sob a vigilância da patroa branca Sari Gaspar Corte Real. O caso traz a memória histórica de um Brasil composto por colonizadores e escravizados, que até hoje reverbera diretamente na sociedade racista e patriarcal na qual o país se insere.

Como bem frisado pelo grande teórico negro Clóvis Moura, o sistema colonial no Brasil optou pela “ocupação da terra e a importação, em larga escala, do negro africano como trabalhador básico”. Essa opção está presente até hoje na sociedade brasileira quando identificamos uma mulher negra tendo que passear com um cachorro enquanto vê sua criança, de sobrenome da Silva, ser morta sob o olhar de uma patroa branca de sobrenome Gaspar Corte Real.

A realidade atual em muito se encontra com o berço histórico no qual fomos construídos enquanto nação, uma história que coloca de um lado escravizadores, pessoas ricas que necessitam de uma empregada doméstica durante uma pandemia para passear com os seus cachorros, pessoas que clamam pelo encarceramento em massa da população negra, pessoas que possuem R$ 20.000,00 para pagar uma fiança. Do outro lado, são colocadas as pessoas escravizadas, pessoas que necessitam sair de casa e correr o risco de se contaminar durante uma pandemia, pessoas que por muito menos estão sendo encarceradas em verdadeiras masmorras insalubres, pessoas que precisam se sustentar com um salário mínimo que não passa de 1.000 reais. De um lado a classe rica exploradora, com sobrenomes advindos de “famílias distintas” coloniais, do outro lado uma família pobre, explorada, com um sobrenome que remete aos tempos dos seus antepassados escravizados.

Com tudo isso, podemos tirar uma conclusão, não tão simples como pode parecer: não estamos tão distantes da escravidão como deveríamos estar, muito pelo contrário. O 9º andar do qual caiu o menino Miguel da Silva, hoje, é tão profundo quanto as águas do Atlântico que sobrepõem os milhares de corpos negros que tombaram durante séculos.
 

* Artigo escrito com Felipe Reis Melo, advogado popular, militante do Movimento dos Trabalhadores por Direito e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

 

Edição: Vanessa Gonzaga