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Lavando as mãos numa bacia de sangue

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Bolsonaro parece estar gostando de ver o Brasil subir no ranking de óbitos e casos confirmados de coronavírus - Evaristo Sa / AFP
Imune à fanfarronice de Bolsonaro, a covid-19 insiste em ser um problema que cabe ao governo federal

Na segunda recebe agente da ditadura, no fim de semana diz que vai fazer um churrasco, lavando as mãos diante de dez mil brasileiros mortos. Bolsonaro parece estar gostando de ver o Brasil subir no ranking de óbitos e casos confirmados de coronavírus: enquanto houver pandemia, as “instituições democráticas” continuarão tolerando seu cotidiano show de horrores.

1. O Brazil quer matar o Brasil. Coube ao presidente de uma corretora de investimentos escancarar o que até então permanecia no subtexto: a elite brasileira quer o retorno das atividades econômicas porque, agora, o coronavírus é um problema dos mais pobres.

Para Guilherme Benchimol, o Brasil vai bem no controle do coronavírus, já que “o pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta”. Em Belém e Manaus, uma das capitais mais afetadas pela pandemia, os pacientes ricos têm usado UTIs aéreas para fugir em busca de tratamento melhor em Brasília ou São Paulo.

Também em Belém, o prefeito colocou as empregadas domésticas no rol de serviços essenciais. No período de duas semanas entre 11 e 26 de abril, o número de pessoas pretas que morreram oficialmente por covid-19 quintuplicou, passando de 180 para mais de 930, segundo análise da Agência Pública.

Os que não morrem são levados às filas nas agências da Caixa para sacar 600 reais e, se reclamam de problemas para acessar o auxílio emergencial, são chamados de “minoria barulhenta” pelo presidente da República.

É neste cenário que Bolsonaro, mais uma vez, ignora a recomendação do ministro da Saúde, que vem defendendo o isolamento social no momento em que o Brasil atinge recordes de óbitos, e põe o lucro acima da vida, no que é acompanhado por 15 presidentes de associações industriais que participaram, inadvertidamente, dizem agora, até de uma audiência surpresa no STF nesta quinta (7). 

O populismo bolsonarista conseguiu criar uma dicotomia entre saúde e economia, chegando ao ponto de falar em “morte de CNPJs” quando o Brasil contabiliza a morte de quase dez mil pessoas físicas, ignorando que são os países que implementaram as ações mais rígidas que agora conseguem retomar as atividades.

Mas isso tudo porque o Brasil está bem, o pico já passou na classe alta e os leitos de UTI na rede privada serão preservados, sonha a elite brasileira. Agora só morrem os pobres, ou os "velhos descartáveis" como Aldir Blanc, que Bolsonaro e boa parte da elite talvez nem saibam quem foi. O Brazil não merece o Brasil.

2. Combinar com o vírus. Dito isso, vale lembrar a esta mesma elite empresarial que, a não ser que o Brasil seja um país abençoado por Deus e diferente de todos os outros do planeta, não existirá retomada da economia sem a diminuição dos casos pelo distanciamento social.

Nem a Suécia, apontada por figuras como Osmar Terra como exemplo por supostamente não ter imposto quarentena, é exemplo: lá, a população voluntariamente adotou medidas de distanciamento e a falta de quarentena fez o país, que já conta com mais de três mil mortos, estar em uma situação sanitária e econômica pior que a dos seus vizinhos.

Por aqui, na vida real brasileira que parece escapar às associações empresariais, a reabertura precoce do comércio faz o número de casos confirmados explodir, como mostra o exemplo de Santa Catarina, ainda que o governo estadual atribua o fenômeno ao aumento da testagem.

Depois dos primeiros casos importados do exterior e da concentração nas capitais, estamos vivendo o momento em que o coronavírus está avançando para as cidades do interior, geralmente menos assistidas em saúde. É bem possível que o Brasil ainda não tenha chegado ao pico da pandemia e uma situação de “normalidade” só volte a ser sentida no mês de julho.

Neste contexto, um cenário provável para as próximas semanas é que estados passem a decretar “lockdown” nas cidades mais afetadas, como já está acontecendo em diversas cidades brasileiras. Como se diz há algum tempo, a quarentena viria por decisão planejada dos governantes ou por imposição do coronavírus.

O Brasil já é o oitavo país do mundo em casos confirmados da doença e o sexto em número de mortes e um estudo já aponta uma relação entre a adesão ao discurso bolsonarista e o aumento da infecção por coronavírus, mas Bolsonaro segue lavando as mãos, mas numa bacia de sangue, e como resposta só oferece o deboche típico de um sociopata: começa a semana recebendo um agente da repressão da ditadura e termina anunciando que vai promover um churrasco.

3. Existem lealdades maiores. Se o presidente se sente à vontade para manter essa postura infame, além de seu show dominical de agressões verbais e físicas, agora com uma claque permanente acampada em Brasília, é porque olha para o horizonte e não vê ameaça real de impeachment.

E olha do alto dos ombros de dois gigantes. Primeiro, do empresariado, como ele mesmo fez questão de demonstrar na caminhada ao STF. Vale para os industriais, mas principalmente para o mercado financeiro, que está fechado com Bolsonaro e inclusive acha positiva a aliança com o Centrão para que haja uma base governista, além de ver chance zero no impeachment, como verbaliza um economista do Banco Modal.

A segunda sustentação de Bolsonaro vem da ala militar. Sim, aqueles que alguns esperam que ajam como um poder moderador. Na prática, temos insistido aqui, os militares reclamam em público, mas concordam com as críticas ao Congresso e ao STF. E tanto não estão constrangidos que, a cada dia, ocupam mais e mais cargos, num verdadeiro governo militar inclusive na área da Saúde, cada vez mais tutelada pelos militares, como se o avanço da pandemia fosse um problema de desorganização do ministério e não da confusão causada pelo próprio presidente.

Ao mesmo tempo em que a pandemia impede as condições institucionais para um impeachment, o maior desgaste de Bolsonaro vem do novo coronavírus, que se recusa a se comportar como gripezinha. Imune à fanfarronice e aos arroubos de Bolsonaro, a covid-19 insiste em ser um problema que cabe sim ao governo federal, por maior que seja o esforço de Bolsonaro em computar o problema aos governadores ou ao STF.

Com cerca de dez mil mortes contrariando seus desejos de reabertura, sobra para Bolsonaro o populismo e os ataques para demonstrar uma força que ele acha que é pessoal e não outorgada pelo mercado e militares.

4. Quem poderá nos ajudar? Rodrigo Maia? Segundo a jornalista Taís Bilenki, na Piauí, três motivos freiam a disposição de Maia em abrir um processo de impeachment na Câmara: a pressão do mercado financeiro, a resiliência da popularidade de Bolsonaro e a incógnita sobre o desenrolar das denúncias de Sérgio Moro.

Enquanto assiste o Centrão caminhar alegremente ao Planalto, Maia e partidos da oposição preferem, por hora, apostar na possibilidade de uma CPI para sangrar o governo. Na prática, Maia, assim como a esquerda, sabe que não há impeachment sem pressão popular, difícil de ser medida em situação de isolamento.

Além disso, a popularidade de Bolsonaro precisaria derreter para a casa de um dígito. Uma queda brusca e acelerada que nem a saída dos dois ministros mais populares causou, mas que pode acontecer se as consequências da epidemia se tornarem ainda mais graves diante da inércia do governo. Por enquanto, a oposição, pela direita e pela esquerda, prefere apostar no desgaste ao invés de um embate final.  

5. Fujão. O depoimento de Sérgio Moro à Polícia Federal frustrou quem esperava que ele fosse como gasolina na fogueira do impeachment. Aparentemente, o ex-ministro estava mais preocupado em salvar a própria pele de qualquer acusação de cumplicidade e "não afirmou que o presidente teria cometido algum crime", apesar de manter os relatos de interferência no comando da Polícia Federal.

Malandro, Moro preferiu passar a batata quente para os ministros militares, citando-os como testemunhas das pressões. Ainda assim, é bem improvável que os militares traiam o próprio governo. A sobrevida da investigação, do desgaste de Bolsonaro  e da credibilidade de Moro depende agora do vídeo da citada reunião ministerial em que o então ministro da Justiça teria sido coagido publicamente.

O Planalto trabalha para impedir que a reunião seja tornada pública, porque além da repreensão a Moro, incluiria os desentendimentos entre Paulo Guedes e o ministro do desenvolvimento regional Rogério Marinho. Enquanto isso, zero pessoas foram surpreendidas com a primeira medida do novo diretor da PF: trocar o superintendente no Rio de Janeiro.

6. Abismo. As vítimas econômicas da covid-19 também se multiplicam exponencialmente. Segundo estimativa da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado, o número de beneficiários do auxílio emergencial para trabalhadores informais pode saltar dos atuais 50 milhões de pessoas para 112 milhões, mais da metade da população brasileira.

A redução da renda é maior nas faixas de consumo D e E, justamente as mais pobres, com renda per capita de até R$ 500, onde 51% dos integrantes desta faixa perderam metade ou mais de suas rendas, em um contingente de 58 milhões de pessoas. Entre elas, 24% declararam ter ficado sem renda nenhuma durante a pandemia, realidade que já afeta mais de 13 milhões de brasileiros.

Na prática, a epidemia acelerou a crise e a recessão econômica que já estavam presentes no país antes do novo coronavírus e está acentuando o abismo da desigualdade social. A pesquisa de desigualdade social do IBGE demonstra que os 10% mais ricos se apropriam sozinhos de 43% de toda renda do país, alcançando o maior patamar histórico desde que a pesquisa é realizada. Um indicativo desta acentuação é o número de pedidos do Bolsa Família, que cresceu 9,3% no total de famílias beneficiadas em abril em relação a março, superando 14 milhões de pessoas.

7. Sem paraquedas. Neste cenário em que a previsão mais otimista é de que o PIB brasileiro recue pelo menos 6,4%, um recuo superior a média de toda a América Latina, não se espere nenhuma salvação vinda da equipe econômica. Salvo da fritura das últimas semanas, Paulo Guedes permanece agarrado à bíblia neoliberal como o profeta do fim do mundo, tentando convencer a ala militar de que privatização total, parcial ou a venda de participações em 300 empresas movimentaria R$ 150 bilhões, cifras que ele parece tirar da cartola.

Mesmo com a pandemia, o programa de desestatização deve prosseguir, com a liquidação de pelo menos duas empresas neste ano, a Empresa Gestora de Ativos (Emgea) e a Agência Brasileira de Fundos Garantidores e Garantias (ABGF), e provavelmente da fabricante de chips Ceitec. Assim como Guedes, Campos Neto e o Banco Central também permanecem convictos em não mudar os rumos da política econômica.

Na prática, o anúncio de corte da taxa Selic nesta semana, mais uma vez atingindo o menor índice da história, deve ter pouco efeito prático na retomada da produção e do consumo, porque ninguém de bom senso nesta situação tomará dinheiro em banco, com as taxas finais muito superiores à taxa básica e sem um mercado consumidor demandando seus produtos, escreve Ivanir José Bortot.

Só quem sai ganhando é o governo federal, que terá um custo menor na rolagem da dívida, e o sistema financeiro, que continua cobrando spreads muito altos, pouco beneficiando o tomador de crédito. Na Folha, Vinícius Torres Freire, imagina que a Selic poderia chegar a zero nos próximos meses, o que permitiria ao BC comprar títulos do Tesouro a fim de achatar as taxas de juros de prazo mais longo, como autorizado pelo orçamento de guerra aprovado pelo Congresso

8. Ponto Final: nossas recomendações de leitura

“Temos filas na Caixa e corpos em valas comuns”. Médico infectologista e professor da UFRJ afirma que a falta de comprometimento com o combate à pandemia gerou uma dicotomia entre economia e saúde. “Não há resposta de Estado que priorize a vida”, resume.

"O Jair que há em nós": Bolsonaro dá voz ao que há de pior nos brasileiros. Bolsonaro e a pandemia passarão, mas teremos que aprender a lidar com um amplo setor da classe média que emergiu na eleição de 2018, avalia Ricardo Kotscho.

Ataques do presidente à imprensa passam de 'arroubos' a tática consciente. Na Folha, Rodrigo Guimarães Nunes escreve como a imprensa caça-cliques também ajuda a transformar os arroubos autoritários de Bolsonaro em tática permanente.

No Ministério da Justiça, Sergio Moro abriu as portas para o FBI. A Agência Pública revela como o FBI ampliou sua influência sobre a Polícia Federal e teve acesso a dados biométricos de brasileiros na gestão de Sérgio Moro e do ex-diretor da PF Maurício Valeixo.  

Produzir pragas, uma das essências do capitalismo. Agronegócio voraz, favelização das cidades e saúde fragilizada proliferaram novos vírus entre espécies são os temas de dois capítulos do livro “Contágio social”, disponível na íntegra para download gratuito.

A grande crise econômica está só no início. O economista que previu a crise de 2008 prevê, ponto por ponto, o que virá, se sociedades seguirem à mercê dos mercados: Explosão das dívidas, ruptura das cadeias produtivas e inflação. Artigo de Nouriel Roubini no Outras Palavras.

A Embraer voa para o nada. Qual o futuro da maior empresa de tecnologia do país com a desistência da compra pela Boeing? Artigo de Raul Zibechi no Outras Palavras.

Desmatamento da Amazônia: o que flagramos em áreas de preservação. Investigação conjunta da Repórter Brasil e do The Guardian percorreu duas florestas protegidas no Pará, encontrou desmatadores reincidentes e prevê a repetição das grandes queimadas de 2019.

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Edição: Leandro Melito