Uma pergunta sempre esteve presente nas buscas humana: qual é a nossa essência específica? A história conhece inumeráveis respostas. Mas a mais contundente, convergência de várias ciências contemporâneas como a nova biologia evolucionária, a genética, as neurociências, a psicologia evolutiva, a cosmologia, a ecologia, a fenomenologia e outras é essa: a cooperação.
Michael Tomasello, considerado genial na área da psicologia do desenvolvimento de crianças de um a três anos, sem intervenção invasiva, reuniu num volume as melhores pesquisas na área sob o título: Por que nós cooperamos (Warum wir kooperieren, Berlim, Suhrkamp 2010). Em seu ensaio de abertura afirma que a essência do humano está no “altruísmo” e na “cooperação”:
No altruísmo um se sacrifica pelo outro; é a empatia. Na cooperação muitos se unem em vista de um bem comum.
Uma das maiores especialistas em psicologia e evolução da Universidade de Stanford, Carol S. Dweck, afirma também no livro:
Mais que a grandeza excepcional de nosso cérebro e de nossa imensa capacidade de pensar, a nossa natureza essencial é esta: a aptidão de sermos seres de cooperação e de relação.
Outra, da mesma ciência, famosa por suas pesquisas empíricas, Elizabeth S. Spelke, de Harvard, assevera: nossa marca, por natureza, diferencial de qualquer outra espécie superior como a dos primatas (dos quais somos uma bifurcação) é “a nossa intencionalidade compartida” que propicia todas as formas de cooperação, de comunicação e de participação de tarefas e de objetivos comuns”. Ela caminha junto com a linguagem que é, essencialmente, social e cooperativa, traço específico dos humanos, como o entenderam os biólogos chilenos H.Maturana e F. Varela.
Outro, este neurobiólogo do conhecido Instituto Max Plank, Joachim Bauer, em seu livro O gen cooperativo (Das kooperative Gen, Hoffman und Campe, Hamburgo, 2008) e especialmente no livro Princípio humanidade: por que nós, por natureza, cooperamos (2006) sustenta a mesma tese: o ser humano é essencialmente um ser de cooperação. Refuta com veemência essa ideia o zoólogo inglês Richard Dawkins, autor do livro muito difundido O gene egoísta (1976/2004). Ele firma “que sua tese não possui nenhuma base empírica; ao contrário, representa o correlato do capitalismo dominante que assim parece legitimá-lo”. Critica também a superficialidade de outro livro Deus, uma ilusão (2007).
No entanto, diz Bauer, é cientificamente verificado, que “os genes não são autônomos e de modo algum ‘egoístas’ mas se agregam com outros nas células da totalidade do organismo”(O gene cooperativo,184). Afirma mais ainda:
Todos os sistemas vivos se caracterizam pela permanente cooperação e comunicação molecular para dentro e para fora.
É notório pela bioantropologia que a espécie humana deixou para trás os primatas e virou ser humano, quando começou, de forma cooperativa, a recoletar e a comer, solidariamente, o que recolhia.
Uma das teses axiais da física quântica (W.Heisenberg) e da cosmogênese (B.Swimme) consiste em afirmar a cooperação e a relação de todos com todos. Tudo é relacionado e nada existe fora da relação. Todos cooperam uns com os outros para coevoluirem. Talvez a formulação mais bela foi encontrada pelo Papa Francisco em sua encíclica Laudato Sì: sobre o cuidado da Casa Comum:
Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs, numa peregrinação maravilhosa…que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe Terra.
Um brasileiro, professor de filosofia da ciência na Universidade Federal do Espirito Santo (UFES), em Vitória, Maurício Abdala, escreveu um convincente livro sobre O princípio cooperação na linha das reflexões acima referidas.
Por que dizemos tudo isso? Para mostrar quão anti-natural e perverso é o sistema imperante do capital com seu individualismo e sua competição sem nenhuma cooperação.É ele que está conduzindo a humanidade a um impasse fatal. Por essa lógica, o coronavírus nos teria contaminado e exterminado a todos. Foi a cooperação e a solidariedade de todos com todos que nos estão salvando.
De aqui por diante devemos decidir: ou obedecemos à nossa natureza essencial, a cooperação, no nível pessoal, local, regional, nacional e mundial, mudando a forma de habitar a Casa Comum ou comecemos a nos preparar para o pior, num caminho sem retorno.
Se não ouvirmos esta lição que a covid-19 nos está dando e voltarmos, com mais fúria ainda, ao que era antes, para recuperar o atraso, podemos estar na contagem regressiva de uma catástrofe ainda mais letal. Quem nos garante que não poderá ser o temido NBO (Next Big One), aquele próximo e derradeiro vírus avassalador e inatacável que porá fim à nossa espécie? Grandes nomes da ciência como Jacquard, de Duve, Rees, Lovelock e Chomsky entre outros nos advertem sobre esta emergência trágica.
Lembro apenas as derradeiras palavras do velho Martin Heidegger em sua última entrevista ao Der Spiegel a ser publicada 15 anos após a sua morte, referindo-se à lógica suicida de nosso projeto técnico-científico: “Nur noch ein Gott kann uns retten” = “Somente um Deus nos poderá salvar”.
É o que espero e creio, pois, Deus se revelou como “o apaixonado amante da vida” (Sabedoria 11,24).
Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e autor de "Opção Terra: a solução da Terra não cai do céu", Record 2009.
Edição: Mariana Pitasse