Respeitem a “Casa Sagrada” da Democracia, onde só o poder popular ergue a voz
Por Marília Lomanto Veloso*.
Pássaro acorrentado,
Torno-me combatente.
Combatente, não assistirei mudo
À morte de meus irmãos.
Recolho a palavra, o canto, o ferro
E gravo nos ombros do vento meu grito.Pedro Tierra
Discursos de ilegítima intimidação contra as instituições republicanas que sustentam o Estado Democrático de Direito, merecem profundo desapreço e suscitam imediato debate sobre os rumos da Democracia no Brasil, por ser essa uma questão aflitiva de urgente pauta diante do caos desse país há tão pouco tempo marcado por transformações sociais.
Respirava-se a ilusão de que “o golpe de classe com uso da força militar” (golpe Militar de 1964), não ousasse mais ecoar em um campo minado por processos de transição democrática, com a vitória de um projeto popular que significou um alento para as classes vulneráveis, as diversidades, os movimentos sociais. A luta política de 1964 registra esse clima de resistência: “Nós, que lutamos pela libertação nacional e pela Democracia, como passo rumo às transformações socialistas no Brasil, temos a firme disposição de procurar contribuir para tornar possível a unidade das forças que combatem o imperialismo e a ditadura militar. O povo será vitorioso (A Repressão Militar-Policial no Brasil. O Livro chamado João)".
Rubem Alves, (Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras) traduzindo o significado de questão ontológica lembra a filosofia grega na sua obsessão por “estabelecer um discurso que falasse sobre a natureza íntima das coisas, que permanecesse a mesma, em meio à multiplicidade de suas manifestações”, (grifos do autor). No Brasil sob a gestão abstrusa de Jair Bolsonaro, a democracia é apenas uma das múltiplas manifestações de uma “coisa” que permaneceu a mesma, ou seja, a essência golpista íntima do poder que explodiu em medo, impulsionou o ódio e as “crises” que consolidaram o “golpe de classe com força parlamentar” de 2016, legitimado pelo sistema de justiça, gerando o desonroso sequestro da soberania popular em uma das mais berrantes farsas virtuais do processo de escolha de representação política em nosso país.
Esse palco de tragédias gerou capsulas convulsivas de regressão da ordem democrática, sedimentadas no território onde fertilizavam produtos importados de mídias sociais e tecnologias de alta complexidade, das “guerras hibridas”, das “revoluções coloridas” e “não convencionais”, a nova invenção dos Estados Unidos para os golpes com que derruba governos, em um “ataque cirúrgico” de elevada precisão, “muito mais econômicos” que as tradicionais ocupações militares (Andrew Korybko, Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes).
Esse contexto tingiu o horizonte brasileiro com a Crise Jurídica onde o lawfare, o ativismo do Poder Judiciário e do Ministério Público agiam em evidente violação de princípios constitucionais, levando ao descrédito o próprio sistema.
A Crise Política, criminalizou (e permanece criminalizando) movimentos sociais, partidos políticos, manifestações populares, desmontando o patrimônio nacional, desmoralizando a imagem externa do Brasil, enquanto forças conservadoras promoviam recuos nas conquistas civilizatórias (consolidadas nos governos Lula e Dilma).
Duas dessas convulsões valem destaque, pela insistência em agredirem as linhas divisórias entre os poderes e colocarem em perigo permanente o próprio Estado Democrático de Direito.
A uma, a Crise Ética do “governo” de Jair Bolsonaro (ele próprio ator principal) e a “horda” desnutrida de valores que o acompanha, ocupando pastas e postos. Mais identificados com uma “claque” “caterva” “camarilha”, “cambada”, “tropa”, títeres, esses “agentes públicos” se movimentam ao comando da caricata manipulação de cordéis, pelo “homem que manda”. Repugna a capacidade coletiva dessa representação de “desenho animado”, de praticar transgressões, por mera subserviência, a Códigos de Ética, a regulamentos disciplinares, a orientações legais de condutas de pessoas que cuidam da coisa pública.
A “reunião” de ministros com Jair Bolsonaro, em 22 de abril de 2020, de ampla divulgação, parecia um “bate-barba” de Alcova Sadiana. Causou assombro e exige imediata ação do sistema de justiça criminal, que tanto linchou moral, ética e politicamente quem elegia como “suspeito”. Qualquer pessoa ou coletivo da mais achatada “classe social” teria postura mais harmonizável com o local onde aconteceu o desastrado encontro ministerial, com a destinação de interesse público (presume-se) a dar rumo aos objetivos do “festim dissoluto” do chefe da claque, servido na bandeja midiática ao Brasil e ao mundo.
A Crise Institucional, de simbolismo especialmente inflamável, tornou-se uma constante ameaça à normalidade política, permitindo, no contexto do modo Bolsonaro de macular a República, intimidação por forças instituídas no Texto Político de 1988 para “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”. Nunca, para alçar voo da reserva e acenar com o horizonte de uma ingerência ferina, exibindo patentes como passaporte para a sabotagem escancarada às trilhas libertárias que o Brasil estava experimentando.
A intromissão das Forças Armadas em território fora de seu “tanque constitucional” não é fato isolado. Inspirados na Doutrina da Segurança Nacional e de seu significado positivista/totalitário/biológico, esse contingente ainda solfeja contra segmentos que escapem à lógica intransigente, copiada dos Estados Unidos, que abomina situações onde as diferenças da contemporaneidade se apresentem, podendo destruir o corpo social, exigindo que sejam extirpadas (Aluizio Pomar: Documentos revelados).
Saltam aos olhos os realces da “ocupação”, no atual governo, de espaços públicos por militares, instalando-se, com isso, um processo de ideologização de consequências nocivas para os ritos democráticos, permitindo que se agitem em direção a mudanças frontais na correlação de forças e exaltem um papel político incompatível com suas funções constitucionais. Daí a importância, para a democracia, do controle civil sobre as Forças Armadas, dos riscos da ausência desses limites. (Rafael Cortez, Tendências Consultoria Integrada).
Em recente episódio em reação a ato legitimo do STF, o General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, escancarou a militarização do governo Jair Bolsonaro. Em nota à Nação Brasileira, em linguagem autoritária, desafiadora do ambiente democrático, infectada pela rudeza, o fio agressivo, impositivo e totalitarista das ordens que a cultura militar, inspirada na disciplina e na hierarquia, costuma emitir para os subordinados, o militar/ministro considerou “inconcebível”, “inacreditável” e de “consequências imprevisíveis” para a estabilidade Nacional, eventual apreensão do celular do presidente Jair Bolsonaro.
A nota encarniçou as patentes de Reserva da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), escola de formação dos oficiais do Exército, (dentre esses, Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão e sete ministros, incluindo o general Walter Souza Braga Netto) que logo manifestaram apoio ao General/Ministro. Nota e manifesto, na verdade, significam o pacto macabro que pode traumatizar a sociedade, celebrado entre "colegas" com capilaridade para ancorar o desrespeito que Jair Bolsonaro demonstra com a estabilidade democrática.
Poderes, instituições, sociedade civil, mídia se pronunciaram contrariando a nota do General Augusto Heleno. O documento infectado de intencionalidade desviada das funções que a Carta Politica de 1988 atribuiu às Forças Armadas, compromete tanto as patentes que o governo exibe em declarada demonstração de disparidade de forças, quanto as que, do alto do Pico das Agulhas Negras, romperam o silencio em que deveriam se quedar e se apressaram em demonstrar a musculatura que tonificam para se alinharem à demonstração de ameaça lamentavelmente emitida por um militar que ocupa a pasta de ministro do governo Jair Bolsonaro.
Rubem Alves (idem) lembra Sören Kierkegaard, quando filosofava em sua veia poética: “Se um dançarino desse saltos muito altos, poderíamos admirá-lo. Mas se ele tentasse dar a impressão de poder voar, o riso seria seu merecido castigo, mesmo se ele fosse capaz, na verdade, de saltar mais alto que qualquer outro dançarino”.
Jair Bolsonaro e os/as figurantes que manipula na peça dramática que é seu governo burlesco não são dançarinos, nem seus saltos provocam admiração. Tanto o general quanto os que querem voar do Alto das Agulhas Negras, poderiam provocar o riso. Antes de se arriscarem a tais aventuras, deveriam aprender, com Kierkegaard, que o salto é terrestre e momentâneo. “Mas o voo nos faz lembrar os seres emancipados das condições telúricas, um privilégio reservado para as criaturas aladas...”.
A Democracia é uma “criatura alada”. Suas asas estão na vontade popular que pode dar saltos, voar e provocar risos e aplausos. Fora desse universo libertário, não há espaço para voos. Só para o arbítrio e a ilegalidade.
*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, doutora em Direito, membro da ABJD e Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.
Edição: Rodrigo Chagas