Grandes operações agrícolas realizadas pela Universidade de Harvard há mais de uma década impactam diretamente comunidades rurais no Brasil, principalmente em regiões da Bahia e do Piauí. É o que denuncia um novo relatório lançado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, em parceria com a Grain e outras organizações internacionais nesta terça-feira (12).
O documento expõe como a Universidade utilizou empresas no agronegócio para se apropriar de mais de 400 mil hectares no Cerrado brasileiro, exercendo um papel fundamental na corrida global por terras agricultáveis que aconteceu entre empresas financeiras após a grave crise econômica de 2008.
Somente nos oito anos primeiros anos após a crise, Harvard investiu mais de US$ 1 bilhão na aquisição de terras agrícolas e passou a ter controle sobre 1 milhão de hectares ao redor do mundo. Os terrenos estão localizados nos Estados Unidos, no leste europeu, na África do Sul, Nova Zelândia, Austrália e, principalmente, no Brasil, onde Harvard adquiriu 40 fazendas.
Segundo o relatório, para burlar a legislação brasileira que restringe a propriedade estrangeira sobre a terra, a exploração se deu por meio do financiamento direto de três empresas do agronegócio: a Insolo Agroindustrial S/A, a Gordian Bioenergy (GBE) e sua subsidiária Terracal, e a Caracol Agropecuária.
Futuro sombrio
A iminente aprovação da MP 910 cairá como uma luva para essas e outras empresas interessadas em se apropriar de terras no Brasil. O projeto apoiado pela bancada ruralista pretende legalizar, até 2022, cerca de 600 mil imóveis rurais e permitir que o novo proprietário venda a terra após três anos.
A medida tornará privados mais de 65 milhões de hectares, uma área maior do que o estado da Bahia, legalizando terrenos ocupados até dezembro de 2018 na Amazônia Legal e até maio de 2014 para o resto do Brasil, incluindo o Cerrado.
Segundo Larissa Packer, da Gran America Latina, a MP fomenta a execução de estratégias para bular o limite de aquisição de terras por estrangeiros, incentivando mecanismos usados por fundos internacionais, a exemplo de Harvard, para controlar as terras brasileiras por meio de empresas nacionais laranjas.
“A MP acaba institucionalizando crimes de invasão e desmatamento ilegal no Brasil. Processos que vêm sendo conduzidos por um negócio internacional de compra e venda de terras. O Estado vai subsidiar esse negócio, barateando o primeiro ciclo da grilagem com dinheiro público, e depois autoriza revenda dessas terras em apenas três anos. Então, se regulariza uma área pública em favor de uma pessoa jurídica que pode ter um capital estrangeiro por trás, e depois essa área pode ser revendida para qualquer pessoa, física ou jurídica”, explica a pesquisadora.
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Impactos sociais
Entre as comunidades tradicionais mais atingidas pela atuação das empresas financiadas por Harvard no Cerrado brasileiro, a savana com maior biodiversidade no mundo, está a comunidade rural de Arthur Passos, no Piauí.
Descendentes de populações africanas e reconhecidos oficialmente como quilombola, o que lhes garantiriam o direito à terra, os moradores da comunidade viram o processo de titulação oficial do território ser drasticamente interrompido em 2013, quando a Terracal reivindicou toda a área ao redor das casas da população local.
A Gordian Bioenergy instalou uma cerca de 17 km na área e contratou seguranças privados para impedir a entrada dos quilombolas, aniquilando as possibilidades de manutenção do modo de vida tradicional dessa população.
As informações indicam ainda que as operações estão conectadas com níveis alarmantes de desmatamento e incêndios florestais, gerando graves efeitos para a crise climática global. Em 2015, por exemplo, a Terracal destruiu grandes áreas de florestas com o objetivo de iniciar um projeto massivo de monocultivo irrigado em 45 mil hectares. O recurso previsto de 350 milhões de dólares, porém, foi retirado pela Harvard, que orientou os gestores brasileiros a venderem a propriedade o mais rápido possível.
Contudo, as terras estão ociosas há cinco anos e as violações dos direitos humanos dos quilombolas também continuam. Conforme a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos constatou no segundo semestre do ano passado, no local ainda se observa a presença de seguranças privados para impedir que os moradores retornem às terras.
Altamiran Ribeiro, da coordenação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Piauí, reforça a gravidade dos impactos sociais decorrentes da expulsão das comunidades e da atuação predatória das frentes do agronegócio. Ele acompanhou de perto as consequências que a atuação da Insolo Agroindustrial trouxe para as comunidades no sul do estado.
“Eles usavam as chapadas para criar animais e colher frutos. Hoje não existe mais esse espaço. [A ofensiva] Vai direto contra a segurança alimentar dessas pessoas. As empresas destroem 100% das fazendas, tiram toda a mata, e muitas pragas que tem em cima das serras descem e devoram as lavouras das famílias. O pessoal não consegue colher os alimentos da roça, plantados todo ano”, lamenta Altamiran.
Ele conta ainda que, em períodos de chuvas, os agrotóxicos usados pelas empresas nas lavouras são carregados pelo vento, contaminando plantações de pequenos produtores, assim como nascentes de água utilizadas pelas famílias. Com a saúde ameaçada, os moradores são obrigados a deixar os territórios, que logo são apropriadas pelos grileiros.
O esquema de Harvard
De acordo com o relatório, entre junho de 2008 e junho de 2016, Harvard injetou mais de US$ 138,7 milhões apenas na Insolo. A Universidade detém 95,8% da empresa, que adquiriu pelo menos seis fazendas com um total de 115 mil hectares no Piauí.
Já a Gordian Bioenergy/Terracal, dona de terras agrícolas na cidade e nos arredores de Guadalupe, também no Piauí, recebeu 246 milhões de dólares transferidos de Harvard entre 2008 e 2015. O investimento foi destinado à construção operações de cana-de-açúcar e de produção de tomate em larga escala.
No total, foram mais de 30 fazendas para Harvard em cinco estados do nordeste brasileiro, totalizando 168 mil hectares que até hoje permanecem ociosos.
Antes da agricultura, a instituição também investiu no setor madeireiro. Foram mais de 10 milhões de dólares entregues a Caracol Agropecuária, criada em parceria com empresários brasileiros da Granflor Agroflorestal.
A Universidade detém 100% da empresa por meio de um grupo de subsidiárias registradas no estado norte-americano de Delaware. O negócio também recebeu mais de 60 milhões de dólares da administradora de fundos da Universidade Blue Marble Holdings entre junho de 2008 e junho de 2016 para a aquisição de terras, principalmente no estado da Bahia.
No entanto, conforme alertam as organizações, a aposta de Harvard se transformou em um desastre financeiro para seu fundo patrimonial. A universidade teve que reduzir o valor de sua carteira de recursos naturais em 1,1 bilhão de dólares em 2017 e tentam encontrar compradores para suas propriedades rurais desde então - um imenso sinal de alerta para especuladores.
Indenização
Em tom crítico, o relatório endossa que “o fundo patrimonial de Harvard se descreve como um ‘investidor de longo prazo’ e afirma ter o compromisso de ser ‘um bom gestor das terras que detém e administra’”, mas não cumpre suas próprias diretrizes.
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“A instituição pode corrigir a situação, mas para isso precisa interromper a venda de suas terras no Brasil, devolvê-las às comunidades afetadas e pagar indenizações a essas comunidades. Essas são demandas de estudantes de Harvard e das comunidades brasileiras impactadas”, defendem as organizações.
Entre elas, a Fossil Fuel Divest Harvard, formada por estudantes, ex-alunos e professores da instituição. Em entrevista ao Brasil de Fato, o jovem Caleb Schwartz , integrante do grupo, condena a atuação da Universidade.
"Quando sentam em um escritório de Boston e fazem a escolha de pegar terras do Brasil, não estão fazendo isso a partir dos interesses das pessoas que moram lá ou estão preocupados com a saúde da terra. Está fazendo isso para obter lucros e fazer Harvard ainda mais rica. O relatório da Grain mostra o quão pouco eles se importam com as pessoas afetadas por seus investimentos”, diz o representante.
“Harvard não precisa desse dinheiro - e como seus alunos, não queremos que nossa educação seja financiada pela exploração global”, ressalta Caleb, defendendo que os fundos de pensão da Universidade responsáveis pelos investimentos devem ser responsabilizados. “Caso contrário, eles continuarão a brincar com a vida das pessoas e com a saúde do nosso planeta”.
Edição: Rodrigo Chagas