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Aldir Blanc vive, Bolsonaro não

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Enquanto o bolsonarismo aprisiona e adormece as paixões, a música de Blanc, como ele mesmo cantou ao tempo, liberta e desperta. Um representa a morte, outro a vida - Jonas Cruz/Arquivo
O poeta que cantou nossa abertura política foi embora justamente quando se fecham os horizontes

Batidas na porta da frente. É o tempo. Ele vem nos avisar, pela boca de Lima Duarte ao lembrar Flavio Migliaccio, que estamos novamente sentindo o cheiro putrefato da ditadura. É a morte que tem esse cheiro. Todos podem senti-lo, mesmo aqueles que, acometidos pela covid-19, perderam temporariamente o olfato ou os que defenderam o impeachment de Dilma Rousseff (PT), como o sinhozinho Malta. Se bobear, o odor já chegou até à Viúva Porcina.

Não é um cheiro somente dos corpos acumulados em casas em Manaus ou Belém, nem daqueles que aguardavam UTIs no Rio, onde a classe social e a raça, mais uma vez, determinam quem vai e quem fica. É o cheiro também da morte psíquica da nossa sociedade. O Brazil tá matando o Brasil.

Morremos um pouquinho mais a cada pronunciamento de Bolsonaro, com toda sua empáfia e ignorância política. A cada tentativa de “cala boca” à imprensa. A cada carreata de possantes importados que pretende forçar a população a sair da quarentena sem apresentar a mesma disposição para diminuir 10% de seus lucros em prol do coletivo – 10%? Foi um erro de digitação, eu quis dizer 1%. A cada fila quilométrica da Caixa Econômica Federal, onde o povo dorme em pé para conseguir o auxílio que lhe é de direito. A cada descida e subida na rampa do Planalto por usurpadores da camiseta da seleção brasileira, um patrimônio de todos nós. A cada nota de lamento que não se transforma em ação para impedir que a fascistização social se agrave. A cada estatística da falta de água e sabão nas comunidades. A cada foto de covas sendo abertas. Morremos um pouquinho mais psiquicamente com tanta gente que partiu num rabo de foguete.

Ficar sem Aldir Blanc justamente agora parece a síntese de mais uma tragédia brasileira: o poeta que cantou nossa abertura política foi embora justamente em um momento de fechamento de horizontes. Perdemos ele para a covid-19, aquele que o presidente autoritário, filhote da ditadura, colabora para espalhar. A ironia, em tempos de bolsonarismo, tem mau gosto.

O angustiante, o que tira o sono e a calma, é que a morte física que se avoluma, combinada à psíquica, nos dá a sensação de falta de horizonte. É aí que o bolsonarismo tenta triunfar. Ao apresentar-se como a única alternativa em um mundo distópico, nos tira a chance de vislumbrarmos saídas. Parece que tudo que há é o caminho do desassossego.

Escapar à finitude é um processo complexo: exige criatividade e inventividade, que, por sua vez, necessitam de condições materiais para que saiamos da urgência imediata da sobrevivência e consigamos criar mais. A arte sempre nos forneceu combustível para as utopias – e por isso parece tão perigosa aos olhos fascistas, que fazem livres associações ridículas como rock-aborto-satanismo. Enquanto o bolsonarismo aprisiona e adormece as paixões, a música de Blanc, como ele mesmo cantou ao tempo, liberta e desperta. Um representa a morte, outro a vida.

Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente, Aldir. Nossa esperança equilibrista tem que continuar.

Edição: Rodrigo Chagas