Coluna

Quatro notas breves sobre a demissão de Mandetta

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Henrique Mandetta foi demitido da chefia do Ministério da Saúde por Bolsonaro nessa quinta (16) - Evaristo Sa / AFP
O apoio a Mandetta se sustenta na premissa ingênua de que ele estaria fazendo um bom trabalho

Mesmo que o babuíno use um anel de ouro, ele ainda é feio.

(Sabedoria popular sul-africana)

Quem se torna uma ovelha acaba devorado pelo lobo.

(Sabedoria popular grega)

 

Sai Henrique Mandetta, entra Nelson Teich. Em meio à substituição da chefia do Ministério da Saúde, realizada de quinta (16) para sexta-feira (17) pelo presidente Jair Bolsonaro, muita gente de esquerda se pôs em alerta, por temer um agravamento da crise resultante da pandemia de covid-19 no Brasil. Diante de tantas reflexões possíveis sobre esse cenário, aponto, a seguir, quatro notas breves sobre a demissão de Mandetta, ocorrida após conflitos com Bolsonaro acerca das determinações sobre o isolamento social de combate ao coronavírus.

Primeiro apontamento

A queda do agora ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta não deveria surpreender ninguém. Ela confirma que Jair Bolsonaro não vai recuar, e que as tentativas de lhe impor algum “freio de arrumação” têm limites. Enquanto tiver apoio dos militares, Bolsonaro vai prevalecer.

A ideia de que a esquerda deveria fazer uma frente com os governadores em defesa de Mandetta se apoia na premissa ingênua de que os governadores João Doria (São Paulo) e Wilson Witzel (Rio de Janeiro) e o próprio Mandetta estariam fazendo um bom trabalho de contenção da pandemia. Só que não, não estão. Na verdade, nem em São Paulo, nem no Rio de Janeiro foi alcançada a meta mínima de segurança de 70% de distanciamento social indicada pelos epidemiologistas. Ademais, todos eles apoiaram, para citar um só exemplo, a aprovação da MP do Contrato Verde e Amarelo de destruição de direitos trabalhistas vigentes no Brasil desde os anos 50 do século 20.

A luta contra os perigos que nos cercam não se resume à defesa de uma orientação de quarentena severa, que só deve poupar os serviços, realmente, essenciais. A quarentena é emergencial, mas não é uma “linha vermelha” que separa a defesa da civilização da barbárie. Não é o bastante. Essa luta é indivisível da defesa dos interesses de toda a classe trabalhadora, portanto, do programa aprovado pelas Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo.

Segundo apontamento

Se há uma lição histórica de que a luta contra o nazi-fascismo nos anos 30 deixou “gravada na pedra”, é que a esquerda não pode escolher entre dois carrascos. A esquerda deve ter uma linha própria e independente. Podemos e devemos fazer unidade na ação em reivindicações humanitárias concretas, mas sem abdicar de um programa alternativo.

A linha que vem prevalecendo de “unidade” dos governadores contra Bolsonaro eclipsa a diferença entre as propostas da esquerda e as de Dória e Witzel. Essa é a linha de uma fração burguesa, especialmente o capital financeiro, que se deslocou, parcialmente, para uma posição crítica ao governo de extrema-direita, diante do posicionamento irresponsável de Bolsonaro de subestimar o caos social de uma contaminação exponencial em prazos, catastroficamente, curtos, como na Itália, Espanha e Nova York. Essa orientação encontra grande eco nos setores médios que podem se proteger por prazos indefinidos em confinamento. Mas deixa desamparada uma maioria do povo trabalhador que não pode, a não ser que receba apoio substancial do Estado. O programa de auxílio emergencial por três meses não será suficiente. A esquerda não pode abandonar a defesa dos mais vulneráveis.

Terceiro apontamento

A demissão de Mandetta deve elevar ainda mais a turbulência pelo alto. O sentido de sua demissão não é outro senão a saída do distanciamento social parcial das últimas quatro semanas, uma desgraça anunciada. Acontece que o enfraquecimento relativo de Bolsonaro, consequência de uma nova relação política de forças, encontra a esquerda amputada da possibilidade de se apoiar em mobilizações nas ruas para expressar a força social da juventude e dos trabalhadores. E estamos contrariados, porém resignados, por um lado, a ações descentralizadas de solidariedade social e humana com aqueles mais desvalidos e, por outro, à propaganda de ideias e formação política pela internet, que podem e devem ser mais unificadas. Sem uma derrota clara do governo. Ou seja, sem que a classe trabalhadora se coloque em movimento, a relação social de forças não irá mudar. A subestimação da força de Bolsonaro tem sido o mais sério erro dos últimos anos. A luta contra o neofascismo será difícil e dura e vai exigir paciência e firmeza. A crise colocará perigos ainda maiores. Bolsonaro não hesitará em ir até o Estado de Sítio, se puder.

Quarto apontamento

A crise vai se agravar, porque será, crescentemente, uma “tempestade perfeita”. Ela é mundial, por razões sanitárias, econômicas e sociais, mas assumirá formas especialmente graves no Brasil. Porque, entre nós, ela se agigantará diante do desastre do governo Bolsonaro.

Quem defende uma Frente de Salvação Nacional com Dória e outros dissidentes do bolsonarismo — como observou Tarso Genro em entrevista à Folha de S.Paulo nessa quinta (16) — aceita que o papel da esquerda é ser a quinta roda de um carro que vai esperar até 2022. Até lá, farão pressão para tentar enquadrar os excessos de Bolsonaro, mas continuarão apoiando todas as medidas que descarregarão sobre o povo os custos da maior crise econômica que as últimas duas gerações viveram. Um suicídio político.

A única saída que interessa à esquerda é a construção das condições para a derrubada de Bolsonaro e a conquista de eleições livres e diretas antecipadas. Sim, ainda é muito difícil.    

*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSol e autor de O Martelo da história, entre outros livros.

 

Edição: Vivian Fernandes