Na última semana, comemorou-se o Dia Nacional dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem. “Comemorou-se” aqui é maneira de dizer, contudo, já que em meio à pandemia de covid-19 não há muito a se celebrar: as duas categorias estão entre as mais afetadas pela doença. Dados compilados pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e o Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN, sigla em inglês) afirmam que o Brasil é o país com mais mortes de enfermeiros e profissionais de saúde devido à pandemia por covid-19.
De acordo com o Cofen, são 157 mortes de profissionais de enfermagem, sendo que, na última quarta-feira (27), já foram confirmadas mais vítimas que ainda serão contabilizadas até o final do dia. O ICN informa que o país tem um número de mortes entre enfermeiros maior que o dos Estados Unidos, com 146 óbitos, e que o do Reino Unido, com 77.
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O presidente do Sindicato Profissional dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem de Pernambuco (Satenp), Francis Herbert, avalia que muitos fatores determinam a vulnerabilidade desses trabalhadores durante a pandemia. Segundo ele, tanto o governo quanto os hospitais privados vêm cometendo “erros gritantes” que têm deixado vulneráveis os profissionais de enfermagem.
“Esses trabalhadores que estão lá na ponta não podem deixar de atender um paciente, mas, em contrapartida, não recebem uma estrutura de proteção de seus empregadores. Faltam EPIs [equipamentos de proteção individual], quando tem são de má qualidade, não houve treinamento, muitos trabalhadores passam tempo demais expostos ao vírus, em jornadas exaustivas, e em muitos hospitais eles precisam compartilhar áreas de repouso e se alimentar junto com outros trabalhadores que não estão expostos à covid-19 porque simplesmente não têm outro espaço”, denuncia Herbert, que projeta um cenário de “enorme déficit” desses trabalhadores ainda em maio se mantidas as taxas de contaminação atuais.
“Há casos de profissionais que, mesmo acometidos pelo vírus, continuaram trabalhando, porque são contratados sob vínculos precários e ficam com medo de pedir o afastamento”, afirma. E completa: “E mesmo aqueles que são afastados, ficam em quarentena e depois voltam ao trabalho têm que lidar com a perda de colegas, aliado ao estresse de jornadas exaustivas, sobrecarga de trabalho. Em vários locais onde era para ter quatro profissionais de enfermagem, tem um trabalhando. Muitos estão adoecendo, desenvolvendo síndrome do pânico”.
Miriam Lopes, presidente do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem do Rio de Janeiro (Satemrj), relata uma situação bem parecida no estado brasileiro com maior número de mortes de trabalhadores da enfermagem por covid-19. “Nossas categorias são muito vulneráveis já que, por conta de suas atribuições, passam 24 horas por dia em contato direto com pacientes com coronavírus. Mas faltam EPIs, falta treinamento para esses profissionais sobre como usá-los e descartá-los com segurança, falta mão de obra suficiente para atender a quantidade de pacientes que chegam aos hospitais todos os dias”, enumera Miriam.
Estados diferentes, problemas iguais
São problemas que se repetem por todo o país, como diz Walkirio Almeida, coordenador do comitê Gestor de Crise Covid-19 do Cofen, que desenvolveu uma plataforma online com dados atualizados todos os dias sobre a covid-19 entre os trabalhadores da enfermagem.
“Para nós foi uma surpresa o número de trabalhadores da saúde infectados, em especial da área da enfermagem. É preocupante. Comparando com outros países onde o número de casos de covid-19 foi grande, percebemos que o impacto sobre a comunidade da área da saúde, em especial, da área da enfermagem, foi muito grande no Brasil”, diz Almeida.
A falta de EPIs é o principal problema identificado pelo conselho, afirma ele. “Nós já recebemos, desde o dia 16 de março, mais de 5,5 mil comunicações de profissionais de enfermagem relatando dificuldades no acesso a EPIs principalmente máscaras”, aponta Almeida, destacando que em março, no início da pandemia, houve muitos relatos de trabalhadores da enfermagem que realizavam o atendimento das primeiras vítimas da covid-19 no país sem que as instituições empregadoras oferecessem qualquer tipo de equipamento de proteção, no que segundo ele que foi uma falha comum na preparação para a pandemia.
“Aliás, foi detectado nas nossas fiscalizações, logo no início da pandemia, que muitas instituições inclusive impediam que os profissionais de saúde, de um modo geral, usassem máscaras, ainda que eles tivessem adquirido por contra própria, porque tinham receio de isso causar algum impacto negativo na imagem da instituição”, revela.
Atualmente, o problema da falta de acesso aos EPIs permanece, mas com outras nuances, diz o representante do Cofen. “Ainda temos muitos casos de profissionais que têm acesso a alguns tipos de equipamentos, mas não a todos aqueles que seriam necessários de acordo com o grau de risco dos procedimentos que eles estão executando”, afirma Almeida, listando, além das máscaras N95, os óculos, protetores faciais de acrílico, aventais, luvas e gorros como os equipamentos essenciais para evitar a contaminação desses trabalhadores.
“E um terceiro problema é que muitos trabalhadores acabam tendo que usar os equipamentos de proteção por um período muito maior do que o recomendado nas normas técnicas e instruções dos fabricantes. E com isso sua eficácia é reduzida”, explica. Ele acrescenta que a falta de treinamento para usar os equipamentos é outra questão que acaba ampliando a exposição dos trabalhadores da enfermagem ao vírus.
“Até pouco antes de a pandemia chegar ao Brasil, o uso desses equipamentos não era rotina de todos os profissionais de saúde, apenas dos profissionais que trabalham em áreas hospitalares mais restritas, como as unidades de tratamento intensivas, por exemplo”, diz o representante do Cofen. Com a pandemia, completa, trabalhadores que não estavam acostumados com os equipamentos passaram a ter que utilizá-los, sem que tivessem recebido um treinamento para isso. “Um momento muito importante é a retirada desse equipamento. É quando ocorre o maior risco de contaminação. Existe um protocolo, um procedimento correto para fazer a retirada desses equipamentos com o menor risco possível. Se o profissional de saúde não tiver sido preparado e treinado para fazer isso, fatalmente, ele se contamina. Muitos profissionais se contaminaram dessa forma”, diz.
Nesse contexto, Almeida afirma que o Cofen tem mobilizado esforços para reduzir os impactos da pandemia sobre as categorias profissionais da enfermagem. Além da aquisição e distribuição de máscaras N95 e a oferta de cursos online na área de biossegurança para os trabalhadores, o coordenador do Comitê Gestor de Crise Covid-19 do conselho enumera também ações junto ao poder Judiciário para garantir alguma proteção aos trabalhadores. Em abril, o Cofen entrou com ações civis públicas contra a União e hospitais privados reivindicando o afastamento de profissionais integrantes de grupos de risco de funções que exijam contato direto com casos suspeitos ou confirmados de covid-19.
“Temos conseguido liminares favoráveis em alguns estados. É uma providência que faz parte dos protocolos do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, mas precisamos recorrer à Justiça para garantir que isso aconteça”, lamenta Walkirio Almeida.
Fonte: EPSJV/Fiocruz
Edição: Mariana Pitasse