No disco Tropicália 2 (1993), os geniais Caetano Veloso e Gilberto Gil abrem o álbum com uma música que faz uma crítica social forte, explícita, mordaz. Trata-se de Haiti, que traça uma história poética da escravidão brasileira e da sua onipresença na realidade atual do país. Depois da primeira descrição, o poema musicado chega nestes versos que se tornam refrão:
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for à festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui.
O Haiti não é aqui.
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Ao ler, estes dias, o que se passa na cidade equatoriana de Guayaquil, na costa do Pacífico, cidade portuária e segunda mais importante do país, me lembrei da música de Caetano e Gil.
A notícia do início de abril é tétrica. Como os serviços de saúde e funerários não mais dão conta de atender aos doentes que falecem, muitos deles nas próprias casas, o desespero de familiares que não aguentavam mais o cheiro dos mortos, até por segurança de saúde, começaram a colocar os cadáveres nas ruas, enrolados em sacos plásticos à espera de que algum serviço público os recolhesse.
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É possível imaginar algo mais terrível do que chegar a este ponto nesta pandemia global? Se não podíamos imaginar o que se passa no norte da rica Itália, em Lombardia, nem na Espanha ou no Reino Unido, muito menos em Nova York, meca da globalização, agora estamos com uma situação mais próxima num país quase vizinho aqui do outro lado dos Andes.
Fico pensando o que pode acontecer em nossas grandes cidades, onde os casos já passam dos milhares e as mortes se acumulam, se algo semelhante venha a acontecer.
Nada está descartado. E as autoridades já adiantaram que não temos serviços públicos de saúde suficientes para conter tanta demanda, isto é, gente doente e muitas delas precisando de UTIs e os agora já famosos respiradores, se não realizarmos o isolamento social já!
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Estamos, recentemente, no início da curva ascendente e o grande debate que se instalou na sociedade e na imprensa é a “volta ao trabalho”, pois o “Brasil não pode parar”. Loucura coletiva ou cálculo tétrico?
Num único dia, em Guayaquil havia 450 cadáveres nas ruas!
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Logo saberemos por onde vamos caminhar e se – como na profecia de Ezequiel 37 – estaremos na contingência de andar trôpegos por entre um vale de ossos secos, putrefatos, a exalar um fedor macabro, mas sem a palavra profética que traga os corpos à vida, porque a desfaçatez e a negligência superaram a racionalidade e a empatia com quem mais sofre, é vulnerável e merecia mais atenção cidadã.
Do fundo do coração, rezo para que isto não aconteça! Quem viver, verá.
*Roberto E. Zwetsch é teólogo, professor associado do PPG de Faculdades EST, em São Leopoldo (RS), e pastor luterano.
Edição: Vivian Fernandes