O estado do Rio de Janeiro respira aliviado depois da última quarta-feira (29), dia no qual estava previsto o julgamento da validade da Lei nº 12.734/2012, suspensa em 2013 pela então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia. Isso porque a “Lei dos Royalties” pode causar, caso seja aprovada, um prejuízo de R$ 56 bilhões ao estado e municípios do Rio de Janeiro entre 2020 e 2023, de acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP).
Adiada por tempo indeterminado depois de pedidos dos governadores do Espírito Santo e Rio de Janeiro, a sessão julgaria cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que questionam a “Lei dos Royalties”. Na prática, essa lei, aprovada em 2012 pelo Congresso Nacional, propõe uma distribuição mais igualitária dos royalties do petróleo entre estados e municípios brasileiros.
Para o economista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Bruno Sobral, entretanto, ela fere a racionalidade e os princípios dos próprios royalties. “Para mim, essa é uma tentativa de tratar um assunto que tem uma razão e um embasamento técnico, como uma política distributiva geral. Por isso, a tentativa de mudança da lei é bastante questionável, porque os royalties são uma forma de compensação. Não é um tributo, que você pode discutir em termos de uma partilha federativa”, explica.
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De acordo com o relatório final da CPI da Crise Fiscal, publicado do ano passado, a aprovação da lei causaria uma diminuição de 40% nas receitas de royalties do estado do Rio de Janeiro e de até 80% nas receitas dos municípios fluminenses. “Ela pode ser a última estaca no caixão das finanças do Rio. O que poderia gerar impactos sociais incalculáveis, ainda mais no contexto atual do coronavírus”, afirma.
Confira abaixo a entrevista completa:
É possível fazer uma projeção das perdas na arrecadação de royalties para este ano, levando em consideração o anúncio da diminuição da produção pela Petrobras, diminuição do preço do barril e a atual taxa de câmbio?
Eu não tenho dados sobre o impacto geral do Brasil, então eu vou me limitar a enfatizar a questão aqui do Rio de Janeiro. E, talvez, essa seja uma forma aproximada de lidar com o cenário do Brasil, dado que a maior parte da exploração e dos impactos está no Rio de Janeiro mesmo.
A projeção dos impactos com a queda no preço do barril, que é do próprio governo do estado do Rio de Janeiro, está girando na casa de 30%. Isso vai dar algo em torno de R$ 4 bilhões. É importante ressaltar que esse dado pode estar subestimado e essa perda pode ser ainda maior, porque isso foi considerando um preço de barril e ele é variável numa volatilidade constante.
O Rio de Janeiro possui um fundo especial de royalties e participações especiais da exploração de petróleo? Eles poderiam ser direcionados para a prevenção e tratamento da covid-19, por exemplo?
O caso do Rio de Janeiro é muito particular. Houve uma decisão de direcionar os recursos estaduais dos royalties para o Fundo Único de Previdência Social. Por isso, o Rio de Janeiro não possui um fundo especial. Apenas alguns municípios criaram o fundo, recentemente, por terem uma maior folga fiscal para isso. No caso estadual não há esse espaço, ainda mais no regime de recuperação fiscal, que já impõe um limite de se buscar fazer poupança para pagar dívida futura. No caso do estado do Rio o que se fez e continua valendo é a aplicação dos royalties para capitalizar esse fundo previdenciário, ou seja, eles são incorporados ao seu próprio patrimônio.
O STF adiou o julgamento que aconteceria nesta quarta-feira (29) sobre a redistribuição dos royalties. Do que se trata essa proposta e como pode impactar União, estados e municípios?
Essa tentativa de mudança da lei trata exatamente disso, ou seja, de uma redistribuição dos royalties. Para mim, essa é uma tentativa de tratar um assunto que tem uma razão e um embasamento técnico como uma política distributiva geral. Por isso, essa tentativa de mudança da lei é bastante questionável porque os royalties são uma forma de compensação. Ele não é um tributo, que você pode discutir em termos de uma partilha federativa. Ele não é um fundo federativo também, que você pode colocar regras de solidariedade federativa, para estados e municípios em piores condições receberem mais, como é o fundo de participação estadual, como é o fundo de participação municipal. Não é esse o propósito dos royalties. Por isso, a gente não pode descaracterizar o propósito. Caso contrário, você não está seguindo o próprio acordo federativo que estabelece que um recurso que está no território de um estado deve beneficiar as finanças desse estado e dos seus respectivos municípios.
Quais foram as justificativas para a aprovação da Lei nº 12.734, em 2012?
Essa lei foi aprovada lá no início dessa década, quando existia uma noção de que o Brasil estava passando por um momento de possível recuperação do cenário de crise, iniciada em 2008, e de descoberta do pré-sal. Naquele momento, a gente tinha um grande bilhete premiado, com inúmeras possibilidades de recursos. Como essa descoberta aumentaria exponencialmente a produção de petróleo, logo se investiria em maiores ganhos de royalties e participações especiais.
Aí, evidentemente, abriu os olhos dos outros estados da federação, que são a maioria. E aí a discussão perdeu a sua racionalidade técnica.
A partir desse momento, passou a ser uma discussão de “se vai crescer colossalmente os royalties e participações especiais esperados, vamos tentar influenciar nesse processo”. Sem nenhuma racionalidade técnica. O que eu grifo como uma racionalidade técnica? Que os royalties são uma compensação às regiões produtoras, ponto. É isso que está lá. Qualquer argumento do ponto de vista redistributivo que você queira colocar é necessário criar uma outra coisa. Caso contrário, você está alterando o próprio princípio que justifica isso.
Qual foi a justificativa do STF para acatar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.917, proposta pelo então governador Sérgio Cabral (MDB), que suspendeu a “Lei dos Royalties”?
Essa interpretação que eu citei anteriormente foi a mesma da Carmen Lúcia, naquele momento, quando ela resolveu segurar essa lei, para ela não ser posta propriamente em execução. Os dispositivos de inconstitucionalidade, que ainda serão julgados, afetariam os estados produtores. Em particular, gostaria de grifar que tem ali alguns princípios sendo postos, com justiça a meu ver, para argumentação do questionamento.
O primeiro é o próprio direito adquirido, que vai exigir mudanças nos contratos em vigor. Lembrando que a lei, como foi aprovada no Congresso, inclusive derrubando alguns vetos presidenciais na época da Dilma, passou a querer que você alterasse a distribuição, inclusive, dos contratos hoje em vigor. O que significaria que não apenas o Rio de Janeiro, para usar como exemplo, passaria a ganhar menos proporcionalmente em contratos futuros. Hoje, você recolheria as transferências de royalties para o Rio de Janeiro. Então, com isso, você está ferindo o direito adquirido. Como que o Rio de Janeiro tem direito firmado nesses contratos e você agora vai quebrar isso? Essa tese do direito adquirido foi a mais bem assumida pela própria Carmen Lúcia.
Mas também tem outras teses que são sensíveis ao estado do Rio de Janeiro, que está com esse problema fiscal danado. Uma delas é a de que você tem não só contratos no presente, mas contratos que são baseados em recebimento futuro.
E aí eu coloco o exemplo da securitização de rendas do petróleo que o Rio de Janeiro fez em mercados internacionais, para buscar com isso uma forma de financiamento numa tentativa de abrandar os efeitos da sua crise financeira. Ele fez vários contratos dessa natureza. Então, ele já empenhou receitas que vai receber daqui alguns anos. Se você altera isso, vai mexer e quebrar todos esses contratos. E levando, então, a um impacto real nas finanças atuais do Rio de Janeiro. Por isso, o que está sendo proposto não mexe apenas no direito adquirido, como também em atos jurídicos perfeitos, em contratos já em vigência, mas que estão sobre previsão de empenho de receitas futuras.
E o terceiro e um grande argumento é sobre a própria questão da segurança jurídica e, associado a isso, da responsabilidade fiscal. Sem exagero de retórica, isso levaria o Rio de Janeiro a quebrar. A principal consequência de uma decisão dessa é agravar um desequilíbrio orçamentário do Rio de Janeiro, que já exigiu que a ele fosse imposto um regime de recuperação fiscal. Como colocar diante desses fatos notórios, que já impõe ao Rio de Janeiro uma dificuldade seríssima de se recuperar, uma retirada de receitas? Isso vai de encontro, inclusive, ao princípio da responsabilidade fiscal.
Segundo o relatório final da CPI da Crise Fiscal, do ano passado, se essa lei passar levaria a uma queda de 40% nas receitas de royalties do estado do Rio de Janeiro e até 80% das receitas dos municípios fluminenses. Então é uma brincadeira muito séria, muito arriscada, muito pesada.
É necessário ter uma responsabilidade, inclusive, com o pacto federativo. Antes você tinha um otimismo com o cenário futuro, imaginava que o Rio de Janeiro estaria nadando nas receitas provenientes dos royalties. Agora, essa lei pode ser a última estaca no caixão das finanças do Rio de Janeiro. O que poderia gerar impactos sociais incalculáveis, ainda mais no contexto atual do coronavírus.
Existem exemplos opostos de gestão e aplicação dos royalties. De um lado é possível citar Macaé (RJ) e Campos dos Goytacazes (RJ), que não criaram um fundo com verba bilionária recebida nos últimos anos; no outro extremo, um exemplo que está sendo elogiado é Niterói (RJ), que mantém um fundo especial e tem investido na saúde e seguridade social nesse período de coronavírus. Qual a forma mais equilibrada de gerir e investir os recursos provenientes do petróleo?
Eu colocaria uma outra camada de indagação. No estado, você já vinculou os recursos dos royalties à previdência. Já os municípios estão fazendo o que bem entendem com esses recursos, claro que respeitando algumas restrições. Na minha opinião, um grande avanço que a gente poderia ter na matéria nessa discussão do melhor uso é a criação de um fundo regional. Um fundo regional dentro do próprio estado do Rio de Janeiro, por exemplo. Que esses recursos sejam pensados regionalmente. Existem experiências nesse sentido, mas que dependem muito da iniciativa do gestor. Então, se tiver um gestor que não é sensível à matéria, você diminui esse espaço de uma aplicação mais participativa e integrada à região. Desenvolvimento tem que ser pensado regionalmente em termos desses recursos dos royalties. Inclusive, foram estados superavitários que fizeram esses fundos.
Niterói e Maricá empenharam recursos desses fundos para levantar um equipamento hospitalar em São Gonçalo.
Um município vizinho que, evidentemente, não tem folga fiscal, mas que nesse contexto de coronavírus é o mais populoso do leste da Baía de Guanabara. Como eles sabem que o impacto da doença vai rebater, inclusive, em Niterói, eles tiveram a iniciativa de direcionar recursos para levantar um equipamento hospitalar em São Gonçalo. Essa é uma boa experiência, mas a partir dela é necessário pensar em como amarrar isso institucionalmente. Para que essas experiências não sejam pontuais, mas que aconteçam a partir de um planejamento das regiões. Esse talvez seria o grande avanço a se fazer na matéria dos royalties. Lá atrás isso foi pensado em ser discutido no norte fluminense.
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Existem experiências que Niterói e Maricá estão conduzindo que são muito interessantes, como a renda básica. No caso de Niterói, especificamente, a elaboração de um planejamento estratégico respaldado por estudos. Numa relação muito fina, de valorização inclusive, de suas áreas de conhecimento. Niterói está valorizando, em particular, a Universidade Federal Fluminense.
Mas é muito importante entender que algumas regiões ou municípios têm espaço fiscal para isso. É bacana buscar alternativas quando há esse espaço fiscal.
Já em outras regiões não há esse espaço fiscal, como é o caso do estado do Rio de Janeiro. E aí você tem que repensar esses mecanismos. Seria uma irresponsabilidade condenar uma unidade federativa ao caos social, como será com o Rio de Janeiro com uma possível aprovação dessa lei.
Fonte: Sindipetro Unificado-SP
Edição: Mariana Pitasse