Coluna

Autocrítica não diminui ninguém, engrandece

Imagem de perfil do Colunistaesd
Não há militância sustentável sem desenvolver a capacidade de admitir erros e fazer autocrítica - David Gannon /AFP
A autocrítica, a admissão honesta do erro, a correção de rumos, é uma saída enriquecedora

Um bom tema de conversa sobre a militância é a relação entre ativismo e felicidade. Através da militância procuramos autoemancipação, desalienação, e plena realização, mas o compromisso não é indolor. Toda aproximação infantilizada a este debate é deseducativa. Militar é defender ideias. Quem defende ideias e propostas corre o risco de errar. Errar traz sempre algum grau de sofrimento. O que nos coloca, quando erramos, diante de uma encruzilhada na qual só há quatro respostas: desmoralização, autonegação, autoengano, ou autocrítica.

A militância se sustenta na esperança da possibilidade de transformar o mundo e diminuir a injustiça, desigualdade, exploração, opressão, tirania. A militância é uma resposta às condições políticas e sociais que perpetuam o sofrimento humano. Essa aposta é difícil, arriscada e incerta, e exige abnegação, desapego e firmeza, senão sacrifício.

Tem, também, evidentemente, muitas recompensas subjetivas: o contentamento emocional de que vencemos as paixões egoístas, o conforto moral de que somos úteis, a satisfação mental de que entendemos o mundo que nos cerca, o orgulho que desperta da ação para transformá-lo, ou o alívio psíquico de que não somos indiferentes e, portanto, a vida tem um sentido. Mas a maior alegria é pensar que temos razão. Lutar pela causa justa, ser uma pessoas decente, ter a certeza de estar certo traz felicidade, porque ficamos contentes conosco mesmos.

Mas se é assim, por que tantos militantes desistem? Ou, no nosso jargão dramático, quebram? Em espanhol se “hunden”, ou seja, afundam, como os barcos que naufragam, talvez mais poético. Quais são as dores da própria militância? Há muitas, a lista é longa. Entre as mais comuns, há três boas grandes explicações: (a) quebram porque os riscos são grandes, porque o medo pode ser avassalador, pelas pressões de classe, porque a dedicação militante exige muito; (b) quebram porque cansam, porque os anos passam e a luta é longa e difícil; (c) quebram porque ficam desgostosos com outros militantes, ou em função do funcionamento insatisfatório das organizações.

Há, todavia, outra grande hipótese. Ela é muito séria, e merece ser considerada. Quebram porque são confrontados com o impacto da realidade que contradiz as suas crenças. Descobrem que acreditavam em, pelo menos, algumas ideias erradas, e perdem a confiança. Ninguém é infalível, nem o Papa. Logo, todos erramos, e as organizações erram, também.

Diante dos erros só há quatro caminhos, e nenhum deles é indolor: (a) o primeiro é a desmoralização, o reconhecimento do erro e a desistência; (b) o segundo é a autonegação, a obtusidade de não admitir o erro, ou seja, algum grau de desconexão com a realidade, ou de perda de lucidez, o que nunca é saudável; (c) o terceiro é o mais complexo, psiquicamente, o autoengano ou duplicidade, que é a aceitação do erro para si mesmo, mas a incapacidade de admitir o erro diante dos outros, porque o comprometimento emocional com as ilusões foi grande demais, o sacrifício feito não permite admitir que foi em vão, e a pessoa fica fraturada; (d) e o último é a autocrítica, a admissão honesta do erro, a correção de rumos, e luta que segue. Só a autocrítica é uma saída enriquecedora. Mas, nunca é indolor.

Claro que existem erros e erros. As diferentes proporções têm importância. E os graus de responsabilidade de cada um de nós também variam. Mas ninguém está imune. Três exemplos ilustrativos, mas incontornáveis: (a) a restauração capitalista, liderada pela maioria dos dirigentes dos Partidos Comunistas caiu como uma pedra do muro de Berlim sobre as costas de uma geração de comunistas que mantinham referência na ex-URSS, e ainda acreditavam, em algum grau, que estava em transição ao socialismo; (b) o avanço da ofensiva neoliberal nos anos noventa destruiu as esperanças de uma geração de trotskistas que tinham a expectativa da iminência da revolução mundial com o colapso do estalinismo; (c) as denúncias de corrupção durante os governos do PT abateram uma geração de ativistas de esquerda que entregaram o melhor de suas energias ao projeto representado por Lula.

Evidentemente, a realidade é sempre mais poderosa do que as ilusões. E grandes ilusões trazem grandes desilusões. Quando não se faz autocrítica, restam a autonegação, o autoengano ou a desmoralização. Nenhum destes caminhos é produtivo. Não há militância sustentável sem desenvolver a capacidade de admitir erros, e fazer autocrítica. Autocrítica não diminui ninguém. Portanto, desconfie de quem nunca admitiu que errou. São pessoas perigosas.

Edição: Luiza Mançano