“A sociedade tem que perceber que, enquanto não avançarmos nessas pautas que parecem dizer respeito somente ao povo negro, não vamos transformar a sociedade brasileira. [A palavra de ordem] ‘vidas negras importam’ é sobre isso, sobre transformação profunda da nossa sociedade, tarefa de todo o povo brasileiro”. A afirmação é de Joyce Bueno, militante do Levante Popular da Juventude no Distrito Federal.
Joyce foi uma das debatedoras em live promovida pela Rede Soberania e pelo Brasil de Fato Rio Grande do Sul, na manhã dessa quinta-feira (4). Ao lado de Joyce, estiveram a vereadora de Porto Alegre Karen Santos (PSol) e a socióloga Buba Aguiar, militante do Coletivo Fala Akari e do Movimento Favelas na Luta, do Rio de Janeiro. O debate ainda contou com a participação especial da cantora Raquel Leão, que emocionou as debatedoras ao cantar Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares.
Por mais de uma hora, as convidadas refletiram sobre o racismo que historicamente silencia e mata, traçando um paralelo entre a morte de George Floyd nos Estados Unidos e os assassinatos de jovens negros no Brasil, a exemplo do adolescente João Pedro, morto pela polícia no Rio de Janeiro. Além de discorrer sobre temas como violência policial, encarceramento em massa, invisibilidade, feminicídio e racismo estrutural, as debatedoras destacaram a resistência do povo negro, que há séculos encontra formas para superar os direitos sociais constantemente negados pelas elites brasileiras.
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“Mineápolis é aqui", enfatiza Joyce em referência à cidade onde George Floyd foi assassinado pela polícia, no estado de Minnesota, nos Estados Unidos. "Quando nós pegamos os índices da violência praticada pelo Estado [estadunidense] na cidade de Mineápolis, isso não é a totalidade do número de violência cometida pelo Estado brasileiro [em termos proporcionais]. Temos que denunciar que Minnesota é no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília, na Bahia, pelo Brasil afora”, ressalta.
Joyce recorda que o contexto da pandemia de covid-19 coloca o desafio de como debater isso tendo um Estado omisso, com o presidente Jair Bolsonaro executando políticas de morte contra o povo, com falas eugênicas, descuidadas e sem preocupação com a população.
A militante do Levante ressalta que a população mais afetada pela pandemia é a população pobre, negra, periférica, “que segue sendo escamoteada porque a única política por parte do Estado que chega nesses territórios é a força da repressão e não o conjunto dos equipamentos públicos que precisavam chegar”.
Para Karen, o coronavírus potencializou essa crise e traz junto essa responsabilidade que os governos não estão tendo. “Três meses de isolamento e a prefeitura [de Porto Alegre] não criou uma rede de apoio, nós compramos cestas básicas e distribuímos, mas cadê a responsabilidade do poder público?”, questiona a vereadora porto-alegrense. Ela avalia que existe no Brasil o mito da democracia racial, onde “o racismo se expressa na apropriação cultural, no aculturamento, na colonização de nossa língua, vestimenta, modos de produção que não são valores capitalistas”.
“O país tem como marca uma estrutura social da segregação. Um povo que ao não conhecer sua história de resistência e luta acredita na representação da democracia burguesa”, afirma Karen. Ela questiona o direcionamento dessa revolta histórica para o “ralo eleitoral”. “A gente tem que contribuir com a construção de uma nova nação sob o ponto de vista negro, descolonizado, temos que expandir essa discussão para além do individual, pensar nas instâncias em que o racismo se expressa, no desmonte dos direitos, no Estado policialesco, na forma como o Estado opera o racismo estrutural.”
A luta pelo direito básico à vida nas favelas é uma luta histórica por justiça e direitos iguais, destaca Buba. “É a mesma pauta dos nossos ancestrais, o direito básico à vida. Vem de muito antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que busca garantir diversos direitos, mas acaba sendo um instrumento que garante a segurança da classe privilegiada, não para o favelado, o negro. O instrumento repressor que garante segurança na zona sul é o mesmo que garante as mortes nas favelas do Rio”, afirma.
“O genocídio e o extermínio acontecem em várias etapas do nosso cotidiano. O tiro do fuzil que atravessa nosso corpo é as vezes o último estágio dessa violência, isso quando acaba aí, porque muitas mães desenvolvem doenças terminais, câncer, depressão após perderem seu filho para a violência do Estado”, critica. Para a socióloga, ao se falar de luta contra o racismo, do povo negro, do povo indígena, dos latinos nas Américas, é importante pontuar que essa luta tem que ser cotidiana. “A sociedade não pode prestar atenção e enxergar a estrutura racista apenas quando acontece uma morte de um dos nossos por violência direta, quando uma criança é executada por ação direta da polícia na favela X, quando um rapaz é asfixiado.”
Buba destaca que a luta tem que ser contra a estrutura que invisibiliza e demoniza a cultura negra, contra o sucateamento do SUS que impacta majoritariamente na população das periferias, contra o feminicídio, que diminui entre as mulheres brancas e aumenta entre as negras, pelo direito à educação, entre outras. Além do povo negro ser minoria nas universidades, apesar de ser a maioria da população brasileira, “há uma negativa do direito à educação vista naquele olhar torto quando você diz que é graduado, mestrado ou doutorado”, exemplifica.
Papel do racismo na sociedade capitalista
Ao comparar a sociedade brasileira com a dos Estados Unidos, Joyce destaca que o escravismo foi o modelo social evidente em ambas as sociedades e afirma que não se pode desconsiderar o papel do racismo na sociedade do capitalismo. “Combater racismo é combater o setor socioeconômico que hierarquiza vidas e territórios. A sociedade brasileira é formada a partir da prática de discursos violentos por meio da violência contra os povos originários indígenas, do sequestro da população africana, da colonização e do escravismo”, resgata.
“Contudo – continua Joyce – foram criadas aqui também tecnologias e estratégias de resistência como foram as experiências quilombolas, oriundas do escravismo, processo de confluência de negros escravizados, negros que nasceram livres nos quilombos, indígenas e brancos pobres que nos inspiram até hoje”. A militante lembra que essa pauta não surge em 2020, basta observar o processo histórico.
Karen aprofunda a reflexão sobre as mudanças nas estruturas: “temos que pensar se essa escola pública nos ajuda a ter consciência histórica ou serve apenas para o mercado de trabalho, onde mal e mal dá para se inserir nesse sistema de trabalho precário. O SUS tem que ser 100% público e descentralizado, mas sobretudo aqui no Sul, o que recebemos de denúncias de racismo praticado por médicos é grande. Como conseguimos beber dos nossos ancestrais o que se entende como saúde e não só a defendermos porque ela está sendo privatizada? Água, luz, escola e saúde é o que comunidade quer. Temos que usar esse momento que pessoas discutem política e fazer esses remendos. Mesmo com a covid-19, seguem muitos ataques, pessoas estão sendo sufocadas pela falta de renda e pelo desemprego, que já estava alto”.
Ela chama a atenção para a necessidade de se conectar à população das periferias. “O setor pentecostal está fazendo trabalho de base, ajudando psicologicamente, e com isso vá política. É o momento então de nosso setor fazer política para além do assistencialismo. Para não ficar somente na base do governo Bolsonaro que está estruturado nas nossas comunidades”. Ainda assim, ela afirma perceber “boa parte da esquerda esperando as eleições municipais, mas se abrir mão de fazer essa disputa, não vamos ter moral de chegar nas comunidades e propor qualquer coisa”.
Buba destaca, entristecida, que essa violência da sociedade brasileira não é um problema criado pela população negra. “São estruturas opressoras que foram criadas e voltadas contra nós. Hoje querem que a gente ature isso de forma pacífica e sem reclamar, não querem que a gente exija, mas a gente vai exigir”. Ela afirma que a luta continua para “botar goela abaixo dessa branquitude, dessa sociedade, que somos seres detentores de direitos, da nossa forma, do nós por nós, como são as favelas do Rio dando um show de solidariedade porque fomos completamente abandonados pelo poder público enquanto população que tem direitos”.
“O racismo deve nos estarrecer, nos indignar e entristecer, mas não tem capacidade de nos calar e paralisar. A dor do luto é luta, força como combustível para continuar a construção de outra sociedade que não essa onde precisamos denunciar que vidas negras importam”, assegura Joyce. “Derrubar o racismo é construir um processo transformador e isso vai acontecer de várias formas, no espaço institucional, aprendendo com experiências das mulheres periféricas, resistência da juventude, valorização da nossa cultura, prática religiosa. O povo negro desenvolveu várias respostas a essa violência que assola nossas vidas”, conclui.
O debate, mediado por Katia Marko do Brasil de Fato RS e Letícia Chimini da Rede Soberania, encerrou com uma fala e a voz de Raquel Leão. Na avaliação da cantora, as convidadas deram aula de experiência real. “Vieram várias memórias de coisas que eu vivi e que neguei por um tempo. Já componho há algum tempo, minha música tinha uma sonoridade muito afro, mas as letras não, porque fui criada como uma criança branca dentro de um sistema católico tradicional. Na música chamada Leoa, falo que precisamos mostrar nossas capacidades inúmeras e diversas, somos muito fortes. Em outro poema eu digo que ser negro não é pra qualquer um. Que a gente possa festejar mais nossa capacidade de se reinventar”.
Assista ao debate completo:
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Fernandes e Katia Marko