Coluna

"CoronaChoque": um mundo oscilando entre crises e protestos

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Em um bairro da periferia de Santiago, no Chile, família observa o trabalho de limpeza das equipes sanitárias - Martin Bernetti/AFP
O vírus atingiu profundamente o mundo e a ordem social do Estado burguês desmoronou

Por André Cardoso e Rebecca Gendler

O ano de 2019 se encerrou com uma imagem de um mundo instável que oscilava entre crises e protestos, diante do acirramento das políticas neoliberais que se intensificaram pós crise financeira de 2008 e que não apresentavam nenhuma resposta em relação aos problemas agudos de desemprego, fome, doenças e desmonte das instituições sociais. Dessa forma, as ruas de todo o mundo reivindicavam as palavras de ordem: recusamos, resistimos e não toleramos a praga da austeridade. 

A pandemia global da covid-19 no início de 2020 veio como um choque sobre o mundo, que denominamos como "CoronaChoque", referindo-se à forma como um vírus atingiu profundamente o mundo e como a ordem social do Estado burguês desmoronou diante da pandemia, enquanto a ordem socialista pareceu mais firme. Nossas ruas e nossos espaços públicos, que começavam a ser o palco de turbulência, se desumanizam, esvaziando-se em grande medida de sua vida humana e econômica, como medida para conter o avanço do vírus. 

Já nos encontrávamos, por um lado, em um período de produtividade estagnada, de baixas taxas de crescimento caracterizada pelo tímido investimento de capital, com uma combinação de acirramento dos problemas de emprego e promoção do colapso das instituições sociais. Em contrapartida, assistíamos apresentações de soluções incoerentes feitas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e seus aliados, defendendo a continuidade das políticas de austeridade e o fim das tensões comerciais entre os países. Porém, a ampliação da guerra comercial era fruto da austeridade defendida, sendo impossível manter um e negar o outro.

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Com a pandemia global, as tendências destrutivas do capitalismo em sua fase neoliberal foram escancaradas, pressionando a maioria dos líderes capitalistas neoliberais e suas instituições multilaterais a buscar formas de salvar o setor privado e a expandir os programas públicos por meio de seus bancos centrais, despejando dinheiro para esse objetivo. Ao mesmo tempo, lideranças da extrema direita como Donald Trump (EUA), Narendra Modi (Índia), Recep Tayyip Erdogan (Turquia) e Jair Bolsonaro (Brasil) aproveitaram o momento para reforçar suas políticas de austeridade, aumentando as tensões ao preferir culpar a China pelo vírus em vez de assumirem a responsabilidade em relação a suas próprias falhas ao lidar com a pandemia.

A leitura feita por essas lideranças era de que a crise vinha unicamente como desdobramento do coronavírus, uma mera confluência de circunstâncias que poderiam ser totalmente explicadas pela pandemia.

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O vírus da Era da Austeridade 

A Era da Austeridade começou de forma mais intensa após a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), quando grande parte do Terceiro Mundo sucumbiu à crescente crise global. Sob a pressão da crise da dívida e com pouco acesso a outros financiamentos, o Terceiro Mundo recorreu a empréstimos do FMI; em contrapartida, teve de adotar a cartilha neoliberal da instituição, com privatizações, redução do papel do Estado, liberalização comercial e financeira, redução dos serviços públicos e das redes de proteção social.

Um projeto de globalização neoliberal com níveis de desumanização impressionantes, levando a um ciclo de crises, muitas vezes motivadas pela turbulência gerada pelo trabalho precário, pelo crédito insustentável concedido a pessoas com renda reduzida para produzir demanda e pela transferência do capital industrial para o setor financeiro. As crises surgidas não vieram de um ciclo de lutas populares que desafiaram o capitalismo, pelo contrário, vieram da lógica desumanizada do capital em sua fase neoliberal e foram resolvidas por remédios que eram frequentemente piores que a doença. 

Dessa forma, a crise atual se situa entre uma série de tendências que foram se acumulando nas últimas décadas e explodiram com a pandemia global. Podemos destacar quatro principais tendências que foram aceleradas com o "CoronaChoque".

A primeira é o aprofundamento da financeirização, com o inchaço do setor financeiro, responsável por absorver grande volume de mais-valia criado pelo setor produtivo. Essa grande abundância de dinheiro não desencadeou um processo global de investimentos produtivos. Pelo contrário, a maior parte do dinheiro do mundo acabou mais uma vez aumentando as dívidas soberanas e os ativos financeiros, acelerando o processo de financeirização. Essa dinâmica conduziu a dependência política dos países do Sul Global economicamente endividados, a estagnação dos setores produtivos das economias centrais e a instabilidade crônica do sistema mundial, que coloca o interesse do capital sobre as necessidades das pessoas.

A segunda tendência é a aceleração do declínio dos Estados Unidos e o fortalecimento do papel da China, mostrando sua capacidade de controlar o vírus dentro de suas fronteiras e ter se tornado a principal referência na ajuda às demais nações. Em contrapartida, a atitude de Trump em relação ao seu próprio povo tornou evidente o declínio da liderança dos Estados Unidos. Qualquer que seja a falta de clareza sobre o futuro é evidente que a civilização liberal ocidental não foi capaz de responder às necessidades do povo em sua própria parte do mundo.

A terceira tendência diz respeito aos impactos no mundo do trabalho com o aprofundamento da economia de plataforma digital. O trabalho remoto e mais flexível, potencializada com as políticas de isolamento, provocou mais uma onda de reformas trabalhistas para dar respaldo às novas formas de trabalho precarizado.

A quarta e última tendência se refere à crise do Estado neoliberal que, incapaz de resolver mais um problema criado pelo seu modelo de austeridade e de reconhecer as demandas democráticas do povo, reforça um Estado de exceção. As respostas às crises neoliberais são dadas com maior aprofundamento das políticas de austeridade e rigor fiscal, aumentando o endividamento dos países do Sul Global.

Neofascismo versus Socialismo

No período anterior ao "CoronaChoque", diante da incapacidade de resolução dos problemas dos povos, os protestos eram inevitáveis. A esquerda não teve força política suficiente para organizar todo esse desespero com uma agenda de melhoria social. Nesse flanco entraram os neofascistas, cuja unidade se dá em torno da desolação social, canalizando esse sentimento para atitudes xenófobas e racistas numa crescente ideologia do “outro”. É justamente nesse sentido que Trump jogava a culpa do desemprego dos Estados Unidos no México ou na China, adotando práticas de guerra comercial. E agora usa o vírus como um meio para ampliar essa prática. 

:: Qual o papel da austeridade e de políticas neoliberais no surgimento do neofascismo? ::

Por outro lado, o "CoronaChoque" foi capaz de expor a falência das políticas de austeridade – ao mesmo tempo que represou os grandes protestos, pela necessidade do isolamento social – e de trazer à luz a lição das experiências de combate à covid-19 construídas pela China, Cuba, Venezuela e o estado de Kerala (Índia). Essas experiências mostraram que há capacidade para ação pública quando uma sociedade é estruturada por suas organizações populares, como sindicatos, associações de mulheres, estudantis, de juventude e cooperativas. 

Uma sociedade organizada é aquela que desenvolve a capacidade das pessoas de aprender a agir coletivamente em tempos normais, mas mais ainda em momentos de crise. O projeto socialista é desenvolvido apenas parcialmente pelas instituições do Estado; a outra parte – a mais vital – é a sociedade organizada, energizada e preparada para o trabalho cotidiano e extraordinário da construção social.

Novos desafios são colocados à esquerda mundial no combate às propostas que penalizam ainda mais o povo e na construção de alternativas, experimentando novas abordagens para transformar a sociedade e avançar na luta de classes. Entre as muitas propostas e medidas, a solidariedade com os povos assume a centralidade pelo compromisso ético e moral dos lutadores e lutadoras. Nesse momento em que a fome chega nas periferias antes mesmo do vírus, é preciso travar a batalha de ideias em defesa da vida e da necessidade de fortalecer a organização popular. Temos o desafio de estarmos ao lado do povo e combinar a defesa do isolamento social com o direito de viver, de ter comida, de acessar os cuidados em saúde ao mesmo tempo em que combatemos o aprofundamento das políticas de austeridade e o resgate financeiro àqueles responsáveis em provocar a crise. 

Edição: Camila Maciel