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A campanha das Diretas Já e a luta pelo Fora Bolsonaro

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A luta pela derrubada de Bolsonaro seria incompleta, sem denunciar a posse de Mourão, e sem a antecipação de eleições para a presidência ainda este ano - Michael Dantas/AFP
Como em 1984, a esquerda está dividida sobre o que fazer

Nada é tão poderoso neste mundo como uma ideia cujo momento chegou.

Sabedoria popular espanhola

Não se podia lutar pelas Diretas Já, em 1984, sem gritar abaixo a ditadura. Não se pode lutar em defesa das liberdades democráticas, em 2020, sem gritar Fora Bolsonaro. Nada mais, mas nada menos do que isso. A disseminação de manifestos na última semana confirma que a disputa pela liderança da oposição a Bolsonaro, nas redes sociais, começou antes até das mobilizações.

Em especial, o Juntos é perigoso, e fizeram muito bem aqueles que não assinaram, porque revelaram lucidez. Não porque seja supra-partidário, essa forma até pode ser útil. Não pela adesão de personalidades com identidade com o centro ou a direita, esse argumento é sectário. Mas porque não se pode lutar contra o perigo de autogolpe sem exigir Fora Bolsonaro. 

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Analogias históricas, se respeitadas os seus limites evidentes, podem ser inspiradoras. Os dois elementos em comum entre a situação política que estamos atravessando, quando comparada com a luta pelas Diretas Já, são: (a) que, em ambas as conjunturas, estamos em luta contra governos que querem se perpetuar no poder, ameaçando as liberdades democráticas; (b) que, em ambas conjunturas, estamos diante de crises econômicas na forma de recessão prolongadas que transbordam em crise social e política. Mas são, ao mesmo tempo, muito distintas por, pelo menos, quatro principais diferenças.

A primeira é: (a) estamos diante de uma pandemia mundial que, no Brasil, assume a forma de uma calamidade catastrófica, e a iminência de centenas de milhares de mortos, com incontornável responsabilidade do governo e gera emergência; (b) em 1984 a campanha era realizada contra o último governo da ditadura militar, e a luta pelo Fora Bolsonaro é preventiva diante do perigo de um autogolpe bonapartista[1]; (c) ao contrário de 1984, não estamos diante de uma situação pré-revolucionária, portanto, de auge de lutas, estamos ainda em uma situação reacionária; (d) última, mas o mais importante, é que diferente de 1984, nenhuma fração burguesa importante é a favor da derrubada de Bolsonaro.[2]

Ou seja, prevalece na classe dominante a defesa de que Bolsonaro possa cumprir, sem maiores conflitos, o seu mandato até o fim. Desde que renuncie aos arroubos golpistas, e se distancie da corrente neofascista, portanto, aceite uma tutela.[3]

Como em 1984, a esquerda está dividida sobre o que fazer. Uns estão apaixonados pela “astúcia” da tática da Frente Ampla, desconsiderando a necessidade da Frente Única de Esquerda como condição para levar a luta até o fim. Outros opõem-se, ou secundarizam a defesa da tática da unidade na ação mais ampla para impulsionar o impeachment de Bolsonaro.

A disputa pela liderança pode aparecer como uma batalha de protagonismo pessoal ou partidário, mas não sejamos incautos. É uma disputa de linha, de orientação, de tática, de projeto. A diferença explícita na oposição é lutar ou não para derrubar Bolsonaro antes das eleições de 2022. A diferença subentendida é lutar ou não, quando a crise se agravar, contra a posse de Mourão, e por eleições antecipadas. A diferença oculta dos liberais, como FHC, é como resistir a Bolsonaro sem facilitar o caminho para que a esquerda possa voltar à disputa real pelo poder.

Porque estas diferenças são importantes é que é necessária uma Frente Única de Esquerda para lutar pela unidade de ação a partir de uma posição comum. Infelizmente, uma parcela importante da esquerda anticapitalista brasileira diminui a importância da Frente de Esquerda, e outra a necessidade da unidade de ação.

No contexto da presente conjuntura, a luta pela derrubada de Bolsonaro seria incompleta, sem denunciar a posse de Mourão, e sem a antecipação de eleições para a presidência ainda este ano. E não são livres eleições, se Lula não recuperar seus direitos políticos. Toda a dinâmica desta luta é muito difícil, evidentemente. Este desenlace favoreceria, potencialmente o PT e Lula? Eleições são sempre incertas, mas sim, favoreceria. É isso que explica os limites do manifesto Juntos. A teoria dos “dois demônios” ou dos dois perigos “simétricos”, a defesa do caminho do meio, o “centro democrático”. Ou seja, aqueles que consideram que Bolsonaro é um monstro, mas não se pode correr o risco da esquerda chegar em um segundo turno com chances de vencer.

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O medo de uma capitulação de Ulysses Guimarães às pressões da esquerda pelo desmantelamento do aparelho criminoso da ditadura, não o perigo de um autogolpe de Figueiredo, explica o acordo de Tancredo Neves com os militares em 1984. Esse “grande medo”, e não a iminência de um autogolpe de Bolsonaro, explica a ausência do Fora Bolsonaro nos manifestos.

Notas

[1] As Diretas, como ficaram conhecidas as jornadas de 1984, foram a maior mobilização política de massas da história do Brasil do século XX. Foi na campanha pelas Diretas que o Datafolha iniciou o cálculo de pessoas presentes nas manifestações usando a medição do número de metros quadrados ocupados pelos presentes. Este método é um critério pouco polêmico. O Datafolha estimou que 300.000 pessoas estiveram na Praça da Sé em São Paulo no dia 25 de Janeiro de 1984. Durante os noventa dias de mobilizações estima-se que saíram às ruas em todo o país mais de 5 milhões de pessoas. Em 1984, a PEA (População Economicamente Ativa) era estimada em 40 milhões. Mais informações em:  http://acervo.folha.com.br/fsp/1984/01/26/2

Consulta em 15/11/2011.

[2] Embora o governo Figueiredo tenha sido paralisado, não chegou a ser derrubado no dia 25 de abril de 1984. A crise do governo se transformou em crise de regime. A principal instituição do regime militar, as próprias Forças Armadas, descobriram-se desmoralizadas diante da vontade da nação expressa nas ruas. Figueiredo ficou suspenso no ar, ou seja, por um fio. Faltou o empurrão final. Até o fim do mandato, Figueiredo deixou de  poder governar. Sua queda foi evitada por uma operação política complexa que envolveu governadores da oposição como Tancredo e Brizola, o alto comando das Forças Armadas, e até a Igreja Católica. O governo não ruiu, mas a ditadura acabou. Figueiredo manteve seu mandato, mas, politicamente, o regime militar foi derrotado. As liberdades democráticas conquistadas nas ruas foram garantidas e, finalmente, o regime militar acabou. A força política das Diretas revelou-se insuficiente para alcançar, imediatamente, o direito de eleger pelo sufrágio universal o presidente da República. A democracia liberal brasileira nasceu de uma luta política de massas, a ditadura foi deslocada, mas o governo Figueiredo não caiu. O fim da ditadura foi amortecido por um grande acordo que, finalmente, apesar de ter sido respeitado, nem sequer pôde ser comprido. Quis o acaso que o resultado das Diretas terminasse sendo esdrúxulo: Tancredo Neves foi eleito presidente, tendo José Sarney como vice, mas não tomou posse, porque veio a falecer vítima de uma doença que, misteriosamente, ninguém suspeitava existir. 

[3] As Diretas tiveram desde o início a direção burguesa do PMDB, embora Lula fosse o orador mais entusiasticamente aplaudido em todos os atos, e a vanguarda mais mobilizada fosse petista. A ditadura foi surpreendido pela decisão de uma parcela da direção do principal partido de oposição, o PMDB, um partido socialmente burguês e politicamente liberal, de tentar impulsionar uma mobilização de rua pelas Diretas, subvertendo o calendário da transição controlada pelo regime. O fator detonador foi o impacto da crise econômica detonada pela crise da dívida externa. Em dois anos, entre 1982/84, o crescimento da inflação e do desemprego abriram uma crise social que incendiou o mal-estar no proletariado e provocou uma séria, ainda que minoritária, divisão burguesa, arrastando a classe média para o campo da oposição à ditadura. Esta nova relação de forças se traduziu em um isolamento político do governo que inviabilizou o projeto da transição pelo alto, tal como tinha sido elaborado durante o mandato de Geisel/ Golbery.

Edição: Rodrigo Chagas