Em 1º de outubro de 1949, nascia a República Popular da China. Com ela, nascia, igualmente, uma proposta de um novo modelo de organização no campo chinês. Em 28 junho de 1950, o governo da recém-nascida República Popular da China institui uma nova lei agrária, a qual pretendia redistribuir a terra por pequenos e médios camponeses. Seria no seguimento deste processo que, em 1953, um movimento de coletivização de terras pretendia agrupar os camponeses em cooperativas.
Este processo aprofundar-se-ia, numa primeira etapa, em 1955 e, num segundo momento, em 1958, quando então se criam as comunas populares. Depois do período da Revolução Cultural (1966-1976), a concepção de cooperativas é reformulada, pelo que, gradualmente, é dado um espaço crescente às produções familiares e aos mercados livres rurais, nomeadamente a partir de 1978, quando novas orientações políticas são aprovadas no XI Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC).
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Das reformas agrárias à Reforma Agrária Chinesa
A modernização da sociedade que se opera a partir do século XVIII é concomitante com revoluções agrárias que conduziriam a transformações profundas na organização da sociedade moderna. A Revolução Francesa, por exemplo, foi acompanhada por uma importante componente agrária e camponesa. No processo de luta classista que então se verificou, os bens do clero e da nobreza foram ora nacionalizados, ora vendidos, num processo que permitiu que se operasse uma redistribuição da propriedade a favor de alguns segmentos camponeses.
As mudanças que, desde o século XVIII, se foram operando no espaço rural, fruto da industrialização da agricultura e da consequente transformação da classe social campesina e do crescimento do proletariado urbano e rural, foram marcadas, ao longo dos séculos XIX e XX, por intensas e, por vezes, violentas lutas pela terra.
Porém, foi, apenas, em 1910, quando da revolução mexicana, que o conceito moderno de reforma agrária tomaria forma.
A reforma agrária surgia, então, como uma exigência de camponeses pobres e/ou sem terra, os quais exigiam uma mudança da propriedade da terra, com vista a uma transformação dos padrões de produção e de distribuição de riqueza. A palavra de ordem Terra e Liberdade passou a sintetizar as aspirações dos camponeses pobres mexicanos.
Desde então, e ao longo do século XX, várias reformas agrárias veriam a luz do dia: na União Soviética, na República Popular da China, na Europa (central, oriental e meridional), na Índia, nas ex-colônias da antiga Indochina francesa, na América latina ou na África recém-descolonizada.
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A China pré-revolucionária e as condições precários de camponeses
Nas vésperas da Revolução, a China tinha uma população de mais de meio bilhão de pessoas, a maioria das quais na parte oriental do país, a leste e a sul de uma diagonal que liga o norte da Manchúria à fronteira da Birmânia. A agricultura, era, então, intensiva e arcaica, com uma forte presença de campos de arroz, exceto no clima seco da região norte. A fome era, então, uma constante na vida dos camponeses.
A arcaicidade que dominava a agricultura chinesa na sociedade pré-revolucionária advinha de uma concentração da propriedade rural nas mãos de uma minoria. Este facto criava uma situação de desigualdade entre a minoria proprietária e a maioria camponesa, que então se via sujeita a uma exploração desmedida. Seria, aliás, esta situação que o Partido Comunista Chinês (PCC), fundado em 1921, combateria e denunciaria.
É assim, por força das circunstâncias históricas e da precariedade massiva que reinava nos campos chineses, que o PCC se torna, depois de 1927, numa organização camponesa. A sua base guerrilheira seria, deste modo, essencialmente, de origem campesina, e seria precisamente esta base que lhe permitiria vencer a guerra civil.
Em agosto de 1927, sob a direção de Qu Qiubai, Zhou Enlai, Zhu De e He Long, é empreendido o levante de Nanchang e, em setembro do mesmo ano, o levante da Colheita de Outono, na região das montanhas Chinggang. Nasce, deste modo, o primeiro Exército Vermelho de Operários e Camponeses.
Os comunistas chineses fortalecem, a partir de então, a sua posição entre as massas rurais, sobretudo através de uma cuidadosa política agrária, num momento em que a luta pela terra se torna num elemento essencial da luta política.
No contexto da guerra que então se travava, uma reforma agrária é, desde logo, lançada nas zonas libertadas. É por esta razão que, antes mesmo da vitória definitiva do Exército Popular de Libertação (EPL), o PCC lança, ainda em 1947, um projeto de lei de reforma agrária, com 16 artigos, o qual, aplicando-se às regiões por ele controladas, se inseria num projeto avançado de mobilização massiva de camponeses.
Por meio do artigo 1º da lei, é "abolido o sistema agrário de exploração feudal e semifeudal. Fica instituído o sistema agrário da terra para quem a trabalha". Por sua vez, por meio do artigo 2º, "são abolidos todos os direitos de propriedade territorial dos latifundiários".
O nascimento da República Popular da China e da reforma agrária
Em 1º de outubro de 1949, é proclamada a República Popular da China. Menos de um ano depois, a 28 de junho de 1950, é promulgada a lei de reforma agrária.
Termina, deste modo, um ciclo de guerras civis e de ocupação estrangeira, abrindo-se novas perspectivas que haviam sido prenunciadas pelo movimento 4 de maio de 1919: o reconhecimento do papel da juventude, a emancipação das mulheres, a apropriação e difusão da ciência moderna e o uso da linguagem popular na literatura. A modernização trará, igualmente, um novo modo de produção, a escolha de um novo modelo de desenvolvimento econômico e novas relações com o mundo.
A reforma agrária tinha como objetivo o confisco de terras de grandes proprietários e a sua distribuição entre camponeses sem terra ou pequenos camponeses. Pretendia-se, assim, acabar com o sistema da grande propriedade e substituí-lo por um sistema de propriedade camponesa.
Até 1952, foram distribuídos 47 milhões de hectares a 300 milhões de camponeses, ou seja, aproximadamente 50% das terras cultivadas foram, então, redistribuídas; aos camponeses mais abastados foram entregues as parcelas que os próprios, através do próprio esforço, poderiam trabalhar, enquanto os latifundiários ficaram, apenas, com a terra necessária para trabalhar por sua própria conta.
Apesar disso, predominava a fragmentação agrícola, o que, mantendo uma baixa produtividade, fazia com que, gradualmente, formas antigas de exploração novamente se impusessem.
É por essa razão que, em fevereiro de 1953, os camponeses são incitados a organizar-se em equipes de entreajuda mútua, as quais deveriam reagrupar 4 ou 5 famílias. O camponês continuava, contudo, proprietário das terras e dos instrumentos de produção. Ainda em dezembro daquele ano, o Comitê Central do PCC proclama o desenvolvimento de cooperativas de produção, com caráter semissocialista. Estas cooperativas tinham como objetivo a unificação de parcelas, de forma a rentabilizar a utilização dos meios de produção; apesar disso, a terra continuava a pertencer “a cada família, assim como os animais, equipamentos e ferramentas”, como detalha Wladimir Pomar, ainda que a sua utilização passasse a ser comum.
Em 25 de julho de 1955, o Presidente Mao Zedong manifesta que, em 1958, metade dos camponeses deveria estar organizada em cooperativas. Assim sendo, em outubro de 1955, uma resolução do Comitê Central do PCC preconiza, segundo Trolliet, que “onde as condições estão prontas, serão estabelecidas, a título experimental, cooperativas de tipo avançado, inteiramente socialistas”. Esta forma de cooperativismo generaliza-se no fim de 1956 e no início de 1957, sendo, então, criado um tipo de cooperativas em que a propriedade privada da terra e dos meios de produção é totalmente substituída pela propriedade coletiva. Este tipo de cooperativas foi-se afirmando no panorama rural chinês, e, em 1957, “cada uma das 740 mil cooperativas de tipo superior possuía 168 famílias, com área média de 140ha”, como aponta Wladimir Pomar.
Em 5 de maio de 1958, Liu Chao-Tsi anunciava a linha política que marcaria as opções econômicas do PCC. Concede-se, a partir de então, prioridade à indústria pesada, em detrimento da indústria leve, e à indústria, em detrimento da agricultura, e inicia-se o grande salto em frente. Neste contexto, surge a ideia de combinar a indústria, o comércio, a agricultura e a escola num único organismo e, em agosto desse mesmo ano, o Comitê Central do PCC adota uma resolução a favor da criação, em todo o território chinês, das comunas rurais.
Do grande salto em frente à Revolução Cultural
Em agosto de 1958, o Comitê Central do PCC adota uma resolução a favor da criação, em todo o território chinês, das comunas rurais.
Resultado da fusão de várias cooperativas rurais, cada comuna contava, aproximadamente, 5.000 famílias, 4.000 hectares de terras cultivadas e 9.000 camponeses, num processo de organização do trabalho agrícola em que cada trabalhador recebia a sua parte, segundo o seu trabalho. Segundo Trolliet, 80% da população rural comia, no final de 1958, em cantinas populares, fruto da organização do trabalho e da vida nas comunas.
Porém, apesar da boa recolta que se verificou no ano de 1958, os 4 anos que se seguiriam (1959-1962) seriam anos de péssimas recoltas, num momento em que a agricultura sofreria, igualmente, com condições climatéricas adversas.
Com efeito, entre 1959 e 1962, várias regiões do país são afetadas por fomes e catástrofes naturais, causando um número de mortos elevado (os números diferem consoante as fontes) e uma tensão crescente entre os camponeses e o governo chinês, num avolumar social de conflitos que o agravamento do conflito sino-soviético, que se iniciara em 1958, apenas viria acentuar.
Apesar disso, as comunas, ainda que sofrendo algumas alterações, prosseguiriam: segundo Dumont (1964), em 1964, havia 70.000 comunas, número bastante superior às 26.500 comunas existentes em 1958.
Depois do período da Revolução Cultural (1966-1976), a concepção de cooperativas é reformulada, pelo que, gradualmente, é dado um espaço crescente às produções familiares e aos mercados livres rurais.
A abertura chinesa e o fim das comunas
Após a morte de Mao Zedong, em 1976, e o lançamento de novas orientações políticas, em 1978, fruto do XI Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), Deng Xiaoping procedeu ao lançamento de reformas que deram origem a uma abertura gradual do país ao exterior.
Aquele vasto movimento de reforma implicou, no espaço rural, uma mudança no sistema agrário. Volta a ser permitido o direito privado de exploração coletiva da terra e o direito privado de usufruir da sua renda, o que ficou conhecido como contrato de produção fixado no nível doméstico.
O artigo 10º da Constituição de 1982, por seu lado, viria reconhecer duas formas de propriedade da terra - a propriedade do Estado, nas cidades, e a propriedade da comunidade, no campo:
Nas cidades, a terra é propriedade do Estado (...) No campo e nos subúrbios urbanos, a terra é propriedade coletiva, com a excepção da terra que, por lei, é de propriedade do Estado; da mesma forma, os lotes de terra, cultiváveis ou montanhosos, reservados para uso pessoal, são propriedade coletiva. [...] De acordo com o interesse público, o Estado pode, em conformidade com as disposições da lei, requisitar terra. [...] Nenhuma organização ou indivíduo pode apropriar-se da terra, vendê-la, comprá-la, alugá-la ou dar a outrém, seja de que forma for.
No seguimento do que já estava plasmado no citado artigo 10 da Constituição de 1982, uma lei aprovada em 1986 — lei sobre a gerência de terras — passa a conter uma cláusula que afirma que a “terra pode ser transferida a outrem através de uma compensação”.
Fruto do uso, por vezes abusivo, daquela disposição legislativa, sucedem-se, a partir de então, as requisições, num momento concomitante com um exponencial crescimento industrial e uma consequente explosão da população urbana.
Esta política de crescimento chinesa (que se baseou, sobretudo, em exportações) teve como consequência uma vaga de migração de trabalhadores das áreas rurais para as cidades, oriundos, sobretudo, de famílias rurais com pequenos lotes de terras.
Apesar das revisões que sofre em 1988 e em 1998 (esta última, afirmando que os contratos celebrados entre a comunidade e os domicílios deveriam ter um período de validade de trinta anos), será a lei sobre a gerência de terras que se encontra subjacente à onda de requisições de terras que, desde 1986, diversos governos locais levam adiante.
A requisição/coletivização de terras deverá, no entanto, ser foco de uma particular atenção, já que o crescimento repentino das áreas urbanas no território chinês, nas últimas duas décadas, não deveria ser uma fonte de favorecimento de promotores imobiliários, de bancos e de governos locais com orçamentos restritos, antes deveria estar ao serviço de uma efetiva política urbana e de requisição que consiga responder às necessidades sociais, não apenas no espaço urbano, mas, igualmente, no espaço rural.
Requisição de terras vs soberania alimentar
Estima-se que desde que as requisições de terras se aceleraram, nos finais da década de 1980, 40 a 50 milhões de camponeses tenham perdido as suas terras. Em 2003, uma nova lei vem, ainda, alterar a legislação sobre as terras aráveis coletivas, excluindo uma nova geração da atribuição de terras por redistribuição, como aponta Herrera.
Hoje, estima-se que, aproximadamente, 200 milhões de trabalhadores camponeses migrantes vivam nos grandes centros urbanos chineses.
Ainda que a que a terra tenha sido, desde a abertura chinesa encetada por Deng Xiaoping, uma das alavancas primordiais do processo de urbanização chinês, o atual sistema de requisição de terras deve ser travado. Este travão deverá servir, não apenas como um meio para cessar focos de corrupção, mas, igualmente, para evitar que os camponeses que outrora haviam logrado uma maior qualidade de vida, quando da reforma agrária levada a cabo nos primeiros anos da RPC, possam usufruir das vantagens que aquele modelo lhes trouxe e que ainda permanecem vivas na RPC de hoje. Por outro lado, uma soberania alimentar exige um modelo de produção agrícola que proteja os camponeses e que negue as imposições, constrangimentos e pressões do capitalismo.
Ainda assim, é importante referir e valorizar, como assinala Remy Herrera, o facto de a China conseguir alimentar 19% da população mundial, com apenas 8% das terras aráveis do mundo. A escala da produção agrícola chinesa pode, aliás, parecer paradoxal, acrescenta o mesmo autor, uma vez que apenas 13% da área total do país pode ser cultivada. Isto deve-se, contudo, ao fato de 45% da força de trabalho chinesa se dedicar à agricultura e, sobretudo, ao fato de a terra ainda ser propriedade pública. Sendo assim, ainda hoje, a propriedade coletiva das comunidades das aldeias é distribuída entre famílias camponesas, que a utilizam, principalmente, para a produção de bens agrícolas, destinados a manter a autossuficiência alimentar. Em suma, ainda vivem e persistem práticas socialistas cuja herança remonta às reformas levadas avante quando da implantação da China Popular.
*Ana Saldanha é professora adjunta convidada do Instituto Politécnico de Macau (RAEM / China).
Edição: Camila Maciel