Em pequeno texto do longínquo ano de 1998, denominado “Reforma agrária para resolver a crise urbana”, argumentei sobre o caos urbano característicos das nossas grandes metrópoles – Rio e São Paulo em especial – e sobre a contribuição que a reforma agrária poderia dar para a reorganização territorial da sociedade brasileira e a construção de uma sociedade mais justa, democrática e ambientalmente saudável. Nestes tempos de pandemia e enclausuramento foi inevitável lembrar deste texto.
O centro do argumento à época era a questão do combate ao desemprego e à miséria característicos de nossas metrópoles, diante da “incapacidade da sociedade urbano-industrial, calcada nas modernas tecnologias da informática e da robótica, incluir o enorme contingente de trabalhadores que habitam hoje as periferias das cidades”.
Argumentava então que uma ampla reforma agrária poderia ser capaz de reverter este quadro, possibilitando moradia, trabalho e cidadania a essa massa de explorados e excluídos e definia essa reforma agrária como a constituição de comunidades rurais onde se articulariam atividades agrícolas e não-agrícolas ocupando os milhões de hectares sob o controle do latifúndio.
Acredito que o argumento continua plenamente válido, afinal de lá pra cá o caos urbano nas nossas metrópoles só se ampliou, assim como o desemprego e a miséria (embora na década de 2000 tenha havido recuso do desemprego e da miséria, voltaram a crescer na atual década). Também continua válido em relação à persistência do controle do latifúndio sobre as terras brasileiras e seu baixo índice de aproveitamento, em que pese mudanças no campo resultantes da expansão do agronegócio (associação do latifúndio com o grande capital agroindustrial nacional e transnacional, com apoio – político e econômico – do Estado e sustentação ideológica da mídia).
Mas a atual crise gerada pela pandemia da covid-19 permite ir além do que afirmei em 1998 e articular esse argumento com a crítica ao modelo agroalimentar dominante.
Inúmeros estudos têm apontado para a insustentabilidade do atual sistema agroalimentar baseado na produção em larga escala de um pequeno número de espécies vegetais e animais, sob a forma de extensas monoculturas e produção de animais confinados em “fábricas de proteínas”.
Segundo artigo dos pesquisadores Miguel Altieri e Clara Nicholls, os grandes monocultivos ocupam 80% dos 1.500 milhões de hectares dedicados à agricultura em todo o mundo e para controlar as pragas que se multiplicam nestes campos com baixa diversidade ecológica e alta homogeneidade genética são aplicados 2.300 milhões de kg de pesticidas por ano, o que resulta no envenenamento de 26 milhões de pessoas por agrotóxicos no mundo todo ano.
As epidemias e as cidades
A pesquisadora Silvia Ribeiro, por sua vez, afirma que há três causas concomitantes e complementares que produziram a proliferação das principais epidemias das últimas décadas, com a gripe aviária, a gripe suína e a própria pandemia do novo coronavírus: (1) criação em escala industrial de animais como porcos, aves e bovinos; (2) monoculturas em larga escala para produção de ração e pastos que somam 75% da área agrícola do planeta; (3) expansão da urbanização.
A aglomeração de milhares de animais confinados em pequenos espaços é uma fonte inesgotável de multiplicação de doenças, algumas das quais permanecem apenas circulando entre estes, mas outras acabam, através de mutações, saltando dos animais para os seres humanos, como também argumentam Miguel Altieri e Clara Nicholls, salientando que 50 milhões de galinhas e perus morreram nos Estados Unidos pela gripe aviária.
Por outro lado, o crescimento deste tipo de criação animal exige o desmatamento de áreas cada vez mais extensas para a expansão do plantio de culturas como soja e milho que servem de base para a produção de ração para a alimentação animal. Estas culturas, por sua vez têm seus próprios impactos, uma vez que são produzidas com uso intensivo de derivados de combustíveis fósseis, agrotóxicos e água. Este modelo agroalimentar também torna mais pobre a dieta alimentar dos povos, como ratificam os autores:
Apesar dos seres humanos poderem comer mais de 2.500 espécies de plantas, a dieta da maioria das pessoas é composta por três culturas principais, como trigo, arroz e milho, que fornecem mais de 50% das calorias consumidas em nível mundial.
A expansão dessas grandes monoculturas se faz, muitas vezes, deslocando outras culturas e criações para novas áreas, muitas das quais florestas habitadas tradicionalmente por populações indígenas e camponesas que acabam sendo expulsas dessas áreas. Conforme destaca Silvia Ribeiro, “aegundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mundialmente, a expansão da fronteira agropecuária é responsável por 70% do desmatamento, mas em países como o Brasil, esta expansão é responsável por 80% do desmatamento”.
O avanço do desmatamento, por sua vez, leva animais silvestres que antes se encontravam nas florestas a se deslocar para outras áreas, inclusive urbanas, transformando-se também em vetores da disseminação de doenças. Segundo Altieri e Nicholls, “um mero aumento de 4% no desmatamento na Amazônia aumentou a incidência de malária em quase 50%”.
Cidades estas, principalmente as maiores, onde parte crescente da alimentação é fornecida pelas mesmas agroindústrias que, como vimos acima são fábricas de doenças. Além de produzirem comidas que provocam outros problemas graves de saúde, como doenças cardíacas, hipertensão, diabetes, obesidade, câncer do aparelho digestivo, má nutrição, que seguindo a Organização Mundial de Saúde (OMS) causam 72% das mortes no mundo.
Além disso, esse sistema alimentar globalizado fragiliza os países num contexto de restrição de mobilidade como o de uma pandemia, sendo o acesso a alimentos particularmente crítico para cidades com mais de 5 milhões de pessoas que “precisam importar não menos que 2.000 toneladas de alimentos por dia, percorrendo uma média de 1.000 quilômetros”, como destacam Altieri e Nicholls.
Torna-se, portanto, urgente reverter este modelo agroalimentar, em direção a uma agricultura descentralizada e agroecológica, o que só é possível como uma ampla reforma agrária que multiplique as pequenas unidades de produção de alimentos saudáveis.
Reforma agrária
A construção de uma reforma agrária agroecológica tem sido colocada como pauta central pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outros movimentos sociais do campo. Trata-se não apenas de mudar o padrão técnico dominante com a rejeição aos agrotóxicos, mas de construir outras práticas produtivas, outras formas de comercialização, outras relações de trabalho, outras relações sociedade-natureza que superem a fratura metabólica instaurada pelo capital.
Altieri e Nicholls argumentam que a agroecologia pode contribuir para o controle natural de pragas ao restaurar a biodiversidade sendo ainda capaz de produzir localmente “grande parte dos alimentos necessários para as comunidades rurais e urbanas, particularmente em um mundo ameaçado pelas mudanças climáticas e outros distúrbios, como as pandemias de doenças”. Destacam também a importância do papel dos consumidores que devem compreender que comer é um ato político e ecológico. E por isso devem apoiar o desenvolvimento de mercados locais e regionais regidos pelos princípios da economia solidária.
É este o sentido de ações desenvolvidas pelo MST, como a multiplicação das feiras da reforma agrária nos estados e a realização da Feira Nacional da Reforma Agrária, em São Paulo, já na sua terceira edição. Espaços nos quais não apenas se vende diretamente a produção dos assentados, mas também se debate a reforma agrária e a agroecologia e se manifesta a cultura popular. Assim como o fazem os Armazéns do Campo abertos em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Caruaru, Porto Alegre, São Luís - espaços onde os alimentos saudáveis se misturam à música, à poesia e à política.
Também nas escolas dos assentamentos a agroecologia tem se tornado referência pedagógica para a educação do campo, isto é, a educação pensada para e a partir das populações do campo, suas lutas, sua cultura, suas formas de organização social. A agroecologia tem sido inserida nos currículos das escolas do campo na forma de disciplina específica, como no caso do estado da Bahia ou como conteúdo articulador, como nas experiências das escolas itinerantes dos acampamentos no estado do Paraná, entre outros exemplos.
Assim, o MST tem renovado o debate sobre a reforma agrária no Brasil, articulando-o com educação, cultura, ecologia, afinal, como nos lembra Miguel Carter, o debate sobre a reforma agrária ultrapassa a dimensão fundiária e do desenvolvimento rural e diz respeito aos problemas mais profundos da sociedade brasileira.
Portanto, é preciso articular movimentos sociais rurais e urbanos para a construção de uma reforma agrária agroecológica que pode e deve ser parte de uma estratégia política destinada a combater ao mesmo tempo a desigualdade, a miséria, o desemprego, o caos urbano e a(s) pandemia(s), contribuindo para superar o atual modelo agroalimentar e construir outra sociedade onde a vida valha mais do que os interesses do capital.
Nossas grandes metrópoles são espaços ingovernáveis, marcadas por profundas desigualdades, com trânsito caótico, falta de saneamento, ilhas de calor e poluição, ambientes mais do que favoráveis à disseminação de epidemias e pandemias ligadas aos mais diferentes agentes infectocontagiosos.
A desconcentração espacial da população brasileira através de uma ampla reforma agrária agroecológica permitiria ao mesmo tempo combater todas essas mazelas. Terra para isso não falta, afinal há no Brasil 247,7 milhões de ha sob o controle do latifúndio, dos quais 175,9 milhões de ha de terras improdutivas. Há ainda no país 61,4 milhões de ha dedicados à produção de cana, milho e soja, a maioria na lógica agroindustrial. Por outro lado, a área plantada com alimentos básicos (arroz, feijão e mandioca) diminuiu 5 milhões de ha nos últimos 30 anos.
Urge reverter esse cenário e só uma reforma agrária agroecológica pode fazê-lo. Antes que se ampliem ainda mais a fome, a miséria e as doenças geradas por esse insano modelo agroalimentar dominado pelas grandes corporações do agronegócio.
*Paulo Alentejano é professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse e Vivian Fernandes