“Nesta pandemia, não estamos todos no mesmo barco, estamos no mesmo mar; uns em iates, outros em lanchas, outros em coletes salva-vidas e outros nadando com todas as forças”. A metáfora utilizada em um comunicado de sete organizações indígenas no estado mexicano de Hidalgo ajuda nas reflexões sobre quais setores sociais serão mais afetados pelos impactos do novo coronavírus. Na América Latina, os povos originários aparecem entre aqueles que, à braçadas, resistem ao desdém de seus governantes, sendo ignorados em câmeras e microfones.
Medidas específicas esvaziadas ou insuficientes ou protocolos especiais; falta de serviços básicos (principalmente água potável); doenças preexistentes relacionadas à pobreza e ausência ou grandes distâncias dos serviços de saúde; complicações na venda e compra de alimentos devido ao fechamento de estradas e mercados; falta de documentação para acessar programas sociais; pouca divulgação preventiva com uma abordagem intercultural e nas línguas indígenas. Uma combinação de problemas que deixam grande parte das comunidades originárias da região em extrema vulnerabilidade. Se o cenário anterior já era uma emergência, a pandemia aprofunda as desigualdades.
A conquista europeia que devastou os povos que habitavam o continente não teve apenas a espada e a Bíblia como armas principais. O fator epidemiológico foi fundamental: as doenças importadas (tifo, varíola, peste bubônica) contribuíram muito para dizimar a população indígena durante o maior genocídio da história; na verdade, diz-se que foi a varíola o que realmente destruiu o Império Asteca. Outras epidemias, como malária, sarampo e gripe, também fizeram estragos em territórios indígenas ao longo da história. É por isso que a erupção da covid-19 fez disparar os alarmes e aumentar as reivindicações de assistência urgente. Sua entrada nas comunidades seria trágica e faria um grande favor às empresas transnacionais extrativistas, sempre sedentas por terras e recursos naturais
A população indígena da América Latina ultrapassa 45 milhões de pessoas, o que representa 8,3% da região, sendo a área com a maior densidade demográfica indígena do planeta. 826 diferentes povos indígenas estão registrados. Em seu relatório anual de 2019, a CEPAL destacou que a pobreza dos povos indígenas é 26% maior que a dos não indígenas.
Recentemente, o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC) solicitou uma reunião com os governos da região uma reunião específica para tratar do tema e observou que "nenhuma das fontes de informação globais ou regionais inclui dados específicos sobre a população indígena”.
Peru: lavar as mãos com água cheia de petróleo
Na Amazônia peruana, os rios foram tingidos com petróleo nas últimas décadas, multiplicando problemas e doenças. Quatro federações indígenas do Estado de Loreto alertaram para "as condições precárias em que se encontravam os indígenas quando a pandemia chegou: um contexto de contaminação persistente por petróleo envenenando comida e água, surtos de malária e dengue e ausência do Estado, o que frequentemente implica dias de viagem para questões básicas, como chegar a um centro de saúde ".
As organizações exigem medidas para evacuar os possíveis infectados e "informações para as comunidades com informações claras, seguras, apropriadas e nas línguas indígenas". O Peru tem mais de 4 milhões de pessoas que falam uma língua diferente do castelhano. Embora alguns materiais de divulgação tenham sido traduzidos, outro problema aparece: muitas comunidades não possuem acesso à internet, eletricidade ou equipamentos eletrônicos para trabalhar com a plataforma educativa oficial “Eu aprendo em casa”. A Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Floresta Peruana, que agrupa cerca de 1.800 comunidades nativas, acusou o governo de "evidente negligência e discriminação reiterada" e denunciou às Nações Unidas "o perigo de etnocídio devido à inércia do Estado peruano".
No Peru, onde há registros de três indígenas infectados com covid-19, outro fenômeno está ocorrendo: o êxodo em massa de famílias pobres que fogem de Lima a pé devido à fome e falta de trabalho. Muitos deles são indígenas que retornam às montanhas e à floresta levando apenas as roupas do corpo.
Colômbia: a pandemia da violência
A população indígena na Colômbia - quase dois milhões de habitantes, 4,4% do total - tem um grande desenvolvimento organizativo. A Organização Indígena da Colômbia (ONIC) emitiu, pela primeira vez, um alerta epidemiológico e ativou um plano de contingência que inclui o bloqueio de estradas, permitindo apenas a passagem do transporte de alimentos e produtos básicos. De La Guajira à Amazônia, a chamada "Guarda Indígena" impede a entrada de turistas e instituições privadas nas cidades. As primeiras a fazê-lo foram as comunidades da Sierra Nevada de Santa Marta, que bloquearam o acesso ao Parque Nacional Tayrona, uma das principais atrações turísticas. "A estratégia de prevenção e contenção está dividida em três ações: pedagogia para entender a pandemia, controle territorial através das guardas indígenas e mobilização de conhecimentos por especialistas em medicina indígena", explicou Ángel Jacanamejoy, líder das autoridades indígenas tradicionais.
A ONIC confirmou a primeira morte por coronavírus e relatou que sete indígenas estão infectados e 90 estão sob observação. A organização também denuncia que "a escassez de água potável e o confinamento devido ao conflito armado exacerbam a situação". É que, além da covid-19, o maior perigo continua sendo os grupos paramilitares. Durante o governo de Iván Duque, 162 indígenas já foram assassinados. E a intimidação e as mortes não diminuíram durante a quarentena. Luis Fernando Arias, conselheiroda organização relata que: "nas últimas semanas, houve diversas ameaças, especialmente no norte de Cauca. O genocídio contra os povos indígenas se tornou nossa pior pandemia nos últimos anos".
México: defesa zapatista
Com cerca de 16 milhões de pessoas, o México é o país com a maior população indígena da região. O acesso às comunidades indígenas também foi implementado em muitas áreas. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) declarou alerta vermelho em suas comunidades e fechou seus centros organizativos "considerando a falta de informações precisas e oportunas, bem como a ausência de um plano real para enfrentar a ameaça da pandemia". Também colocou postos de controle e de higienização na entrada de suas comunidades e ativou uma quarentena preventiva para aqueles que retornaram a seus povoados. Em um comunicado, o movimento zapatista também pede que "a luta contra o feminicídio, pela defesa do território e da Mãe Terra não sejam esquecidas". O texto termina dizendo: "Chamamos a não perder contato humano, mas mudar temporariamente as formas de nos entendermos como companheiras e companheiros, irmãs e irmãos".
Medidas semelhantes foram tomadas pelo Congresso Nacional Indígena (CNI). Carlos González, um de seus dirigentes, pontuou outro elemento importante: “Entre os povos indígenas, os idosos desempenham um papel essencial e vital para a sobrevivência das comunidades e sua reprodução. É uma preocupação muito séria. ” González também reiterou a precariedade da infraestrutura de saúde, mas destacou que, como contrapartida, os povos indígenas "poderão se proteger melhor graças à sua própria vida comunitária". A CNI prevê que a pior situação para os indígenas esteja nas cidades, motivo pelo qual realiza coleta de doações para apoiar as famílias urbanizadas.
Da Patagônia ao Rio Bravo
Os mesmos medos, dilemas e exigências se repetem em todo o continente.
Na Bolívia, a legislação reconhece 34 nações e povos originários. No Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), que abarca 64 comunidades, seus habitantes denunciam o descaso do governo, a falta de informações e a escassez de medicamentos e alimentos devido à interrupção do comércio. O dirigente Pedro Moye afirma que “nenhum material de higiene ou medicamentos, ou qualquer outro protocolo sanitário sobre como agir caso seja registrado algum contágio nas áreas rurais. Eles só foram criados apenas para as capitais. Ele também destaca outra dificuldade: “Não há ambulâncias ou meios de transporte para levar rapidamente uma pessoa doente ao hospital. Essa é a maior preocupação no momento".
No Brasil, onde já existem registros de pelo menos três indígenas falecidos e 31 infectados pelo novo coronavírus, o fantasma não tão distante da gripe A-H1N1, causando a morte de centenas de indígenas principalmente guaranis, volta a assombrar as comunidades. O medo da covid-19 se potencializa, já que um terço das mortes de indígenas no Brasil se deve a doenças respiratórias. O Fórum Nacional Permanente de Defesa da Amazônia exigiu "um plano de contingência que leve em consideração as especificidades de seus povos e seus modos de vida comunitários, o que sem dúvida facilita a rápida propagação do vírus".
A outra grande ameaça se chama Jair Bolsonaro, que além de minimizar a pandemia e contrariar todas as recomendações, deu carta branca ao desmatamento na Amazônia e expulsou o contingente de médicos cubanos, deixando muitas comunidades sem assistência médica. Nice Gonçalves, jornalista e ativista indígena, destaca: "Em 2019, a mortalidade infantil aumentou 12% devido à saída dos médicos cubanos e ao desmonte da saúde indígena".
A situação também é crítica no Paraguai, onde os indígenas realizam bloqueios de estradas. A organização Terra Viva divulgou que: “as estatísticas anteriores à pandemia já indicavam que 65% dos povos indígenas estão na pobreza e mais de 30% na pobreza extrema; a isso se soma a atual situação de isolamento que impossibilita sair para trabalhar. A exclusão estrutural está se aprofundando e a fome está atingindo fortemente as comunidades do Chaco".
Por esse caminho
O mundo que a pandemia está fazendo nascer expõe o rosto do sistema e abre as portas para debates urgentes sobre a necessidade de um novo paradigma civilizatório. Talvez seja o momento oportuno para colocar o foco nas filosofias de vida dos povos originários, sintetizadas no conceito sumak kawsay, isto é, o Bem Viver.
*Gerardo Szalkowicz é jornalista e editor do Nodal.
Edição: Nodal