A população de Minneapolis, em Minnesota, ocupou as ruas pelo terceiro dia consecutivo em protesto contra o assassinato de George Floyd, um homem negro asfixiado em uma abordagem policial no início da semana.
As imagens de delegacias, lojas e carros incendiados no município circulam nas redes sociais e na imprensa internacional, retratando a intensa revolta de milhares de cidadãos com mais um brutal caso de violência policial no país, repudiado em todo o mundo.
:: Morte de homem negro asfixiado por policiais nos EUA gera indignação internacional ::
As manifestações reivindicam justiça e exigem que os agentes sejam acusados e julgados por assassinato. A frase “I can’t breathe”, (Eu não consigo respirar, em português), foi repetida incessantemente por Floyd enquanto era sufocado por um policial ajoelhado em seu pescoço, ecoa em protestos fora Minneapolis. Nesta quinta-feira (28), manifestações também foram registradas em diversas cidades, entre elas, Phoenix, Nova York, Denver e Columbus.
Em resposta à pressão popular, nesta sexta-feira (29), o policial Derek Chauvin, que sufocou a vítima com seu próprio corpo, foi detido e responderá por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ele foi acusado de assassinato em terceiro grau, quando o responsável pela morte o fez de forma eminentemente perigosa, delito previsto na legislação de Minnesota. A pena para o crime é de até 25 anos de prisão. Os outros três policiais que participaram da ação ainda estão sob investigação.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Ciara Taylor, cofundadora da organização Dreams Defenders, criada em 2012 após protestos contra a morte de Trayvon Martin, um jovem negro de 17 anos morto a tiros por um segurança em Sanford, na Flórida, ressalta a importância da reação popular após o assassinato de Floyd.
Taylor reforça que o caso não é isolado. “O caso de George Floyd é similar ao de Eric Garner, que foi assassinado da mesma forma. ‘Eu não posso respirar’. A mesma tática foi empregada, com o sufocamento, que é ilegal. Mas essa é a primeira vez que, automaticamente, um prefeito reprova os policiais”, afirma.
Ela também cita outros “casos de extrema brutalidade e violência” contra pessoas negras por parte das forças policiais.
“O caso de Ahmaud Arbery, por exemplo, que foi morto em Georgia, em fevereiro, enquanto estava se exercitando na rua. Temos o caso de Breonna Taylor, que foi morta em março, em Kentucky. Ela era uma técnica de emergências médicas, e foi morta em um sua casa com uma ação policial sem mandado de segurança, que errou o endereço”, relata.
“O que estamos vendo agora é que as pessoas continuam lutando por Ahmaud, continuam lutando por Breanna e por tantos outros, incontáveis, que nos foram tirados ao longo de gerações. É uma construção conjunta. Estamos vendo cidades onde não houve casos de brutalidade policial nesse nível recentemente, que estão também se organizando e protestando”, continua a ativista.
Carolyn Backer, integrante da Poor People’s Campaing, destaca que a violência policial contra negros é fundante dos Estados Unidos. A diferença é que agora, com a tecnologia, as mortes têm ganhado mais visibilidade.
“Os casos têm sido mais filmados, então mais pessoas podem vê-los. Mas sempre aconteceram. Esses assassinatos nunca pararam. Existiam antes de eu nascer, antes do meu pai e do meu avô. Isso não é novo”, salienta.
Dados públicos confirmam a ostensividade das forças de seguranças contra a população negra. Segundo estudo da organização Mapping Police Violence (Mapeando a violência policial, em português), pessoas negras têm quase três vezes mais chances de serem mortas pela polícia do que brancos nos Estados Unidos.
Um levantamento do jornal Washington Post também apontou que 1004 pessoas foram mortas a tiros por policiais no país em 2019, estatística na qual os negros são os mais atingidos.
Chamas contra o racismo
A ação direta de manifestantes que estão incendiando delegacias em Minneapolis como forma de protesto tem sido criticada por parte da opinião pública. Apesar dos danos ao patrimônio, nenhuma pessoa foi ferida.
De acordo com a análise de Ciara Taylor, os protestos são espontâneos e plurais, compostos por coletivos organizados, pessoas autônomas, maiores e menores de idade. Entretanto, mesmo com as diferenças, o objetivo é único: denunciar o racismo estrutural da sociedade americana, que se traduz em sua forma mais brutal pela violência policial.
“As pessoas têm muita clareza que nossas vidas valem mais que a propriedade”, diz, em tom contundente. “Não podemos continuar com essa cultura nos Estados Unidos, que coloca propriedade e lucro acima das pessoas. O que estou ouvindo ecoando de Minneapolis (Minnesotta), Louisville (Kenthucky), Brunswick (Georgia), é que nossas vidas importam. Que temos direito de viver com dignidade, sem ter o medo de morrer subitamente enquanto andamos nas ruas ou dormindo em nossas camas. Isso é algo que posso dizer com certeza, alto e claro: As pessoas estão realmente cansadas desse sistema que exclui nossa humanidade".
Morando em Detroit, no estado de Michigan, Carolyn Backer, que também integra o Popular Education Project (PEP), se solidariza com os manifestantes.
“As pessoas estão chateadas. Classificam os incêndios das bases policiais como violência. Mas a morte de um homem não é violência?”, questiona. "As chamas são a raiva do que as pessoas estão denunciando há anos e ninguém tem ouvido. Eles querem justiça. Os assassinatos têm acontecido durante muito tempo. O que estamos vendo é essa raiva explodindo”.
Mesmo com a repercussão internacional do caso, Backer afirma “ser difícil saber se haverá justiça.” “Vimos casos no passado em que policiais mataram pessoas negras e saíram ilesos. Os investigadores dizem que não possuem as informações necessárias ou evidências para prendê-los”.
Taylor critica a atuação das forças de segurança que reprimiu os protestos populares em Minneapolis.
“Ainda há policiais nas ruas, declarando guerra contra pessoas desarmadas. Com gás lacrimogêneo, sprays, bala de borracha. Vemos as notícias falando que acharam errado, mas, ao mesmo tempo, quando o sol cai, os policiais ainda estão lá, prendendo e brutalizando pessoas”.
Violência histórica
As ativistas ouvidas pelo Brasil de Fato, que integram movimentos negros auto-organizados, reforçam a leitura de que a violência policial não pode ser analisada ou combatida sem considerar fatores históricos.
Segundo a cofundadora da Dreams Defenders, ao longo da história, a classe dominante e o capitalismo sempre buscaram maximizar o lucro e manter o controle social, mesmo que isso custe a vida das populações mais vulneráveis, principalmente vidas negras.
“É isso que as forças policiais estadunidenses têm feito por décadas. Elas foram criadas para patrulhar os escravos no sul do país, não só para policiar os trabalhadores escravos que estavam privados de liberdade, mas também para manter a unidade branca do sul, que alinharia pessoas brancas pobres com a classe dominante”, explica Ciara Taylor.
“Nossa cultura é baseada em uma cultura de supremacia branca. Não podemos entender o desenvolvimento do racismo sem entender o desenvolvimento do capitalismo neste país, por meio da escravidão racial”, complementa.
Carol Backer adiciona que o racismo é perpetuado pelos poderosos para dividir a classe trabalhadora. “O racismo sempre foi uma ferramenta. Enquanto estivermos batalhando entre nós, não podemos nos unir. Eles não querem brancos e negros pobres unidos, porque uma vez que isso acontecer, nossa atenção será direcionada pro lugar correto: pro sistema capitalista”.
Ela endossa ainda que o preconceito racial também se reflete nos índices da pobreza. Levantamento da Poor People’s Campaign estima que existam 140 milhões de pessoas pobres no país, e de acordo com Backer, a grande maioria são pessoas negras, maiores vítimas do desemprego e da violência do Estado.
“George Floyd estava em condições de pobreza. Ele era alguém que buscava uma mudança, se mudou para Minneapolis para tentar ter um recomeço. A pobreza está conectava. É uma questão de raça e classe”, exemplifica.
Perspectivas
Frente à intensa mobilização, nas ruas e nas redes, Taylor espera que o movimento cresça também em defesa de outras bandeiras dos trabalhadores, principalmente em meio à pandemia.
“Espero que seja possível relacionar a violência da polícia com a violência que é a insegurança de moradia, contra os imigrantes, a violência do imperialismo ocidental. As pessoas sem casa estão morrendo na rua por não ter acesso a uma moradia digna. As pessoas morrem de fome, sem água. Tudo isso está conectado. Espero que quando pensemos sobre esse movimento crescendo, que seja com todas essas batalhas juntas”.
A expectativa de Carolyn Backer é a mesma, que traça paralelo com a letalidade policial que também é registrada em outras nações: "Estamos vendo estopins e revoltas fora do estado e, espero que ao redor do mundo também. Os que estão com os joelhos em seus pescoços nos Estados Unidos, são os mesmo indivíduos que têm joelhos sobre seus pescoços internacionalmente", finaliza a ativista.
Edição: Rodrigo Chagas