Historicamente vítimas de doenças trazidas pelo "homem branco", os povos indígenas fazem parte dos grupos mais vulneráveis à pandemia do novo coronavírus no Brasil. Sobretudo porque o Amazonas (AM), terceiro estado com maior quantidade de territórios indígenas demarcados, tornou-se um dos epicentros da doença no país. Sem medidas de contenção colocadas em prática pelos governos e com a falta de estrutura e de profissionais da saúde, o estado concentra 95% do total de indígenas com coronavírus no Brasil.
Desde que a doença chegou ao país, lideranças indígenas de diversas etnias vem denunciando a urgência por proteção em suas comunidades. Elas apontam que os territórios continuam sendo invadidos por madeireiros, garimpeiros e grileiros, indígenas continuam a ser mortos e que as comunidades não têm o direito ao isolamento social.
::Artigo | Nós, indígenas, reivindicamos o direito ao isolamento em tempos de pandemia::
No final do mês de abril, a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou a Instrução Normativa nº9/200, que passou a permitir invasão, exploração e até comercialização de terras indígenas não homologadas pelo presidente da República. Atualmente, o Brasil possui 237 territórios indígenas em processo de homologação.
Nesta semana, diversas lideranças indígenas assinaram uma carta conjunta, enviada à Organização Mundial da Saúde (OMS), em que pedem que seja criado um fundo de emergência para ajudar a proteger suas comunidades. No texto, argumentam que o governo não incluiu os territórios indígenas nos planos nacionais de combate ao coronavírus.
Diante desse cenário, a reportagem listou oito filmes lançados na última década que trazem, a partir de distintos olhares, uma grande diversidade de etnias, culturas, histórias, sonhos, rituais e encontros. Contra o genocídio e etnocídio intermitente, a arte apresentada em narrativas extremamente sensíveis converge para a urgência de compartilhar a luta indígena à toda sociedade brasileira.
::Maratona: oito filmes sobre questões trabalhistas para ver na quarentena::
Confira os títulos abaixo:
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos
[Brasil, 2019, 114 minutos]
A primeira cena mais parece alguma fotografia de Claudia Andujar, da série dos Yanomamis, que ela fez com filme infravermelho. Mas, nesse caso, é o protagonista Ihjãc, um jovem da etnia Krahô. Morador da aldeia Pedra Branca, no Tocantins (TO), o indígena se vê atormentado pela perda do pai e angustiado pela possibilidade de virar pajé.
Ihjãc é confrontado com a responsabilidade de preparar o ritual de passagem do seu pai, recém falecido, para libertar seu espírito e acabar com o luto que acomete a ele e a toda comunidade. Somado a isso, o jovem recebe o chamado das araras para virar pajé, o que o leva a fugir para a cidade.
O longa-metragem é resultado da convivência de vários anos da diretora brasileira Renée Nader Messora na aldeia, que posteriormente convidou o também diretor português João Salaviza para participar do filme. A partir do retalho de algumas histórias reais, surgiu essa sensível ficção que consegue dar vazão a imensa potencialidade ritualística desse povo.
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos ganhou, dentre outros, o prêmio especial do júri da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes.
O filme está disponível no Vimeo e Now.
Piripkura
[Brasil, 2017, 82 minutos]
Há mais de 30 anos, Packyî e Tamandua vivem isolados em uma extensão de 242,5 mil hectares no Mato Grosso (MT). Isso porque eles são os últimos indígenas sobreviventes da etnia Piripkura, dizimada por madeireiros da região nas últimas décadas. Além deles, apenas Rita, irmã de Packyî e tia de Tamandua, conseguiu escapar de uma emboscada que matou grande parte de seus parentes em 1985.
Desde então, Rita ajuda a Funai em expedições, que ocorrem de tempos em tempos, para conseguir encontrá-los e manter a Restrição de Uso de Área da Terra Indígena Piripkura. O órgão precisa provar que os dois últimos sobreviventes da etnia estão vivos para manter a proteção de suas terras contra a invasão dos madeireiros.
Os diretores Bruno Jorge, Mariana Oliva e Renata Terra realmente tiraram um bilhete premiado durante as filmagens realizadas em 2016, quando pela primeira vez a dupla apareceu espontaneamente na base da Funai em busca de fogo, que havia se apagado da tocha de babaçu que carregam. A última pista sobre eles havia aparecido em 2011.
Em 2018, com o filme já lançado, os indígenas foram encontrados novamente por funcionários da Funai. Desta vez, Tamandua não conseguia caminhar devido a um cisto no cérebro e foi obrigado a passar por uma cirurgia em São Paulo. Logo depois da operação, voltou à floresta. Atualmente, a estimativa é a de que exista 114 grupos isolados no Brasil.
O filme está disponível no YouTube.
Ex-Pajé
[Brasil, 2018, 81 minutos]
Ex-Pajé é uma obra-prima que navega entre o documentário e o docudrama. Do aclamado diretor Luiz Bolognesi, o filme mostra a saga de Perpera, um pajé que perdeu seu posto de liderança religiosa após a chegada de missionários cristãos estrangeiros. Apesar do distanciamento no estilo do cinema direto, o longa-metragem demarca sua posição logo no início ao citar uma frase do antropólogo francês Pierre Clasters: “O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas do seu modo de vida e pensamento”.
Após a aproximação de evangelizadores, os indígenas do território Paiter Suruí, localizado entre Mato Grosso (MT) e Rondônia (RO), abandonaram gradualmente os antigos rituais religiosos. Com isso, Perpera foi obrigado a abandonar seu papel de liderança e esconder suas crenças na comunidade. Por isso, não consegue dormir com a lâmpada apagada, “para evitar a maldição dos espíritos da floresta, que o castigam por ceder à igreja dos brancos".
Um retrato cruel de um tipo de colonização que ao invés de armas utiliza a bíblia como ferramenta de dominação. Desperta curiosidade a mescla entre cenas “reais” e encenações feitas a partir de histórias que Perpera já havia vivido. O documentário foi premiado nos festivais É Tudo Verdade e Berlinale.
O filme está disponível no Now.
Martírio
[Brasil, 2016, 161 minutos]
Martírio é o segundo documentário de uma trilogia que começou com o potente Corumbiara (2009) e que terminará com Adeus, capitão, ainda sem data prevista de lançamento. Mais do que isso, este filme é resultado de mais de três décadas de militância incessante do diretor franco-brasileiro Vincent Carelli, criador do projeto Vídeo nas Aldeias, que desde 1986 tem formado dezenas de jovens cineastas indígenas.
No longa-metragem, o indigenista resgata memórias que guarda desde 1988, quando começou a filmar o retorno dos indígenas da etnia Guarani Kaiowá a seus territórios originários no Mato Grosso do Sul (MS), até chegar aos dias atuais, marcados por uma extrema violência organizada pelo agronegócio. Além disso, o diretor deixa de lado uma estética de arte homogeneizadora imposta pelos grandes festivais e expõe de forma até didática as origens desse genocídio, que remonta à Guerra do Paraguai. Nem por isso deixou de ganhar diversos prêmios nacionais e internacionais, incluindo o prêmio do júri no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Fora as revoltantes imagens atuais, impressionam alguns registros históricos, como o desfile da primeira guarda indígena, durante a ditadura do general Emílio Médici. Na ocasião, os indígenas foram obrigados a apresentar técnicas de tortura aprendidas com a polícia militar, incluindo o pau de arara. Também desperta indignação a performance da bancada ruralista, especialmente de um evento denominado Leilão da Resistência, realizado em Dourados (MS), com a presença ilustre do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Documentário extremamente complexo para ser descrito em poucas linhas, mas essencial para entender o genocídio contra os povos indígenas, especificamente os da etnia Guarani Kaiowá, que remonta aos tempos do Império e se aperfeiçoa nas últimas décadas com os reis da soja e do gado.
O filme está disponível no Vimeo.
O Mestre e o Divino
[Brasil, 2013, 85 minutos]
O filme mostra a relação entre dois cineastas da cultura Xavante. Um deles é um missionário alemão salesiano, chamado Adalbert Heide, que se mudou para o Mato Grosso (MT), em 1957, com o objetivo de converter indígenas ao cristianismo. O outro é o indígena Divino Tserewahu, formado a partir das oficinas do Vídeo nas Aldeias e vencedor de diversos festivais nacionais e internacionais.
Essa sinopse acima, entretanto, não contempla as sutilezas que o diretor Tiago Campos Torres consegue captar dessa relação contraditória, colonizadora, mas ao mesmo tempo empática e permeada por trocas entre esses dois universos que, apesar de tão diferentes, se mesclaram ao longo das últimas décadas.
Fugindo de um julgamento sobre qualquer figura retratada, o documentário consegue captar a paixão pelo cinema, a partir de estéticas completamente distintas entre dois amigos que se encontram. Adalbert é adepto confesso do cinema western, limpo, maquiado, que prioriza as paisagens e imagens montadas. Por outro lado, Divino vem de uma formação do cinema direto, com uma câmera na mão, que prioriza a tradição oral do seu povo.
Obra muito sensível e tocante que consegue, com respeito muito grande por cada uma das personagens, abordar temas extremamente complexos como a catequização indígena, o choque intergeracional e a cultura em constante transformação. Apesar de ambos negarem ao longo de todo o filme, esse encontro resulta em um conflito cultural permanente entre O Mestre e o Divino.
O filme está disponível no Vimeo.
O abraço da serpente
[Colômbia, 2015, 125 minutos]
A narrativa do filme é baseada nos diários de viagem do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que percorreu a Amazônia durante vários anos até a sua morte de malária, em Boa Vista (RR). Transformados posteriormente no livro Roraima ao Orinoco, esses relatos também serviram de inspiração para Mário de Andrade na criação de Macunaíma.
Com uma bela fotografia em preto e branco, o diretor Ciro Guerra retrata o encontro desse cientista alemão com Karamakate, um indígena que vive isolado após fugir de um centro missionário religioso em que estava depois de ser capturado em sua aldeia quando criança.
Cerca de 40 anos mais tarde, Karamakate também guia o norte-americano Richard Evans Schultes (1915-2001) na sua busca por uma planta com propriedades especiais, descrita nas memórias deixadas por Koch-Grünberg. Esse hiato temporal dá um caráter épico ao filme, mas com a leveza de um road movie amazônico. Impossível não recordar de Fitzcarraldo, de Werner Herzog.
Primeiro filme colombiano indicado ao Oscar e vencedor do prêmio Quinzena dos Realizadores, em Cannes, O Abraço da Serpente traz uma crítica histórica, mas carrega especialmente elementos filosóficos e sensoriais sobre o encontro entre culturas tão diversas.
O filme está disponível no YouTube.
As hiper mulheres
[Brasil, 2011, 80 minutos]
Prevendo a morte iminente de sua esposa, um ancião da tribo Kuikuro, localizada no Alto Xingu (MT), pede ao seu sobrinho para organizar o Janurikumalu, maior ritual feminino da região. O objetivo é dar a oportunidade para que sua esposa possa cantar pela última vez.
As músicas são uma tradição oral que, aparentemente, está se perdendo. A única índia que sabe todas as canções está doente no início do filme, o que gera bastante dificuldade na preparação do ritual.
O teor das letras é bastante sexual e chama atenção pela força, união e proeminência das mulheres na comunidade. Em uma das cenas, elas vão atrás dos homens em busca de uma mescla entre sexo e zombaria.
Além de Carlos Fausto e Leonardo Sette, o filme também é dirigido por Takumã Kuikuro, integrante da comunidade. Produzido pelo Vídeo nas Aldeias, As hiper mulheres levou o Kikito no Festival de Gramado.
O filme está disponível no Videocamp e YouTube.
Taego Ãwa
[Brasil, 2016, 75 minutos]
Os cineastas Marcela Borela e Henrique Borela encontraram fitas VHS em um armário da Universidade Federal de Goiás (UFG), em 2003, com imagens inéditas da etnia Ãwa na década de 1970. Com elas, propuseram aos indígena uma volta ao passado partindo do resgate da memória de costumes e de um território que foram obrigados a abandonar.
A partir do patriarca Tutawa e de sua filha Kaukama, o filme retrata o exílio forçado dos Ãwa para a Ilha do Bananal, no Tocantins (TO), após o contato forçado da Funai e dos ataques de ruralistas da região em que viviam.
Mas o filme não se prende só ao passado e propõe a superação dessa história quando testemunha a colocação de uma placa no território pelo qual os indígenas estavam lutando. A demarcação saiu somente após a finalização do filme, em abril de 2016, e denominou o território de Taego Ãwa.
O filme está disponível no Now.
Fonte: Sindipetro Unificado-SP
Edição: Mariana Pitasse