A pandemia de covid-19 alterou a dinâmica social e econômica no mundo inteiro em 2020 e os impactos nos países hermanos, Brasil e Argentina, têm sido assustadoramente diferentes. Até a última terça-feira (2), a Argentina havia registrado 569 mortes por conta do novo coronavírus, enquanto o Brasil ultrapassava a triste marca de 31 mil perdas, sendo o país sul-americano mais afetado pela doença.
Poderia ser argumentado que o Brasil é um país maior, então, logicamente haveria mais casos. Mas ainda multiplicando o número de óbitos na Argentina por cinco, para respeitar grosseiramente a proporção populacional, a diferença entre os dois países continua abissal. Na Argentina tem morrido 12 pessoas por milhão de habitantes, enquanto no Brasil esse número sobe a 140, segundo levantamento Our World in Data, da Universidade de Oxford.
Entre Brasil e Argentina existem, de fato, diferenças de escala consideráveis: o Brasil tem uma população quase cinco vezes maior, uma superfície territorial que equivale a três Argentinas e um Produto Interno Bruto (PIB) que quadruplica o do seu país vizinho. No entanto, ambos países ocupam posições geopolíticas semelhantes, têm economias dependentes e apoiadas na exportação de produtos primários (agropecuários e minerais), são relativamente industrializados, têm uma renda per capita parecida e uma estrutura social profundamente desigual. Além disso, o coronavírus SARS-CoV-2, causador da pandemia de covid-19, pode ter chegado aos dois países na mesma época: o primeiro caso oficialmente confirmado no Brasil foi em 26 de fevereiro, enquanto na Argentina foi registrado em 3 de março.
::Estudo aponta que coronavírus começou a se espalhar no Brasil no início de fevereiro::
Se tratando então de países semelhantes, como se explicam esses indicadores tão díspares? Uma parte importante da explicação parece ser a atitude que cada governo tomou em relação à promoção da quarentena como principal estratégia sanitária de combate ao avanço da doença.
Medidas como o distanciamento social e o isolamento são formas de diminuir as possibilidades de circulação do vírus, portanto, de novos contágios, e consequentemente, de mais mortes.
Na medida em que a quarentena diminui a quantidade de infectados, também reduz a demanda por leitos e atenção especializada, evitando o colapso do sistema de saúde e a falta de atendimento aos casos mais graves da doença, que também produzem mortes. Com altas taxas de ocupação de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e falta de respiradores, o sistema de saúde brasileiro está perto de atingir esse limite.
Quarentena na Argentina
A Argentina pertence ao grupo de países que aderiram à quarentena total, adotando algumas das medidas de restrição da circulação mais severas da América Latina e com alto nível de adesão por parte da população, segundo observou Raúl Aragón, diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidade Nacional de la Matanza. Em meados de março, o país fechou as fronteiras e proibiu os voos comerciais, domésticos e internacionais, até setembro. Os únicos habilitados para entrar no país são os cidadãos argentinos e os residentes autorizados.
Em 20 de março, o governo nacional presidido pelo peronista Alberto Fernández (Frente de Todos) decretou o isolamento social obrigatório, que foi considerado "prematuro" por ter sido estabelecido com um número pequeno de casos. Foram fechadas escolas e universidades, também proibidas as atividades que promovessem a aglomeração de pessoas, como shows e jogos de futebol. Inicialmente, estavam permitidos apenas comércios considerados essenciais e as pessoas só podiam circular fora de casa para comprar alimentos ou medicamentos, sendo necessária uma autorização mesmo para exercer atividades liberadas.
Nesta fase, a quarentena foi garantida pela ampliação do policiamento nas ruas e quem estivesse violando o isolamento obrigatório poderia ser detido por delito contra a saúde pública. Foram criados serviços telefônicos para denunciar situações de descumprimento. Em fins de abril, já eram mais de 62 mil pessoas detidas ou notificadas judicialmente por violar a quarentena.
Com o passar das semanas, o isolamento foi relaxando, o governo estabeleceu algumas exceções e flexibilizou a suspensão de atividades. Progressivamente, novas categorias profissionais voltaram a trabalhar, os bancos foram reabertos, passaram a ser permitidas consultas médicas e odontológicas não emergenciais, além das atividades de laboratórios médicos, dos caixas eletrônicos e de alguns comércios. Atualmente, a quarentena é mais estrita ao principal foco da doença - a região metropolitana de Buenos Aires - sendo necessário um certificado de circulação para se deslocar em qualquer parte do país.
Brasil e o isolamento
Em contraste, o Brasil não restringiu nacionalmente a circulação de pessoas como estratégia para conter o avanço da covid-19, seguindo um modelo liberal de enfrentamento similar ao de Donald Trump nos Estados Unidos. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se opõe às recomendações de isolamento social e é contrário às medidas de restrição implementadas por governadores e prefeitos. Tem inclusive apoiado manifestações contra a quarentena, que ademais exigem o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e a intervenção militar. Segundo recente declaração do ex-ministro de Saúde Luiz Henrique Mandetta, o presidente sabe da gravidade da pandemia, mas continua boicotando as medidas de isolamento porque “prioriza a economia”.
A principal ação de Bolsonaro em relação à pandemia tem sido a de promover o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, sem nenhuma evidência científica que apoie a administração dessas drogas como parte do tratamento da doença. O Ministério da Saúde chegou a publicar um protocolo para a utilização dos medicamentos em todos os pacientes com covid-19, caso haja consenso entre médico e paciente. O Conselho Federal de Medicina (CFM) não tem se oposto à sua prescrição, embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) não aconselhe o seu uso.
É preciso destacar que, em países federais como Brasil e Argentina, uma medida extrema como a quarentena, que significa uma forte restrição às liberdades individuais e à atividade econômica, precisa de uma condução centralizada e coordenada entre os níveis de governo federal, estadual e municipal.
Na Argentina, o governo nacional liderado por Fernández assumiu a autoridade central, coordenando ações com governadores e prefeitos, inclusive de partidos políticos opositores. Nas últimas coletivas de imprensa, o presidente apresenta-se junto ao governador da província de Buenos Aires - um aliado, pertencente à mesma frente - e o chefe de governo da Cidade de Buenos Aires - uma liderança do principal partido opositor -, possivelmente com o objetivo de mostrar unidade e trabalho de equipe.
No Brasil, ao contrário, não existe uma condução centralizada e coordenada da estratégia sanitária, que acabou sendo decidida de forma fragmentada por governadores e prefeitos. Instaurou-se um conflito político, com o presidente passando a enxergar àqueles que promoveram a quarentena em seus estados e municípios como inimigos. No marco deste conflito, foram protocolados pedidos de impeachment que obrigaram o presidente, para se defender, a aproximar-se da “velha política” com a qual ele dizia querer romper.
Conflitos políticos
Os conflitos aconteceram não apenas entre níveis de governo, mas também no interior do Executivo federal: em menos de um mês, dois ministros de Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, saíram após discordar de Bolsonaro sobre a necessidade do isolamento e o uso da cloroquina para tratar a infecção. Os ex-ministros, ambos médicos, ligados ao setor privado e com perfil técnico, foram substituídos por Eduardo Pazuello, um general do Exército, paraquedista e sem experiência em estratégias sanitárias.
A nomeação de Pazuello implicou inédita militarização do ministério, seguindo uma tendência do Poder Executivo, que já tem um dos gabinetes mais militarizados da história do Brasil: a presença de membros das Forças Armadas supera, inclusive, a maior parte dos governos da ditadura militar, chegando à marca de quase 3 mil. Desde que chegou ao Ministério da Saúde, ainda durante o mandato de Teich, Pazuello já nomeou pelo menos treze militares para atuar na pasta, que se somaram aos seis que entraram junto com ele.
As medidas adotadas para enfrentar a pandemia nos dois países parecem coerentes com a orientação político-econômica dos respectivos governos: de um lado a proteção e intervenção, de outro o laissez-faire e o genocídio.
Fernández, que assumiu recentemente, em dezembro do ano passado, herdou uma situação catastrófica deixada por seu antecessor Mauricio Macri: um país em recessão, fortemente endividado, desindustrializado, com o valor patrimonial das empresas destruído, com altos índices de inflação e pobreza. A orientação liberal do governo anterior havia inclusive extinguido o Ministério de Saúde, rebaixado ao patamar de secretaria em 2018. Em três meses de governo, Fernández já tinha tomado medidas de orientação keynesiana, com políticas protecionistas e de reativação do mercado interno, outorgando ao Estado um papel ativo como elemento intervencionista regulador.
A agenda macroeconômica ultraliberal do ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, vai no sentido oposto da atual orientação argentina: é não-intervencionista, anti-direitos, privatizante e pró-empresarial. Seu programa incluiu a supressão de direitos trabalhistas e do próprio Ministério do Trabalho, uma regressiva reforma da previdência, a criação de uma Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, a desvalorização dos salários, cortes orçamentários para as universidades e manutenção do teto de gastos na saúde.
Essa agenda é complementada pelos aspectos genocidas do bolsonarismo. As inúmeras referências ao nazismo e ao fascismo por membros do Executivo convergem com suas características gerais: um governo de extrema direita, estreitamente relacionado com o setor financeiro, com militares das Forças Armadas, com agentes de segurança e milícias; uma ideologia ancorada no irracionalismo de Olavo de Carvalho, com elementos reacionários “terrivelmente cristãos”; uma retórica popular anticorrupção, anticomunista e armamentista, apontando para uma guerra contra a Venezuela.
Deutschland über alles ontem, Brasil acima de tudo hoje, porém perfeitamente alinhado com o 'America first' de Trump.
As diferentes posturas adotadas pelos governos do mundo frente ao avanço da pandemia têm sido sintetizadas no dilema saúde versus economia, como uma espécie de escolha trágica. Nesse sentido, a principal justificativa dos governos que não implementaram quarentenas totais que salvariam vidas é o risco da diminuição da atividade econômica e suas consequências, como a falência de empresas e o aumento do desemprego.
Diante dessa suposta disjuntiva, o presidente argentino declarou que preferia “10% mais de pobres e não 100 mil mortos por conta do coronavírus” e que “da morte não se volta, mas a economia se recupera". Já o presidente brasileiro, priorizando a economia, chegou a lançar uma campanha com o slogan “o Brasil não pode parar” - proibida pela Justiça e logo desmentida pela Presidência - porque, segundo ele, afinal “todos nós iremos morrer um dia”.
Como foi analisado, a enorme divergência na quantidade de mortes pelo novo coronavírus no Brasil e na Argentina parece estar ligada ao estabelecimento da quarentena obrigatória, que, por sua vez, depende da iniciativa do Executivo federal e reflete sua orientação político-econômica. No pós-pandemia, será possível ver se “a opção pela economia” vai se reverter em indicadores econômicos mais favoráveis que os dos países que preferiram minimizar o desastre humanitário. As recentes análises do Banco Mundial indicam que a tendência não será bem essa: o organismo projeta níveis de queda do PIB parecidos para Brasil (-5%) e Argentina (-5,2%) em 2020.
*Valentina Suárez Baldo é assistente social e doutora em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Arthur Lobo Costa Mattos é psicólogo e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Edição: Mariana Pitasse