Mudanças

Gravidez, parto e coronavírus: os desafios para a saúde física e mental

Mães e especialistas falam sobre os novos cuidados, as angustias e a superação do medo em meio à pandemia

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Mães, médicas e doulas se reinventam frente à nova realidade - Patrícia Prudente/ Unsplash

Cerca de 300 mil crianças nasceram no Brasil desde que o país passou a ser parte do mapa mundial da pandemia do coronavírus. A covid-19 não causou impactos no crescimento da população, mas certamente mudou muito o cotidiano das mães que estão esperando ou recebendo novas vidas. Em março, foram mais de 197 mil nascimentos. Nas primeiras semanas de abril, o número já alcança 98,6 mil, de acordo com dados do Portal da Transparência, administrado pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais.

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São casos de famílias que tiveram que refazer os planos de parto e mudar a rotina de consultas e de cuidados. Com o sistema de saúde voltado para o combate e controle da covid-19, o acesso a postos de saúde e hospitais está mais restrito. Não há estudos suficientes indicando risco maior da doença em mulheres grávidas e puérperas, mas, por precaução, o Ministério da Saúde as incluiu nos grupos de risco.

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A médica obstetra Juliana Giordano afirma que há relatos de mulheres que desenvolveram a covid-19 no pós-parto e que gestantes são grupo de risco para outras síndromes respiratórias. Juliana ressalta que, no Brasil, muitas vezes, o número de exames de pré-natal é feito de maneira excessiva e que, agora, é hora de seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Segundo a OMS, o número de ultrassons ideal, por exemplo, é de três por gravidez, e há uma limitação também nos outros procedimentos de rotina. 

“As orientações da Organização Mundial da Saúde estão bem estabelecidas, seguem os estudos clínicos, embasados, robustos, com bastante evidência de segurança. Voltar para o básico, que é muito necessário e muito importante, e diminuir a exposição dessas mulheres a exames desnecessários, que muitas vezes vão trazer riscos e malefícios”, avalia a médica.  

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Juliana lembra também que o ideal é que o parto cirúrgico não seja a primeira opção durante a pandemia. No Brasil, mais de 55% dos nascimentos ocorrem por cesárea, índice que na rede privada chega a 84%. O país é o que mais realiza esse tipo de procedimento no mundo. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, a cirurgia só é essencial em  cerca de 10% a 15% dos casos. 

“A cesariana é uma cirurgia salvadora de mães e bebês quando realizada com indicação clara. Fora do contexto da epidemia, ela já expõe a mulher a um risco maior. Agora, dentro desse contexto é muito mais. A mulher prolonga a estadia hospitalar, não pode ter alta precoce, a mulher fica submetida a uma recuperação cirúrgica. Agora, mais do que nunca, nós deveríamos nos voltar para fazer o que a medicina baseada em evidência recomenda, que á cesárea só quando necessária”, indica. 

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Ainda de acordo com Juliana Giordano, o distanciamento social – necessário para toda a população para combater a pandemia – precisa ser colocado em prática com critérios rígidos por mulheres grávidas ou que deram à luz recentemente.

Boa parte das maternidades já está adaptada à nova realidade, com redução no número de acompanhantes e isolamento das mulheres em trabalho de parto e no pós-parto.

A experiência vivida pela socióloga Táli Pires de Almeida, de 38 anos, e que teve bebê há menos de uma semana, seguiu todos os critérios recomendados. Moradora de São Paulo (SP), ela passou a ficar em casa com o filho mais velho de três anos a partir das primeiras medidas anunciadas pelo governo do estado. O marido ficou responsável pelas saídas emergenciais e para compras. Além disso, a família cumpre à risca as recomendações de higiene. Na maternidade, Táli só teve a companhia do marido e, com o bebê em casa, não recebeu nenhuma visita. 

“Quando começou a pandemia, nós imaginamos que as medidas nos hospitais seriam bem rígidas em relação a visitas e acompanhantes. Minha médica explicou como seria o parto, de uma maneira não alarmista, e a gente entendeu que a primeira coisa era: sem visitas e um acompanhante, porque isso ainda é um direito da mulher. Qualquer mudança nesse sentido vai um pouco além da pandemia. Como a gente tem um filho pequeno, a gente tinha a expectativa de que ele pudesse ir visitar a irmã, mas não deu, e tudo bem, é compreensível”, conta a socióloga.

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Além de todos os cuidados recomendados, as novas mães têm enfrentado também as consequências que a pandemia vem trazendo para a saúde mental de praticamente toda a população. Para se proteger, Táli foge das polêmicas políticas e segue as orientações científicas. Ela escolheu o caminho da solidariedade como forma de lidar com a nova realidade.

“Após um tempo, nós freamos o contato com as notícias, porque nós já estávamos em isolamento e as notícias não mudariam a nossa rotina. Por outro lado, procuramos estar perto nas redes sociais e ajudar quem precisa. Na escola do meu filho, o conselho de pais e mães fez um mapeamento das famílias em situação de vulnerabilidade e fizemos doações para quem precisava. Um grupo de moradores do meu bairro se juntou ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e doou alimentos, e nós participamos. Nossa estratégia foi mudar o foco do alarme e do medo para a solidariedade”, expõe. 

As dificuldades das mães periféricas

Enquanto a rede privada tem conseguido garantir algumas formas de proteção às mulheres grávidas, no Sistema Único de Saúde (SUS), estrangulado pelos atendimentos relativos à covid-19, o acesso está mais difícil.

A doula Daniele Sampaio Santana de Moura atua no projeto de doulagem coletiva e periférica Mãe na Roda, em bairros da cidade de São Paulo. Mulher negra e moradora da periferia da capital, ela estuda os processos femininos há um década e se tornou militante do parto natural após sofrer violência obstétrica no processo de nascimento do primeiro filho. Danie, como é conhecida, relata algumas das dificuldades enfrentadas durante a epidemia. 

“Estamos aqui num triângulo onde três hospitais não estão atendendo porque viraram referência para a covid-19. Essa mãe vai ter que peregrinar muito para poder ter o parto dela. Muitas dessas mulheres não têm condições e não é o ideal, principalmente neste momento, que ela peregrine. Neste momento em que ela não pode se expor, neste momento de muito cuidado para que ela não se contamine. Em outros momentos, nós temos mulheres que se contaminam porque não se sentiram seguras, porque a gente ainda tem o cuidado da gestante como: pega ela, coloca no carro e leva para o hospital. Neste momento de pandemia, essa mulher fica sozinha. Com essas idas e vindas. Eu tive algumas mulheres que foram contaminadas porque foram aos hospitais sem a necessidade de ir”, afirma.

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Danie conta ainda que precisou reconstruir suas formas de trabalho, a partir da pandemia, pensando até mesmo na segurança da própria família. Agora, o acompanhamento é virtual, por meio de grupos, chamadas de vídeo e orientações pelas redes. 

“Neste momento, nós, doulas, que somos colo, conforto e cuidado contínuo, não estamos conseguindo atender as mulheres. Especificamente no meu caso, eu não estou conseguindo atender as mulheres porque eu sou uma doula que trabalha com mulheres de periferia, usuárias de hospitais públicos, nos quais nós não temos autorização para entrar. A gente construiu um grupo online de preparação para parto, temos feito transmissões ao vivo para as mulheres que têm a oportunidade de ter acesso a internet, então ainda não é para todas”, explica.

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O desabafo da doula vem carregado da certeza de que o fortalecimento dessas mulheres é sempre o caminho ideal: "É muito pesaroso para nós, que somos profissionais do cuidado, do toque e do acolhimento. Mas a gente se reinventa e compreende que a gente precisa mesmo é fortalecer essa família, esse companheiro, essa companheira, que vão estar lá junto com essa mulher para trazer esse bebê.”
 

Edição: Vivian Fernandes