FILA ÚNICA

Usar leitos da rede privada é saída incontornável para o SUS, defendem especialistas

Com superlotação do SUS, governos estaduais têm solicitado leitos a hospitais privados, que têm metade das vagas do país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Metade dos leitos de UTI do país, cerca de 15 mil, pertencem a estabelecimentos particulares - Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Com quase 189 mil pessoas infectadas pela covid-19 no Brasil, a requisição administrativa de leitos privados de Unidade de Terapia Intensiva (UTIs) pelo poder público tem sido defendida arduamente pela comunidade médica e por outros setores da sociedade civil. 

A campanha Leito para Todos, por exemplo, sustenta que a medida ajudaria a enfrentar a desigualdade social que a insuficiência de leitos tem explicitado em todo o país, caso adotada de forma ampla por estados e municípios.

Isso porque, enquanto milhares de brasileiros que manifestam os sintomas mais graves da covid-19 dependem unicamente do Sistema Único de Saúde (SUS) e estão com o atendimento comprometido devido à superlotação das UTIs, a realidade é diferente para aqueles que conseguem arcar com os custos de convênios e da rede privada como um todo.

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Conforme informações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Ministério da Saúde, 75% dos brasileiros não têm acesso a plano de saúde, enquanto metade dos leitos de UTI do país, cerca de 15 mil, pertencem a estabelecimentos particulares.

Dados da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) detalham o grau da disparidade: Enquanto a média nacional é de 1,4 leito de UTI para cada 10 mil habitantes no SUS, o setor privado, conta com 4,9 leitos a 10 mil segurados. 

Neste cenário, o que tem sido defendido é a administração ampla dos leitos por parte do SUS, que permitiria a criação de uma fila única para o acesso ao atendimento médico nos casos mais graves, sejam em hospitais públicos ou privados, independente da capacidade de pagamento de cada paciente. 

Buscam-se vagas

O debate sobre a utilização dos leitos ociosos da rede privada acontece em meio a um cenário trágico. Em Pernambuco, por exemplo, de acordo com o último boletim divulgado pela Secretaria de Saúde do estado, a taxa de ocupação dos leitos de UTI está em 97%.

Na grande São Paulo, estado que concentra o maior número de casos, a ocupação dos leitos públicos de UTI está em 87,2%. No Ceará, que nesta quarta-feira (13) ultrapassou o Rio de Janeiro e se tornou o segundo estado com mais pessoas infectadas, o índice é de 88,23%.

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No momento, o Rio apresenta uma taxa de ocupação de 86% da rede pública, enquanto a da rede privada, conforme informações da secretaria de saúde, a taxa é de 75%. No Amazonas, a ocupação de leitos públicos de UTI também chega a 86%. 

Frente ao iminente colapso dos sistemas de saúde, o médico sanitarista Pedro Tourinho analisa que a utilização dos leitos privados é incontornável, ou seja, não há outra opção se não utilizá-los.

Para ele, a criação de uma fila única é urgente. “A vida humana deve ter o mesmo valor, seja você um usuário do setor privado ou do SUS. A Constituição Federal estabelece que saúde é um direito de todos. Ela permite que a iniciativa privada ofereça também assistência à saúde, mas, de modo algum, define que o acesso à saúde pública ou privada é um condicionante pra sobrevivência das pessoas ou não”, defende. 

Como funciona?

A requisição dos leitos privados foi autorizada pelo decreto de calamidade pública aprovado pelo Congresso Nacional em março, para fortalecer o combate à pandemia, e prevê "pagamento posterior de indenização justa" ao setor privado. 

A Lei Orgânica da Saúde, que regula o SUS, também autoriza requisições no de "necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias". 

Frente à alta demanda, a medida já foi adotada em alguns estados e municípios. No início desta semana, por exemplo, a prefeitura de São Paulo solicitou 100 leitos de UTIs a hospitais privados que operam na cidade, que está com mais de 80% das vagas municipais ocupadas.

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No total, cerca de 800 leitos particulares serão necessários para suprir a demanda, segundo estimativa da gestão Bruno Covas (PSDB). Um levantamento da Secretaria Municipal de Saúde mostrou que a oferta é ampla: a capital paulista tem 247 hospitais privados, sendo que 107 são responsáveis pela gestão de 3.907 leitos. 

Ao todo, Covas já fechou parcerias com 11 hospitais privados para alugar leitos, que ficarão disponíveis para o sistema de regulação. A administração municipal deverá pagar R$ 2,1 mil por dia por cada leito alugado.

Entre os que atenderam ao chamamento da prefeitura para estão o  Hospital da Cruz Vermelha, Hospital da Universidade de Santo Amaro (Unisa), Hospital do Rim, Beneficência Portuguesa, Hospital Oswaldo Cruz, Hospital Santa Marcelina, Hospital Santa Isabel, Hospital São Luiz Gonzaga, Santa Casa de Santo Amaro, Hospitais Leforte e Hospital Santa Cruz.

Flávio Dino, governador do Maranhão, também assinou decreto de requisição administrativa de leitos privados em São Luís e Imperatriz recentemente. O governo do Ceará, por sua vez, adquiriu dois hospitais da rede de saúde privada para atender exclusivamente pacientes da covid-19, o Hospital Batista, em Fortaleza, e o Hospital Leonardo da Vinci, acrescentando mais de 300 leitos ao atendimento público.

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Além de fortalecer os estados que concentram as contaminações, o uso da estrutura privada ociosa poderia ajudar a impedir a proliferação da pandemia em outros locais. Em Goiás, por exemplo, que registra 1134 casos e 61 mortes confirmadas pela covid-19, a porcentagem de vagas da rede privada desocupadas é considerável, em comparação com a oferta do sistema público.

Dos 68 leitos da rede estadual para atender os pacientes com coronavírus em estado crítico, apenas 11 estão disponíveis. Entre os 140 leitos classificado para atender casos semicríticos, somente 30 estão vagos.

Por outro lado, a Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás (Ahpaceg) afirma que a média de ocupação dos leitos de UTI tem ficado apenas em 20%, uma ociosidade de 80% que poderia estar contemplando o atendimento público.

Segundo explica Túlio Franco, doutor em Saúde Coletiva e docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), uma fila única de acesso aos leitos seria coordenada em nível estadual, municipal e federal, a partir da instauração de um sistema de regulação unificado que já existe no SUS e é utilizado, por exemplo, para acesso de pacientes ao transplante de órgãos. 

Franco reforça a urgência em ocupar os leitos vagos do sistema privado. “Existem, no Brasil, em torno de 15,6 mil leitos privados, e parte desses leitos está ociosa. [A requisição] É algo absolutamente adequado para ser feito nesse momento”. 

A recomendação do uso da rede privada também foi endossada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que defende que seja criado um gabinete específico de crise formado pelos órgãos de controle da Administração Pública, como os Ministérios Públicos e os Tribunais de Contas. 

“Estamos colocando o princípio ético de que as vidas têm o mesmo valor, então tem que ter acesso ao serviço de forma indistinta. São valores legais e éticos. Está previsto na Constituição. Existe um consenso na sociedade de que a reivindicação de leito para todos é muito justa e apropriada para esse momento”, complementa Franco, que integra a campanha “Leito para Todos”.

Ele critica interesses escusos que podem travar as negociações para que a fila única seja implementada. 

“Até agora, o que vimos é que a manifestação de alguns proprietários de hospitais e representam o setor privado, se posicionam contra. Isso não é adequado e justo nesse momento. Não seria humano com as pessoas que estão absolutamente desesperadas, buscando leitos para se salvar e os entes queridos das famílias e não estão conseguindo”. 

Tourinho, que também é professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ecoa a análise e ressalta que o contexto pelo qual passamos é inédito na história do país e demanda atuação conjunta de todos os setores. 

“Agora, de forma aguda, não ter acesso a um leito hospitalar vai definir se você vai morrer. O leito tem que ser visto de forma indistinta, seja ele localizado no setor público ou privado. O setor público vai pagar, evidentemente, por qualquer ocupação de leito do setor privado como paga sempre. Nada é feito de graça. Uma eventual utilização de leitos privados pelo setor público não significa uma ocupação gratuita ou de caridade”, esclarece.

O médico sanitarista acrescenta que os estados devem ter a possibilidade de requisitar os leitos sem emaranhados burocrático ou administrativos, que tornem mais lentas as aquisições.

Sem informações

Apesar da requisição dos serviços privados em meio à pandemia ser prevista em lei, a falta de dados e de regulamentação do governo pode dificultar a adoção da medida por gestores públicos.

Exatamente para ultrapassar essa barreira, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou que o Ministério da Saúde apresente informações sobre ocupação de leitos e disponibilidade de respiradores na rede particular.

“O MPF quer que o Ministério da Saúde, de posse de tais informações estratégicas, regulamente a requisição de leitos privados pelos gestores públicos, definindo critérios para avaliar a necessidade dos pedidos, bem como as regras de custeio e de acesso às vagas”, diz o órgão em comunicado oficial. 

O MPF ainda sublinhou que para coordenar melhor a resposta aos efeitos da pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também recomenda que os países analisem a capacidade de seus sistemas de saúde público e privado conjuntamente.

A recomendação foi expedida conjuntamente pela Procuradoria da República em São Paulo e no Rio de Janeiro, estados onde a incidência da covid-19 é aproximadamente 50% maior do que a nacional.

Em nota enviada ao Brasil de Fato, o Ministério da Saúde informou que disponibiliza informações no Painel de Leitos e Insumos e que prepara o Painel de Gestão, que mostrará a ocupação dos leitos dos hospitais que já tiverem preenchido o Censo Hospitalar. 

"A ação cobre os 26 estados e Distrito Federal, a partir do registro obrigatório de internações hospitalares dos casos suspeitos e confirmados com covid-19 nos estabelecimentos de saúde públicos e privados. Os resultados permitirão a avaliação do consumo dos leitos da rede assistencial para auxiliar nas medidas de apoio às gestões locais no enfrentamento da doença", diz o texto. 

A pasta informou ainda que até o final da semana passada, dos 1688 hospitais que estão nos Planos de Contingência dos estados, 1539 já se cadastraram. O ministério ressalta que a atualização das informações depende do preenchimento do sistema por todos os hospitais que tenham leito disponível para enfrentamento ao coronavírus, que "nesse instante estão sobrecarregadas com os esforços para garantir o atendimento dos pacientes". 

*Matéria atualizada às 8h de 15 de maio para inserção de posicionamento do Ministério da Saúde

Edição: Vivian Fernandes