Jovens moradores do Complexo da Maré têm buscado espaço para discutir questões ambientais, como a reutilização do lixo e a prática da compostagem, em meio a vários outros problemas cotidianos, como a violência policial e a precarização de recursos básicos.
Ao notar que era necessário falar também sobre um assunto que muitas vezes é elitizado ou abordado apenas por pessoas de fora das favelas, eles criaram o Eco Maré, um projeto ambiental sem fins lucrativos que visa integrar moradores a catadores, fomentar debates sobre a questão socioambiental e revitalizar lugares negativamente poluídos pelo lixo.
Sobre o projeto e a relação dos moradores da Maré com o lixo, o Brasil de Fato conversou com Juliana de Oliveira, uma das fundadores do coletivo. Veja a entrevista completa:
Brasil de Fato: Como funciona o Eco Maré e como vocês trabalham com a comunidade?
Juliana de Oliveira: Começamos como um projeto de captação de jovens aqui do Complexo da Maré. Ao longo do tempo, desde 2018, a gente se entendeu como coletivo. A gente desenvolvia projetos. O Eco Maré foi fundado por jovens periféricos para ter mais áreas verdes, revitalizar lugares que estavam sendo negativamente afetados pelo lixo e, ao longo do tempo, a gente passou a trabalhar com outros setores, como educação ambiental, saúde pública, coleta de dados, fazendo parcerias com outros projetos da região.
Fundar o coletivo foi uma necessidade ao observar o que estava sendo feito de errado na comunidade, principalmente no tratamento do lixo?
Sim, foi uma necessidade. Infelizmente, isso já é algo comum quando a gente fala de favelas. Muitas oportunidades não chegam, muitos direitos também não chegam, e um deles é a questão ambiental, que está em último caso. A gente luta pelas questões básicas, como segurança, mas outras questões como lazer a gente não busca tanto, justamente porque tem a prioridade que é viver, estar vivo.
Você acha que a discussão ambiental é elitizada, secundarizada nas favelas?
Com certeza. Eu, inclusive, vejo que muitas pessoas de fora da favela às vezes têm mais voz do que nós, que moramos aqui, que vivenciamos, e que estamos aqui todos os dias. Além de ter esse desconforto de ter o meio ambiente distanciado de nossas vidas, passar por inúmeras violências, confrontos civis, enfim. Coisas que são muito tristes de se viver.
Falando especificamente sobre o tratamento do lixo, olhando para a realidade de vocês na favela, mas também em um contexto geral, qual seria o primeiro passo para a redução do que se descarta? Começa na compra, na escolha dos produtos?
Com certeza é na compra dos produtos. A gente só tem essa dimensão agora, porque a gente está vivendo mais em casa e vê o tanto de lixo que a gente produz. Antigamente a gente escolhia um sabão de um quilo, mas a gente poderia investir em um sabão de cinco quilos, que viria em um conteúdo maior. Ao invés de comprar cinco sabões em pó de um quilo, estamos reduzindo, comprando um só de cinco quilos. Além de amenizar no nosso bolso, impactaria menos o meio ambiente.
E dentro de casa, depois que você já fez a compra e está consumindo tudo o que tem que usar? Quais são as medidas para tentar reduzir, tentar melhorar a consciência em relação ao lixo?
É importante a gente ver os produtos de outra forma, não somente comprar, utilizar, descartar, mas, sim, trazer uma nova perspectiva para aquele produto. Temos tantos exemplos bacanas nas redes sociais, de como fazer uma customização em roupas ou pegar desde potinho de margarina para guardar bijuterias. Temos que ter um novo olhar para esses produtos, não só de uma forma de descartar, mas sim de reutilizar. Se a gente traz um novo olhar para tudo o que a gente consome, certamente o meio ambiente vai agradecer.
Qual é a importância da separação? Ela facilita o reaproveitamento?
A separação de lixo é o ideal, mas, quando a gente fala sobre favelas, isso fica muito distante, não acontece. Mesmo que nós, moradores, separemos o lixo. Quando os profissionais de limpeza urbana vêm recolher esse lixo, misturam tudo. Então, na Maré, por exemplo, a gente não tem um trabalho voltado para a separação de lixo.
Mas é importante perseguir esse ideal, né?
Com certeza. A utopia é maravilhosa. Queremos que os governantes possam entender que a gente está caminhando para o futuro, e esse futuro merece ser melhor repensado. Acho que já tivemos erros o suficiente em questões ambientais para que isso não se repita no futuro.
Mas, como eu disse, essa utopia fica mais distante quando a gente fala sobre favelas, sobre as periferias cariocas e de outros lugares.
Como você vê a prática da compostagem? É algo que também cai nessa utopia ou qualquer pessoa, em qualquer situação, pode fazer?
A prática da compostagem é um benefício que está em prol da nossa saúde. Tem que desmistificar que é difícil, que dá muito trabalho. Na verdade, se você tiver um espacinho dentro de casa, você já consegue fazer. E doar para os seus vizinhos, né? Talvez você não consiga utilizar, depois, toda a terra e talvez repassar isso à frente. É bacana ter essa interação social.
Estamos caminhando para esse mundo tão descartável justamente por essa questão de individualismo. Se a gente soubesse compartilhar mais as coisas, certamente não cairíamos nisso de não reutilizar, de descartar. Por que não compartilhar?
Como vocês fazem para conscientizar as pessoas ao redor, para falar sobre meio ambiente, sendo que a favela já tem tantos problemas mais urgentes?
A grande diferença do coletivo Eco Maré é que a gente é morador daqui. Temos o mesmo linguajar, conhecemos os vizinhos. Eles viram a gente nascer e crescer. Essa proximidade que nós temos com a população já é um grande destaque para realizarmos nossas ações.
Como eu disse anteriormente, tem outras coisas na favela que são prioridade - por exemplo, conflitos armados entre civis e policiais militares. É óbvio que o destaque da semana e de sempre será as nossas vidas, o quanto é perigoso bala perdida e o como tudo isso é agressivo para quem mora.
Então, como a gente vai falar dessa problemática [o meio ambiente]? É mostrando para a população que, quando a gente retira aquele lixo, a gente transforma aquele lugar. É possível manter, é possível que seja um lugar agradável para conversar no fim da tarde com aquela vizinha, aquela amiga. A gente quer mostrar que a aquela realidade é possível e não é tão distante assim quanto parece.
Você acha que o papel da política local, feita pela comunidade, é tão ou mais importante que depender dos políticos, que muitas vezes nem olham para as comunidades?
Com certeza, o papel da comunidade ativa, da comunidade unida, é muito importante. Mas, claro, não vai descaracterizar o papel dos políticos que negligenciam diversas coisas.
Qual é o grande sonho do projeto? Onde vocês querem chegar daqui alguns anos com a discussão que vocês promovem?
A ideia é mostrar que, na favela, é possível fazer diversas coisas, mesmo que seja difícil por questões financeiras. O nosso objetivo é expandir para outras favelas do Complexo da Maré – para quem não sabe, o complexo é um conjunto de 16 favelas. Queremos ocupar todo esse território e conseguir falar mais sobre educação ambiental, mais sobre saúde pública. Falar de natureza é falar de saúde. Queremos falar mais com jovens, para que possamos mobilizar lugares para que a gente possa revitalizar, transformar.
Edição: Luiza Mançano