Comemorando oito anos neste mês, a LAI é um marco do avanço da transparência no país
Por Camila Marques e Euzamara de Carvalho*
No mês em que a Lei de Acesso à Informação (LAI) comemora 8 anos, as tentativas de alteração do seu texto, o cenário de desinformação propagado por autoridades públicas, ameaças à imprensa e a ausência de dados e transparência sobre o alcance e impactos da covid-19 evidenciam que o país caminha no sentido oposto da consolidação de uma cultura de transparência
O anúncio do novo coronavírus e o aparecimento dos primeiros casos graves da covid-19 ainda em janeiro deste ano provocaram uma escalada global de reflexões e debates públicos sobre os impactos sociais, políticos e econômicos da pandemia em toda a população. Desde então, a velocidade da disseminação do vírus e as políticas de prevenção e enfrentamento à pandemia passaram a ocupar o centro da agenda política da maior parte dos países do mundo.
A partir de janeiro, a população mundial pode observar diferentes caminhos governamentais para se lidar com a crise provocada pela pandemia. De um lado, países que se anteciparam aos altos números de disseminação e mortes e lograram estabelecer políticas públicas preventivas que envolviam tanto a testagem massiva até medidas mais restritivas de distanciamento social. De outro, países mais reticentes à adoção de medidas de enfrentamento ao vírus e até mesmo promovendo discursos contra as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e, propagando, inclusive, desinformação. A exemplo do Brasil.
Em meio aos diferentes caminhos trilhados, um dos aspectos importantes que foi possível extrair de cada país – observando as suas reações sobre a pandemia – diz respeito à sua consistência democrática, isto é, países com uma democracia mais consolidada formularam políticas sociais, sanitárias e econômicas de maneira mais célere e sólida a partir de intenso debate e ampliação dos instrumentos democráticos de participação social e transparência pública.
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Ao olhar para o cenário brasileiro, percebe-se que as reações governamentais à pandemia funcionaram como um eficaz medidor democrático. Desde o início da crise, algumas situações evidenciaram o contexto de enfraquecimento das instituições, das ferramentas de participação popular e o aumento das iniciativas que visam elevar a opacidade dos dados e políticas públicas e a disseminação do cenário de desinformação. Não são poucos os exemplos e vão desde a alteração da Lei de Acesso à Informação à ausência de dados concretos sobre a disseminação da pandemia.
Em março deste ano, o governo federal editou uma medida provisória que previa a suspensão dos pedidos via LAI em todos os órgãos e entidades da administração pública federal, permitindo que os pedidos de informação não fossem respondidos por conta do regime de teletrabalho dos servidores, além de suspender a possibilidade recursal. Ainda em março, diversos cientistas, médicos, pesquisadores e membros da sociedade civil organizada apontaram para a necessidade da ampliação dos dados abertos e desagregados, especialmente sobre o avanço da covid-19 em grupos em situação de vulnerabilidade social.
A ausência de dados sobre os efeitos da pandemia nestes grupos acelera e agrava os impactos na saúde e na vida de pessoas historicamente afetadas pela ausência de políticas comprometidas com o alcance da equidade e dignidade da pessoa humana, pois ampliam as dificuldades de gestores públicos e profissionais da saúde no desenvolvimento de políticas públicas de prevenção e reação à pandemia.
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Dados abertos, transparência e informação são o tripé para a formulação de qualquer política pública e, recentemente, a Defensoria Pública da União – em parceria com o Instituto Luiz Gama – ingressou com uma ação judicial apontando que a ausência de dados e informações étnico-raciais nos documentos sobre o alcance da pandemia aprofunda o cenário de racismo estrutural que permeia o país. Ainda nestes meses, a sociedade brasileira assiste a um entrave entre veículos de comunicação e a presidência, a fim de que os exames de identificação da covid-19 realizados nas autoridades dos executivo federal sejam fornecidos e tornados públicos.
Todas estas situações foram levadas e revertidas pelo Judiciário brasileiro – que neste cenário de escalada antidemocrática tem um papel fundamental na prevenção de arbitrariedades e reversão de medidas inconstitucionais e antidemocráticas. Desde 2011, ano da aprovação da Lei de Acesso à Informação no Brasil, a sociedade brasileira nunca havia visto tantas iniciativas no sentido de desestruturar os instrumentos de controle e participação social no país.
Comemorando oito anos neste mês, a LAI é um marco do avanço da transparência no país.
Durante décadas de um regime militar, a população brasileira foi impedida de exercer o seu direito ao acesso à informação. Em resposta a tantos anos de sigilo e obscurantismo, a Constituição Federal de 1988, nossa carta cidadã, instituiu como obrigação do Estado este direito fundamental, porém, não se inverte uma cultura de sigilo da noite para o dia. Vinte e três anos se passaram para que no ano de 2011 a Lei de Acesso à Informação, um marco jurídico essencial que estabelece como regra a transparência e o sigilo como exceção, fosse aprovada pelo Congresso Nacional.
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A LAI brasileira, e seus dispositivos, ritos, procedimentos e possibilidades recursais, é modelo de boa prática para diversos países e representa uma conquista de toda sociedade brasileira, um sinal concreto do avanço democrático do país. Contudo, as situações mencionadas neste artigo evidenciam que a mudança de uma cultura de sigilo apenas se concretiza a partir de um amplo esforço – diário e constante – por parte do Poder Público para garantir a implementação de políticas públicas consistentes e a permanente capacitação dos servidores e autoridades públicas.
Qualquer passo em falso coloca a perder de uma só vez todo o quadro regulatório que garante os mecanismos de acesso à informação, participação e controle social no país e mais que isso, representa um largo passo em direção oposta ao regime democrático de direito estabelecido pela nossa Constituição Federal há mais de três décadas atrás.
*Camila Marques é advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com atuação na sociedade civil organizada e em litígio estratégico nas causas de direitos humanos. Nos últimos dez anos se dedicou à defesa da liberdade de expressão e ao acesso à informação pública.
Euzamara de Carvalho, integra o Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), membro do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS) e da Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Edição: Rodrigo Chagas