Numa das imagens tiradas pelo fotojornalista Evandro Teixeira, na passeata dos 100 mil, no dia 26 de junho de 1968, vemos um grupo de artistas e intelectuais de braços dados, na linha de frente, lutando pela democracia, quatro anos depois do golpe militar e antes da decretação do AI-5, em 13 de dezembro daquele mesmo ano. Podemos ver Gilberto Gil, Caetano Veloso, Dedé Veloso, José Celso Martinez Correa, Chico Buarque, entre outros, e também uma fila de atrizes, como Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara, Norma Bengell, entre outras, além de trabalhadores de diversas áreas e de estudantes, que lideraram a passeata.
O que me chama atenção, nessa foto, é que nesta época seria inimaginável um artista ser de extrema direita, estar do lado da ditadura militar ou algum sistema onde a liberdade de expressão fosse cerceada. Artistas, por sua natureza, são contestadores, favoráveis às diferenças, à inclusão. São solidários, tem a arte como religião, exercitam o respeito ao outro, querem o mundo livre de amarras e fronteiras. São assim os artistas populares, nosso patrimônio imaterial, que deveriam ter todo apoio e respeito da política pública, mas são tratados como supérfluos, como se a cultura não fosse fundamental nas nossas vidas.
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Aliás, como bem defendia o escritor Ariano Suassuna, que construiu sua trajetória em defesa da arte e da cultura brasileira e para quem ela era missão, vocação e festa, a arte faz parte do nosso imaginário, muito antes dos portugueses invadirem nossas terras. Os indígenas sempre se manifestaram artisticamente e antes deles, havia as pinturas rupestres. No entanto, ele ressaltava também o preconceito e a desvalorização em relação aos artistas brasileiros, e que, infelizmente, perdura até hoje.
Não existe o verdadeiro crescimento das relações sem a diversidade, e quem deveria corroborar com essa ideia, é o primeiro que demonstra ser contrário a tudo que agrega, que soma, que dialoga, desqualificando o papel da cultura e, portanto, de seus artistas. Ainda candidato, o atual presidente da República, já havia começado uma campanha de demonização aos artistas, por terem muitas vezes se posicionado contra sua postura anti-democrática.
Hoje mais que nunca, estamos vivendo, enquanto classe artística, uma retaliação de sua parte, que tem como dever governar para todos, independente de quem tenha votado contra ou a favor dele.
A cultura, que até 2018 empregava cerca de cinco milhões de pessoas e gerava R$ 170 bilhões, o equivalente a 2,5% do Produto Interno Bruno (PIB), segundo a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), teve cancelado editais logo no primeiro ano de mandato do presidente eleito, assim como extinto o seu Ministério, se transformando numa secretaria de cultura e indo parar dentro de outro Ministério, o do Turismo.
Um país se reconhece por sua identidade e sua arte, que entre muitos ganhos, também injeta autoestima em seu povo. Precisamos nos identificar enquanto nação, com toda a pluralidade que isso significa.
Os artistas, durante o confinamento em consequência do coronavírus, mesmo desprotegidos por um governo omisso, sem nenhuma ação que os contemplem, seguem promovendo a solidariedade, e, só para citar alguns movimentos, onde muitos deles estão ligados, existem a Associação dos Produtores de Teatro (APTR), o 342 Arte, o Artigo 5º, etc., onde, por meio de vídeos, pedem doações, que se transformam em cartões de alimentação e mantimentos, para outros artistas e técnicos que ficaram totalmente desprovidos de qualquer trabalho e sem saber quando poderão voltar a ocupar-se.
Volto a lembrar dos artistas, de braços dados, na foto da passeata dos 100 mil e me sinto honrada em pertencer a uma classe, que no meio de uma pandemia, onde já se atingiu a marca dos 15 mil mortos, segue na luta, se reinventa na internet com lives, cantorias, debates e consegue demonstrar empatia pelo outro, sentimento que passa bem longe do governante do nosso país e de sua secretária de Cultura, a ex-atriz Regina Duarte, que depois de 60 dias sem aparecer, desde sua posse, concedeu à CNN Brasil, no dia 7 de maio, uma catastrófica e vergonhosa entrevista, onde disse, entre outras coisas terríveis, que não queria arrastar um cemitério de mortos em suas costas, nem queria que sua secretaria se transformasse em obituário, por ter que lamentar oficialmente, como compete à uma secretária de cultura, as lamentáveis mortes dos artistas que brilhantemente contribuíram, com suas manifestações artísticas, o imaginário do Brasil.
O valor da arte é incalculável. Ela nos propõe reflexões sobre a vida, nos dá discernimento, senso crítico, aguça nossa sensibilidade, nos entretém e deixa transbordar nossas emoções. A vida sem poesia seria muito triste.
Sem a arte, tudo seria muito mais difícil, e o mais impressionante, é que precisamos sair em sua defesa, mostrar sua importância, o tempo todo, como fazia o genial Ariano Suassuna. E, com certeza, se não tivesse se encantado, ficaria triste demais por ver a primeira Compadecida do audiovisual, virar uma inimiga da cultura que ele tanto prezava e protegia. Questionava: como deixar de lado essa cultura que é a expressão do nosso país e do nosso povo? E fazia um apelo: não deixem cair a chama da cultura brasileira.
Estamos tentando, Mestre.
*Inez Viana é atriz e diretora da Cia OmondÉ
Edição: Eduardo Miranda