Justamente neste mês de maio, próximo de completar três meses de pandemia e no marco dos 132 anos da abolição da escravidão no Brasil, fica mais evidente o desastre em curso desencadeado pelo novo coronavírus. Considerando as informações de “raça” e cor, é possível ver qual parcela da sociedade está morrendo mais ou qual tem mais chances de morrer com a pandemia.
Negros e negras somam 43,1% dos hospitalizados, mas representam mais da metade das mortes, 50,1%, contra 47,7% de pessoas brancas, de acordo com os dados do Boletim nº 15 da Secretaria de Vigilância do Ministério da Saúde. Desse total, 65% das vítimas apresentaram algum tipo de comorbidade associada, com destaque para as doenças cardiovasculares (3.425 dos óbitos), diabetes (2.660 óbitos), doença renal (621 óbitos), doença neurológica (550 óbitos) e pneumopatia (544 óbitos).
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“E daí?”, respondeu Jair Bolsonaro (sem partido) ao ser indagado sobre o aumento do número de casos do novo coronavírus no Brasil. As mortes causadas pela covid-19 no país ultrapassaram 12 mil casos e o número de infectados soma mais de 170 mil. Desse total, pouco mais de 67 mil foram recuperados. Os especialistas dizem que esse número está longe de representar a realidade de infectados no país, considerando a baixíssima testagem da população.
Pesquisa feita pelo Observatório Covid-19 e pela Prefeitura de São Paulo mostra que, até 17 de abril, somado a porcentagem de pretos (62%) e pardos (23%), a população negra na capital têm 85% mais chance de morrer pelo vírus do que qualquer outro grupo social. Esses dados são reveladores das desigualdades raciais e de classe vigentes na sociedade, para exterminar e marginalizar pretos e pretas no país. Sejam quais forem as crises, econômicas, políticas, ambientais ou sanitárias, pretos e pretas, quilombolas e indígenas são grupos de risco permanente.
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A brutal desigualdade existente nas condições de vida, de moradia ou de alimentação entre pretos e brancos recoloca o significado do 13 de maio de 1888 em foco. O decreto ardiloso que oficializou o fim da escravatura no Brasil reservou aos negros e às negras a pobreza, o desemprego, as doenças, o sistema prisional, a exclusão social e toda sorte de precariedades.
Para os africanos e seus descendentes, a pandemia se iniciou com os primeiros navios negreiros que aportaram na África, foi intensa com a escravidão e segue matando depois de anunciado seu fim. Mas se a pandemia atinge só os negros, ela pode ser ignorada ou minimizada, afinal eles morrem de tanta coisa, não é mesmo? Assim funciona o pensamento racista, como demonstrou o fundador da XP Investimentos, Guilherme Benchimol, que disse em tom comemorativo: “O Brasil está indo bem no controle da covid-19”, pois, “o pico nas classes médias e altas já passou; o problema é que o país tem muita favela”.
Há pouco mais de 100 anos, a gripe espanhola matou entre janeiro de 1918 a dezembro de 1920 cerca de 35 mil pessoas em nosso país. Inclusive o presidente eleito Rodrigues Alves morreu vítima da pandemia, episódio que reforçaria a ideia de ser esta uma doença “democrática”. Contudo, os estudos sobre o impacto da pandemia mostram que a imensa maioria dos infectados e mortos eram pessoas negras, da classe trabalhadora, contagiados nas fábricas, nos portos, nas ruas (classificado como “indigentes”), nos cortiços, favelas ou no cárcere, onde morriam de forma isolada e desassistida.
A interação entre desigualdade social, subnutrição e precárias condições sanitárias resulta em um terreno fértil para o espalhamento do coronavírus. O organismo humano, sob esses condicionantes, apresenta uma imunidade de baixíssima resistência e pouca capacidade para sobreviver às debilitações provocadas pelo vírus.
As pandemias sintetizam as contradições de classe, raça e gênero uma vez que acentuam desigualdades. As mulheres negras, principalmente, estão na linha de frente do trabalho de enfermagem e de cuidados, exauridas pela dupla e tripla jornada de trabalho, e são as que mais buscam o serviço público de saúde, embora o número de óbitos seja superior entre os homens, em decorrência do diferente estilo de vida promovido pela sociedade capitalista patriarcal, que expõe os homens a maior vulnerabilidade. Acrescenta-se aí o aumento em 9% do número de denúncias de violência doméstica no Brasil, segundo dados de órgãos federais. Até março, houve um aumento de 50% das denúncias no Rio de Janeiro e de 30% em São Paulo.
O momento atual acende a luz de alerta. O avanço da pandemia sobre os setores mais empobrecidos e com condições de vida mais precárias pode ser catastrófico. Esses segmentos da população vivem em bairros periféricos, nas ruas, nas favelas, nos cortiços e em abrigos, onde estão estão milhares de trabalhadores e trabalhadoras negras que precisam lutar diariamente para sobreviver com os trabalhos informais, prestação de serviços ou outras formas.
Especialistas chamam a atenção para a probabilidade do aumento do número de mortes em domicílios, albergues e em via pública. Geralmente, vítimas do racismo institucional, muitas são aquelas pessoas que possuem os sintomas, mas, diante da impossibilidade de fazer o teste da covid-19, são orientadas a deixarem os hospitais e há também os que nem buscam o serviço médico. Nessas circunstâncias, são muitos os óbitos sem causa confirmada para a covid-19.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, conforme o censo da população em situação de rua, havia 24.344 mil pessoas vivendo nas ruas da capital até 2019 (número que é bem maior, segundo associações do setor). Desse total, 69,3% são pessoas pretas e pardas e a maior porcentagem dessa população é do sexo masculino, 85% contra 15% de mulheres e 386 pessoas transexuais, transgêneros e travestis. Cumpre ressaltar que essa população não tem acesso a água nem a kits de higiene pessoal e menos ainda alimentação regular, nem a possibilidade de quarentena.
Importante frisar que a pandemia da covid-19 tem implicações distintas para a classe trabalhadora, negra, pobre e para as mulheres, ou seja, ela é demarcada pelo recorte de raça, classe e gênero. Essa desigualdade social atinge graus extremos de perversidade quando impõe sobre os infectados a culpa por esta condição. Como é o caso da população que se aglomera há vários dias nas filas dos bancos à espera do acesso ao chamado auxílio emergencial.
A classe trabalhadora que lutou muito para que o Sistema Único de Saúde (SUS) existisse, e pela sua defesa, precisa urgentemente se levantar contra o genocídio social promovido por este governo neofascista, que aprofunda a crise no país frente à pandemia e se aproveita, de forma covarde, deste momento difícil e de luto para várias famílias para impor medidas contrárias ao interesse do povo brasileiro.
Como bem têm demonstrado as ações de solidariedade construídas entre trabalhadores e trabalhadoras para minimizar os efeitos desta crise são exercícios de unidade e de auto-organização política. É do fortalecimento desses vínculos orgânicos entre os mais diversos setores da classe trabalhadora, que deve surgir a força necessária para superar o coronavírus, derrotar o governo Bolsonaro e a necropolítica que o Estado capitalista impõe sobre os povos do Brasil e do mundo.
Edição: Camila Maciel