A Rússia foi uma das últimas nações do hemisfério norte a reportar casos do novo coronavírus, em 19 de março. Hoje, são 18.328 diagnósticos confirmados e 148 mortes por covid-19. A partir da experiência dos demais países afetados, o presidente Vladimir Putin começa a anunciar medidas econômicas para evitar um colapso semelhante ao que ocorreu há 30 anos, na transição para o capitalismo de mercado.
A principal diferença para os anos 90 é a disposição do Estado para interferir na economia. Pequenas e médias empresas terão suas folhas salariais desoneradas, trabalhadores da saúde receberão bônus mensais de até R$ 5 mil de abril a junho e dívidas anteriores de pessoas físicas e jurídicas poderão ser parceladas por mais de um ano.
O presidente também garantiu que desempregados, autônomos e informais poderão acessar benefícios sociais durante a pandemia, e afirmou que “completará” o salário de trabalhadores que tiverem jornadas e salários reduzidos. Ao todo, Putin confirmou que injetará o equivalente a R$ 22 bilhões na economia.
Até o final da semana, o governo deve especificar como cada beneficiário poderá acessar os programas de isenção, linhas de crédito e auxílios prometidos, e quais os limites de compensação dos salários pelo Estado.
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Petróleo
Os impactos da pandemia na Rússia podem ser amplificados por um problema anterior à chegada do vírus: a crise do petróleo. O país é um dos maiores exportadores do mundo e viu os preços internacionais despencarem após a Arábia Saudita anunciar um aumento drástico em sua produção, oferecendo descontos de até 20% em alguns mercados. Era o prenúncio para uma “guerra de preços” com a Rússia, que levou à maior queda do petróleo em um mesmo dia desde a Guerra do Golfo, em 1991.
Com a paralisação da maior parte das atividades produtivas até o final de abril por conta da pandemia, a previsão de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) russo em 2020 caiu de 2% para 1%, conforme a agência Fitch.
“A recessão global, que nós já estávamos vivendo em janeiro, começou bem antes da chegada da covid-19. Isso irá comprometer a confiança das pessoas [em relação aos governos], incluindo o Putin”, explica o jornalista e analista político russo Konstantin Syomin. “O preço do petróleo vem despencando e chegou ao fundo do poço. A economia russa vai ser, e já está sendo, duramente afetada”, completa.
Desde 2014, a população abaixo da linha da pobreza cresceu 15% na Rússia. Os números refletem não só a instabilidade do preço do petróleo, mas uma série de sanções aplicadas por potências ocidentais após a anexação da Crimeia, há seis anos.
Ainda assim, a economia não quebrou, contrariando a previsão de representantes do mercado financeiro no Ocidente. Enquanto os índices de endividamento russos estão em cerca de 15% do PIB, a média da União Europeia é de 80%. O principal motivo é a diversificação das atividades, “forçada” pelas sanções – o setor industrial e a agricultura mais que dobraram sua participação no PIB após 2015.
Para o presidente do banco estatal russo VTB, Andrey Kostin, a covid-19 é mais nociva para a economia russa do que a crise do petróleo e as sanções. “Nós sabemos como lidar com a crise do petróleo, mas não com a crise do vírus. Por isso, é tão difícil fazer previsões. Ninguém tem respostas sobre quanto tempo isso vai durar: dois ou três meses, ou é uma questão de anos? As medidas de bloqueio e os pacotes econômicos dependem de informações que desconhecemos”, admitiu, em entrevista à agência Bloomberg.
Nós sabemos como lidar com a crise do petróleo, mas não com a crise do vírus. Por isso, é tão difícil fazer previsões. Ninguém tem respostas sobre quanto tempo isso vai durar: dois ou três meses, ou é uma questão de anos?
Kostin lembrou que Rússia e Arábia Saudita começaram a esboçar acordos que podem elevar o preço do barril de petróleo da casa dos US$ 30 para a dos US$ 40 ou US$ 50. “Em outro momento, esse salto resultaria necessariamente em um fôlego para a economia russa, mas as incertezas da pandemia nos impedem de afirmar isso”, completou.
Notícias falsas
Nas últimas semanas, as redes sociais na Rússia foram invadidas por notícias falsas sobre a pandemia. As mais comuns acusam a Organização Mundial da Saúde (OMS), a mídia e o governo de adulterarem números para maximizar os impactos da covid-19 e aterrorizar a população.
Syomin conta que muitas famílias que estavam em quarentena até março começam a sair de casa porque desconfiam das informações oficiais. O jornalista acrescenta que a situação tende a ser mais grave no interior do país, onde menos pacientes são testados.
“Eles estavam esperando uma catástrofe, e ela ainda não chegou. Então, por não verem cadáveres ou caixões perto de suas casas, alguns começam a pensar que pode não ser tão sério como a mídia está dizendo”, interpreta. “As pessoas em Nova Iorque, por exemplo, não precisam de mais evidências, porque têm ambulâncias circulando o tempo todo nas ruas. Enquanto a gente não tiver isso aqui, essas teorias e especulações vão continuar”, lamenta.
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Outra informação falsa que tem circulado na Rússia diz respeito ao desabastecimento, indicando que o “pesadelo dos anos 90” estaria de volta ao país. A primeira década após o fim da União Soviética foi marcada pela escassez de mercadorias e pelos altos índices de desemprego.
O principal motivo daquela crise foi a tentativa de implementar um choque em direção ao capitalismo, reduzindo a participação do Estado na economia e deixando empresas e indivíduos à mercê das regras do mercado. Milhões foram à falência, e as prateleiras vazias se tornaram o símbolo de uma transição fracassada.
Para checar imagens encaminhadas em aplicativos de mensagens que começam a provocar pânico na população russa, a reportagem do canal estatal Russia Today está visitando e registrando o interior de supermercados pelo país. A ideia é verificar se já há gôndolas vazias por conta da pandemia. O cenário, por enquanto, é de normalidade, exceto no setor de carnes. Frango e peru, por exemplo, começam a faltar, porque muitas famílias passaram a estocar alimentos e dão preferência às variedades mais baratas.
Apesar dos percalços dos últimos anos, a conjuntura não lembra em nada a da década de 90. O país tornou-se autossuficiente em produção de alimentos e possui uma das cinco maiores reservas financeiras do mundo. As empresas russas endividadas terão acesso a crédito e receberão isenções do Estado.
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Perspectivas
Além do trauma do desabastecimento, a transição para o capitalismo deixou como legado um dos sistemas de saúde mais caros do mundo. Em duas décadas, entre 1986 e 2005, a expectativa de vida dos russos caiu de 69,1 anos para 65,5 anos.
“O sistema de saúde soviético era muito forte. Era gratuito para todos, e a qualificação dos profissionais de saúde era muito alta”, lembra Syomin. “Porém, depois das privatizações dos anos 90, ele foi praticamente destruído, desmantelado. Então, acho que o preço vai ser pago agora. Já está sendo pago”.
O sistema de saúde soviético era muito forte. Era gratuito para todos, e a qualificação dos profissionais de saúde era muito alta.
O analista político diz que o país se agarra às “reminiscências” do modelo soviético, contando com médicos experientes formados em uma época em que a saúde não era tratada como um bem de consumo.
A Constituição Russa prevê assistência médica gratuita para todos, mas o índice real de cobertura é inferior a 21%. Segundo relatório da agência Bloomberg, a assistência médica russa está em último lugar entre 55 países desenvolvidos.
Em 2016, uma pesquisa do Instituto Levada, com sede em Moscou, mostrou que só 2% dos cidadãos têm orgulho do sistema de saúde do país. Hoje, o setor é majoritariamente privado. O investimento estatal em saúde é inferior a 5,5% do PIB, menor que todos os países da União Europeia.
Graças a uma política rígida de isolamento dos infectados e à agilidade no fechamento das fronteiras com a China, o número de casos de covid-19 na Rússia ainda é baixo – na comparação com o Brasil, por exemplo.
O aumento do número de casos em abril, especialmente em Moscou, afetou diretamente as políticas de prevenção e controle do vírus. A capacidade do sistema hospitalar da capital se esgotou na última semana, e o governo passou a investir na construção de hospitais de campanha e em testes massivos – mais de 1 milhão por dia, segundo números oficiais.
O tom do discurso oficial também mudou. Se no final de março Putin disse que o vírus estava “sob controle”, hoje não há sinais de subestimação.
“Precisamos cuidar da saúde do povo e, depois, da economia”, disse o presidente, em seu último pronunciamento em cadeia nacional. “A ameaça persiste. Os virologistas estimam que o pico da epidemia não foi atingido no mundo nem em nosso país. Acreditem: a melhor forma de prevenir o vírus é ficar em casa”.
Mesmo com a economia ameaçada, a Rússia tem participado de ações de solidariedade e cooperação internacional, enviando medicamentos e equipamentos de saúde aos países mais afetados, como Estados Unidos e Itália.
Edição: Rodrigo Chagas