Assistir aos vídeos de parteiras indígenas do Amazonas sobre o tratamento dado para as mulheres e crianças antes, durante e no pós-parto mostra o quanto a cultura não indígena tem que aprender com essas mulheres. Um projeto da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – financiado pelo CNPq – registrou os cuidados alimentares dessas mulheres, que ajudam não apenas no parto, mas também cuidam das mães após o nascimento da criança.
Assado de curimatã, caribé de beiju, quiampira misturado com tucupi, mingau de abacaxi são algumas dessas receitas milenares, que foram registradas em vídeo. Em novembro de 2019, uma equipe da Fiocruz, coordenada pela pesquisadora em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública, Angélica Baptista Silva, ministrou oficinas nos municípios de São Gabriel da Cachoeira e de Tabatinga, na região de fronteira entre Brasil e Colômbia. O foco eram as parteiras, que têm nessas receitas grandes aliadas para combater a insegurança alimentar de mães e bebês.
O projeto nasceu de uma constatação da pesquisadora sobre a desnutrição e mortalidade entre mães e bebês indígenas e também da entrada de alimentos ultraprocessados nas aldeias, como, por exemplo, papinha industrializadas. Segundo Baptista, esse alimento, cuja deficiência nutricional já foi constatada, está ocasionando não apenas a desnutrição, mas, em outra ponta, obesidade entre os indígenas.
O projeto só foi possível devido a uma chamada do CNPq para propostas que propusessem iniciativas entre o Brasil e a Colômbia. O apoio seria, então, para ações de soberania e segurança alimentar e nutricional para os países da União das Nações Sul Americanas (UNASUL). As duas cidades do Amazonas escolhidas, foram também escolhidas, porque fazem fronteira com a Colômbia, sendo uma delas tríplice fronteira.
Por trabalhar com telesaúde, ou seja, o atendimento em saúde à distância, com o auxílio das tecnologias, a pesquisadora escolheu duas cidades polo do Amazonas, onde o projeto foi desenvolvido. Ela relata que as dificuldades foram imensas, desde o corte de verbas no início do projeto até uma doação que ela fez, por conta própria, para arrecadar celulares usados que foram entregues às indígenas para as gravações, porque não havia recursos para comprá-los.
Em entrevista ao Programa Bem Viver, a pesquisadora que destacou a importância das parteiras e a preocupação de como a cultura não indígena tem prejudicado esses povos, seja com a entrada de alimentos ultraprocessados ou degradações vivenciadas nas terras indígenas.
Brasil de Fato: Qual foi o fator ligado à saúde indígena que motivou o início do projeto?
Angélica Baptista Silva: Essa ideia surgiu da averiguação da necessidade dos indígenas de trabalhar a questão do aleitamento materno. O senso comum acha que culturalmente os indígenas já têm o aleitamento materno exclusivo e de longa duração introjetados em suas respectivas culturas originárias, mas as nutricionistas que trabalhavam comigo trouxeram dos congressos científicos, onde elas expuseram sobre aleitamento, informações que diziam que os alimentos ultraprocessados estavam entrando no território indígena de áreas isoladas. E aí surgiu a ideia de trabalhar isso.
Eu sou especialista em telesaúde, e o Amazonas, que é o estado que tem mais indígenas no Brasil, tem, inclusive, populações isoladas. É o estado onde todos os municípios estão conectados com pontos de telesaúde, e esses pontos são muito importantes para a educação do profissional de saúde, para teleconsultoria, segunda opinião. Então, assim, são polos, que a gente poderia utilizar para atuar com os profissionais de saúde que trabalham com os indígenas essas questões dos alimentos ultraprocessados, reforçar as amamentação exclusiva até os seis meses, que é o recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Uma das nutricionistas que trabalhava comigo à época trouxe de um congresso de nutrição informações de um vídeo que passaram de um pessoal que estava levando papinha industrializada nos barcos pela região e distribuindo os potinhos. Aquela estratégia do traficante: o primeiro é de graça, e depois você cobra.
Então, essa interferência da cultura não indígena está prejudicando a saúde desses povos?
A influência para a ocidentalização, no pior sentido do termo. É um alimento já processado, que a gente já sabe cientificamente que não tem um valor nutricional da amamentação exclusiva até os seis meses. Diante dessa investida do mercado nos indígenas isolados e vulneráveis, inclusive, porque muitos não falam português, a gente decidiu criar uma estratégia para trabalhar a amamentação e alimentação das crianças de 0 a 1 ano. Aliado a isso, a literatura e o Inquérito Nacional de Saúde [e Nutrição] dos povos indígenas revelam uma desnutrição muito grande entre bebês, entre a população de 0 a 5 anos. O que esse inquérito revela uma é que a desnutrição da população de crianças indígenas de 0 a 5 anos é imensa; e a segunda coisa é o aumento de natalidade.
Você considera que a ocidentalização é o início de todo esse problema ou ela é um agravante dessas denúncias que você acabou constatando no projeto?
Levar alimentação ultraprocessada, levar os potinhos Nestlé para crianças que ainda estão em amamentação exclusiva é levar o pior do ocidente para uma cultura que tem como premissa amamentar essa criança até mais do que seis meses. Eu ouvi depoimentos delas de que as parteiras ficam um período de uma semana [nas casas] para a mãe se recuperar, fazendo os trabalhos da casa delas. Então, é um cuidado com a mulher que realmente não se tem no Brasil. A recuperação é difícil, a gente precisa de apoio, o momento do parto é uma coisa traumática, que mata. O que chamou a atenção também é que se amplifica na saúde indígena uma questão que tem no Brasil inteiro, que é a indefinição e a subnotificação de óbito materno. As comissões de vigilância tem muito mais ênfase no óbito infantil do que no óbito materno. Alimentação local originária precisa se tornar política pública, como já virou em algumas escolas no estado do Amazonas, como merenda, existe uma lei dizendo isso. As parteiras precisam ser reconhecidas e seu saber incorporado nas unidades de saúde. Em alguns lugares na América Latina o saber fitoterápico do Pajé, do Xamã. A hortinha dentro da unidade de saúde, o pajé tomando conta, isso é comum no Equador.
E como chegou ao momento de registrar as receitas?
No projeto, estava estipulado que a gente ia fazer uma oficina final presencial para avaliar todo esse projeto, por causa, da participação pontual das parteiras e porque a gente estava querendo desde o começo. A gente mudou essa oficina de avaliação e deu outra cara, que seria chamar justamente as parteiras das duas cidades, isso com o aval dos profissionais de saúde, tanto da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), quanto das unidades de saúde primária das cidades, chamar as parteiras indígenas do interior para as cidades para elas falarem quais eram as práticas para aconselhar as gestantes, como tratavam dela durante a recuperação do parto e como elas viam o aleitamento. A gente redirecionou a verba que a gente tinha para o encontro. Ao invés de fazer encontro de especialista, optamos por trazer as parteiras para que elas passassem dois dias com a gente. Foi sensacional. Acho que os vídeos mostram isso.
Teve alguma curiosidade com relação a esse processo do registro das receitas?
Nessa oficina a gente ensinou as parteiras a filmarem. Um técnico e cinegrafista especialista em dar essas oficinas para indígena foi comigo. Tudo começou com a gente apresentando o projeto para elas, elas falando como faziam as receitas. Tudo discutido em uma grande roda de conversa.
O Pauliran sentou com as parteira em São Gabriel da Cachoeira e havia um parteiro homem entre elas, o seu Adalberto. Ele trabalha com a esposa, porque entre esses povos do Alto Rio Negro todo cuidado clínico vem com a religiosidade também. Então, tudo é benzido, o Pajé é muito presente na escolha da alimentação. Então, ele auxiliava no parto com a mulher e ele era benzedeiro. Como a mulher dele adoeceu, ele foi no lugar dela. E foi excelente, porque tivemos a visão do homem nessa coisa tão particular da mulher.
Como foi no dia de gravação das receitas?
No dia da oficina, nós fomos à feira local. No caminho fomos conversando sobre agroecologia. Você imagina a festa. Mas tinham parteiras que tinham a sua roça. O que a gente pode perceber é que nas receitas que elas fazem praticamente se desconhece açúcar, também não há sal. Elas têm substitutos para o sal. A pesquisa posterior, que foi com a nutricionista, mostra que há alimentos não catalogados ainda nas tabelas de composição de alimentos brasileiros, como, por exemplo, o algodão roxo. Tem o chá de algodão roxo, que é direcionado para mulheres se recuperarem do parto. A maioria das etnias que participou no Alto Rio Negro foram as Barés, e no Rio Solimões, em Tabatinga, foram as Tykunas, principalmente.
Elas fizeram as receitas delas, e a preocupação, nos dois lugares, era com a mulher se recuperando do parto. O que fez acender uma luz em mim, como pesquisadora. A maioria das receitas que elas escolheram foi direcionada às mulheres em recuperação do parto, mas teve também quem escolheu introdução de alimentos sólidos.
Como a senhora classifica a figura da parteira dentro desse projeto?
Ela é uma liderança, porque ela é a pessoa que cuida das mulheres na localidade. Então, ela extrapola o papel da assistência médica. E as equipes multidisciplinares de saúde indígena, que fazem o acompanhamento pré-natal nas aldeias, precisam do aval delas. Pelo que eu ouvi elas fazem uma parceria para poder chegar às gestantes, porque se essa liderança feminina, que é quem faz o parto inicial disse: "Isso aqui não está bom". Elas não vão. Infelizmente, eu ouvi relatos de violência obstétrica muito forte nos hospitais por lá, e vou te dizer como pessoa, mãe e mulher: se eu morasse lá, eu ia querer ter meu filho na aldeia. Eu só iria para último caso para uma unidade hospitalar. Isso precisa ser estudado, e o saber delas precisa ser incorporado.
Estamos fazendo o nosso papel como pesquisadores, tentando munir os gestores de evidências para que se reduzam as iniquidades do Brasil, mais especificamente com essa população. E a gente tem um recorte de gênero, foi um recorte muito delicado, acho que não é todo mundo que entende essa delicadeza e essa força, que é uma força do universo feminino. Não se falou, por exemplo, da violência que elas vivem, que é a violência do garimpo, mas se falou muito da água contaminada de mercúrio, que a gente sabe que nas terras Yanomamis está acontecendo muito.
Há uma desvalorização dos saberes populares?
A gente está em época de pandemia, e eu acho que é uma época em que o mundo parou para repensar suas prioridades. Espero que quando acabar essa pandemia as pessoas pensem um pouco mais na resposta da natureza, porque essas mulheres com quem eu estive são rainhas. Elas estão integradas com essas respostas da natureza. Eu acho que a medicina, a ciência precisa estudar o que elas falam, e vai aprender muito.
Detectamos alguns alimentos que não estão na tabela de composição alimentar ou foram estudados a fundo. Eu vi uma penetração de pesquisadores estrangeiros muito grande nas duas áreas. Eu acho que a comunidade de pesquisadores brasileiros ignora a riqueza do bioma Amazônico e o que ele traz para a humanidade. Era preciso um maior investimento no estudo do bioma amazônico e na cultura alimentar e nutricional amazônica.
Edição: Geisa Marques