O perfil da pandemia causada pelo novo coronavírus está mudando em Porto Alegre. Desde o dia 8 de abril, há mais casos sendo detectados na rede pública de saúde do que em hospitais, clínicas e laboratórios privados, invertendo uma lógica que vinha sendo observada até então. Tudo está registrado em boletins epidemiológicos da Secretaria Municipal de Saúde.
Desde que a capital registrou a primeira notificação, em 8 de março, até 23 de abril, foram 421 casos: 174 detectados na rede privada, 166 na rede pública e 81 em hospitais que atendem tanto pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) como os de convênios.
Contudo, entre 8 e 23 de abril, o cenário mudou: 60 novos casos foram notificados pela rede pública de saúde, 44 pela privada e 27 em locais que atendem aos dois sistemas. É um indicativo de que a doença em Porto Alegre pode estar começando a aparecer com maior evidência entre os mais pobres – um componente que acrescenta dificuldades na prevenção e no controle, uma vez que as periferias têm piores condições sanitárias e econômicas para lutar contra o novo coronavírus.
Os relatos de quem trabalha em unidades de saúde indica que o número de pacientes com sintomas compatíveis com a covid-19 não para de aumentar. No posto de saúde do Morro da Cruz, por exemplo, já em março, cerca de 30 pessoas eram atendidas diariamente com sintomas como febre alta, tosse seca e falta de ar. É a maior crise sanitária em um século, desde a gripe espanhola, e os postos de saúde da Capital estão mal equipados. Não há testes para todos os pacientes, contrariando as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que indica testagem em massa para ter um retrato mais acurado da pandemia. Situação diferente se observa na rede privada, onde o exame para covid-19 entrou no rol de procedimentos obrigatórios dos planos de saúde. Além disso, há ainda a opção de pagar até R$ 400 em laboratórios particulares.
“O teste [do sistema público] é só para aqueles com quadros graves e para profissionais de saúde com síndrome gripal que inclua febre alta, tosse e falta de ar ou demais sintomas respiratórios”, diz João Henrique Kolling, presidente da Associação Gaúcha de Medicina de Família e Comunidade (AGMFC).
Consciente de que há muitos casos de doentes não notificados oficialmente por falta de exames, a prefeitura de Porto Alegre incluiu, em seus boletins epidemiológicos diários, o levantamento de atendimentos a pacientes acometidos por síndrome gripal e problemas respiratórios. Nas unidades de atenção primária e pronto atendimento, o volume triplicou de 3.740 pessoas em fevereiro para 11.886 em março.
Além da ausência de testes, faltam equipamentos de proteção individual (EPIs) para médicos, enfermeiros e agentes de saúde – o que também contraria os conselhos internacionais. “Aqui, no Brasil, a recomendação é que os equipamentos de proteção individual sejam usados apenas para atender pacientes sintomáticos”, diz Kolling. O problema dessa estratégia é que cerca de 80% dos infectados por Covid-19 são assintomáticos ou apresentam sintomas leves. São eles que podem espalhar a doença silenciosamente e atingir os mais vulneráveis. “Isso tem gerado bastante ansiedade nos profissionais de saúde”, diz o médico, que precisou ser afastado por causa dos sintomas, mas não foi testado.
Até o fechamento da reportagem, a Secretaria de Saúde de Porto Alegre não disse quantos profissionais de saúde foram testados para Covid-19 ou quantos deles testaram positivo. Também não deu detalhes sobre o protocolo de testagem desses trabalhadores.
Pobres concentram mais fatores de risco
A situação das periferias se torna ainda mais dramática por causa da condição sanitária dos seus moradores. A falta de espaço físico para manter o isolamento permite que o vírus se dissemine rapidamente em uma mesma casa – situação que só não é mais dramática porque há profissionais que se antecipam ao diagnóstico.
“Tivemos um caso de uma família inteira com sintomas que mandamos para a quarentena. A mãe e duas crianças apresentaram sintomas e tiveram contato com gente que veio da Itália. No início de abril, soubemos que os testes deram positivo para o novo coronavírus”, disse uma agente de saúde que pediu para não ser identificada.
A condição confirma os achados publicados em abril em um artigo de três pesquisadoras brasileiras que estudam em Harvard, na Universidade de São Paulo e no Bard College, em Nova York. “Para além de estarem mais sujeitos à contaminação, os mais pobres estão desenvolvendo quadros mais graves da doença”, alertam as duas economistas e a médica que assinam o estudo. Elas cruzaram dados populacionais da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 com os fatores de risco para o novo coronavírus (ter mais de 60 anos, diabetes, hipertensão arterial, asma, doença pulmonar, doença cardíaca ou insuficiência renal crônica) e descobriram que 54% da população com menor escolaridade apresenta um ou mais fatores de risco. Já para os que frequentaram o ensino médio, essa proporção é de 28%.
Isso é atestado pelos informes da Secretaria Estadual de Saúde, que apontam uma queda na escolaridade dos hospitalizados com Covid-19: no começo de março, 40% tinham ensino superior; já na primeira semana de abril, eram apenas 10%. Estatísticas internacionais também apontam para uma relação entre desigualdade racial e contágio por Covid-19. Nos Estados Unidos, onde apenas 14% da população é negra, os afro-americanos somam 30% do total de infectados, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). No Rio Grande do Sul, os autodeclarados pardos e pretos somam cerca de 20% da população, mas aqui não há dados precisos sobre a cor de pele dos infectados.
Na mira da doença, as pessoas pobres e negras são as mais vulneráveis. Não que o coronavírus escolha alvos pela renda ou pela cor, mas porque os fatores sanitários e socioculturais os colocam em risco. É o caso da ex-catadora de recicláveis Rosemeri Morais de Aguirre, 49 anos. Rose, como é conhecida no Morro da Cruz, zona leste da Capital, divide um barraco de madeira com o marido, a filha mais velha e seus dois caçulas de oito e 11 anos.
O acesso à residência é por uma viela de chão batido. Nas imediações, costuma ter sacos de lixo amontoados e água fétida que corre por canos quebrados. As outras filhas moram sozinhas ou com familiares, um de seus filhos menores está detido na Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) – apenas cerca de 20% dos jovens foram mandados para casa em razão da crise sanitária – e o de 22 anos Rose não vê há um mês. Segundo ela, “a droga tomou conta” do filho, que vive na rua em meio à pandemia de Covid-19.
“Fico preocupada. Ele está numa situação bem ruim, não tem higiene, não tem nada”. A preocupação não é à toa: a prefeitura mantém lacradas torneiras de praças públicas e dificulta a higiene básica da população de rua. Só na segunda-feira, dia 20, a moradora do Morro da Cruz conseguiu o auxílio emergencial de R$ 1.200 do governo federal, depois de enfrentar uma fila presencial com quatro horas e meia de espera – junto com outras dezenas de moradores que se expuseram ao risco para obter a ajuda financeira. “Foi um sacrifício”, desabafa Rose.
Correntes solidárias
Onde os governos se mostram pouco eficazes para atender a população, diversas ações de voluntários têm ajudado a colocar comida no prato das pessoas mais pobres. De acordo com um levantamento do Repórter Popular, que participou de diversas campanhas de doações, pelo menos duas toneladas de alimentos foram doadas em todo o Estado na semana de 26 de março a 2 de abril.
Uma das maiores iniciativas é conduzida por 30 estudantes e 60 professores e pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Além da doação de comida e materiais de limpeza, a rede faz a produção de álcool gel e sabão para distribuir nas comunidades. Também são feitos vídeos didáticos com orientações de prevenção. Segundo os organizadores, o projeto atinge quase 300 mil pessoas.
No Morro Santana, uma vaquinha online já arrecadou quase R$ 22 mil para comprar cestas básicas e produtos de higiene. Como são em torno de 230 doadores, a média doada por pessoa é de aproximadamente R$ 100.
Outra campanha feita por voluntários particulares tem comprado mais de 3 mil cestas básicas em Porto Alegre. Na maioria dos casos, a articulação é feita a distância, diretamente com os mercados locais e os líderes comunitários. “Eu resolvi, usando minha rede de amizades, fazer uma ação. O mecanismo é muito simples: a pessoa doa diretamente para o mercadinho de cada região, e nós negociamos as cestas”, conta o oncologista Gilberto Schwartsmann, coordenador das doações.
Em conjunto, o Coletivo Autônomo Morro da Cruz e a startup Moeda do Bem criaram uma plataforma para arrecadar e direcionar doações de cestas básicas, medicamentos, kits de higiene pessoal e produtos de limpeza. Já foram arrecadados mais de R$ 96 mil, com 4 mil pessoas beneficiadas e 16 toneladas de alimentos doados, segundo o site da campanha. Para ter acesso às doações, os moradores se cadastram em uma lista com vagas limitadas. Conforme os dados colhidos pela plataforma, mais de 80% dos beneficiados têm crianças em casa e 25% têm idosos. Muitos são autônomos, fazem bicos ou recebem assistência de programas sociais.
Comida mais cara
Ao mesmo tempo em que chegam mais doações, o aumento da demanda por itens básicos fez com que os estabelecimentos de bairro elevassem os preços. Segundo a tesoureira responsável pelas compras do projeto, Paula Madeira, as primeiras 100 cestas foram compradas em um mercado local no valor de R$ 74,30 cada uma. “Na segunda compra, o valor da cesta subiu para R$ 94”, aponta. O projeto optou por outro mercado que deixou o valor de cada cesta em R$ 76 – mas só porque havia desconto de 15% no valor total. Agora o preço da cesta está em R$ 80. Entre os itens que deixaram a conta mais cara, estão o feijão e o leite, cada um com um aumento de mais de 20% em relação à quinzena anterior.
As mesmas reclamações de preços abusivos apareceram em outros depoimentos: “Meu marido foi comprar um paracetamol e pagou quase R$ 5, sendo que antes era R$ 1,50. A bandeja de ovo também, antes era R$ 10 e agora está R$ 20”, diz Rose.
A rotina que não para com a pandemia
A funcionária pública Izis Abreu, que tem ajudado com a distribuição de doações para as comunidades, comenta o espanto diante da normalidade da rotina nas periferias. “Me chamou a atenção que, nos bairros que fui, não há uma grande preocupação das pessoas em manter distância, em evitar aglomerações”, relata.
A mesma observação foi feita pela cuidadora de idosos Esther Fagundes, 21 anos, moradora da Lomba do Pinheiro: “Nesses últimos dias, notei que tem aumentado a circulação de pessoas nas ruas”. Fagundes é uma das várias moradoras da Lomba que precisa sair de casa para trabalhar. No lar de acolhimento onde atende, os familiares diminuíram as visitas, trocadas por telefonemas. Os funcionários também estão atentos às medidas de prevenção. Mas há um porém: seu local de trabalho fica no Itú Sabará, zona norte, quase do outro lado da cidade. É um trajeto de uma hora e meia de ônibus, com passageiros sentados a poucos centímetros de distância um do outro. As chances de contágio crescem a cada viagem, conforme avançam também as estatísticas da pandemia. “Ainda não é o número normal de pessoas circulando, mas é alarmante”, diz, preocupada.
No dia 6 de abril, a EPTC divulgou um vídeo do alto fluxo de carros e pedestres na Lomba do Pinheiro. Como era semana de pagamento, havia uma longa fila na frente do banco.
Por enquanto, a jovem só sabe de um caso de coronavírus na região. “Fiquei sabendo de suspeita de Covid-19 perto da minha casa, uma mulher autônoma em isolamento domiciliar. Mandou os filhos para a casa de parentes, recebeu apoio e doações da comunidade”, contou. Em meio a relatos de conhecidos, nem a jovem, nem seus vizinhos — e nem mesmo as autoridades — sabem ao certo quantos estão infectados.
*Colaboração de Pedro Papini
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Matinal News