A política de desmonte do Estado está trazendo milhares de pessoas de volta à pobreza extrema
Por Sônia Coelho*
Nesta conjuntura tão emblemática, muita gente se pergunta: qual a tragédia maior? A pandemia do novo coronavírus ou o neoliberalismo que, no Brasil, é materializado pelo governo genocida de Jair Bolsonaro?
A resposta é simples: esses dois elementos sintetizam, juntos, o que é o capitalismo hoje. Por causa do modelo neoliberal, que desmonta o Estado e prioriza o lucro das grandes empresas, a tragédia do coronavírus é ainda maior e mais grave para a população pobre no Brasil e no mundo, especialmente para as mulheres pobres e negras, no campo e na cidade.
Desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, temos visto uma verdadeira política de desmonte do Estado brasileiro nas áreas de saúde, educação, assistência social. Sofremos com as privatizações, a reforma da Previdência de Bolsonaro, a reforma trabalhista de Michel Temer, políticas que afetam, de forma ainda mais aguda, a vida das mulheres e da população negra. Estivemos nas ruas permanentemente para enterrar tais propostas, com grandes manifestações e também greves de muito impacto, como foram as paralisações nacionais e a greve das e dos petroleiros, neste ano.
A implementação de todas essas políticas está piorando, concretamente, a vida das pessoas: suas perspectivas, sua rotina, sua estabilidade, seus medos. Está trazendo de volta milhares de pessoas para a pobreza extrema, além da fome e do estrondoso desemprego.
Acirra-se, no Brasil, o racismo, visível não apenas na desigualdade econômica, mas também no genocídio da população negra ainda mais cruel, marcado por uma ideia de que “a polícia tem licença para matar”.
A violência contra as mulheres também cresceu nos últimos anos, inclusive chegando ao feminicídio, que aumentou especialmente entre as mulheres negras.
Os cortes nas políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres não estão restritos ao âmbito federal. Estão em consonância com o governo muitos estados da Federação que, hoje, são governados pela direita (seja a de Bolsonaro, seja de outros setores). É o caso de São Paulo, que passa pelos desmontes encabeçados pelo governador João Doria (PSDB). Durante a campanha eleitoral de 2018, o governador paulista chegou a se definir como “BolsoDoria”. Mas agora, que está no governo e pretende ser candidato à Presidência, afasta-se de Bolsonaro, fingindo ser uma figura diferente em relação ao presidente. Na cidade de São Paulo, tal política a nível estadual se alinha também à política municipal do prefeito Bruno Covas (PSDB).
Assim tem sido o mundo em que vivemos. Essa pandemia revelou o que os movimentos sociais e feministas sempre afirmaram: que a tarefa fundamental de manter a sustentabilidade da vida humana somente é possível com um Estado forte, democrático e participativo, com políticas públicas universais e articuladas em todos os âmbitos da vida, com o compartilhamento dos cuidados.
SUS
A aprovação da Emenda 95, o chamada “Teto de Gastos”, aprovada em 2017, congela recursos da saúde, educação e assistência por 20 anos. Não à toa, foi chamada de “PEC da Morte” pelos movimentos sociais enquanto tramitava. Apesar da resistência dos movimentos, passou tranquilamente na Câmara e no Senado, com amplo apoio e desinformação da mídia brasileira. Essa política está fragilizando e destruindo o Sistema Único de Saúde (SUS), fazendo com que a pandemia encontrasse o SUS em estado quase agonizante. O SUS foi o primeiro a necessitar oxigênio, por meio de recursos, para se manter vivo e operante. A pandemia do coronavírus reforçou a importância do SUS como um sistema fundamental para garantir a vida de todos e todas.
O SUS envolve mais do que os atendimentos médicos: garante também os serviços de vigilância sanitária, pesquisas, prevenção e promoção da saúde.
O subfinanciamento, presente desde sua criação, vem sendo intensificado no ultimo período, com uma forte ofensiva privatizante. Querem desmontar o SUS, torná-lo um serviço precário e restrito aos mais pobres, para, então, avançar na privatização geral da saúde. Os países que estão enfrentando esta pandemia com mais segurança e efetividade são aqueles que contam com um sistema de saúde pública universal. Agora, o SUS está no centro e todos clamam para que funcione. Mas, em meio a esta crise, ele só funcionará se a Emenda Constitucional 95 for revogada, o sistema for ativamente fortalecido e os equipamentos do serviço privado de saúde forem colocados a serviço de todas as pessoas.
As mulheres estão na linha de frente deste furacão, afinal são a maioria entre enfermeiras, atendentes, psicólogas, assistentes sociais, faxineiras — funcionárias públicas chamadas de “parasitas” pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, há pouco tempo, na tentativa de emplacar uma reforma administrativa para destruir os serviços públicos que restam e retirar direitos das e dos servidores. Na área de serviços, são elas também: nos caixas dos mercados, nas farmácias, nos asilos como cuidadoras de idosos, sem contar o drama de milhares de empregadas domésticas que estão sendo submetidas ao trabalho e ao contágio ou estão em quarentena e sem receber.
Violência doméstica
Outro problema que se acirra com a quarentena é a violência contra as mulheres, o que era de se esperar. Infelizmente, é nos fins de semana e feriados que ocorrem mais casos de violência, pois é quando o agressor está dentro de casa. A casa é, para uma parte das mulheres, o lugar mais perigoso. Bolsonaro, em seu ato de desrespeito à quarentena, foi passear no comércio da Ceilândia, em Brasília, e comentou com os homens ali presentes que as pessoas teriam que deixar a quarentena para ir trabalhar, pois "tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão". Mais uma vez, Bolsonaro justifica a violência contra as mulheres. Mas não existe justificativa para violência. A violência contra as mulheres é estrutural desse sistema patriarcal, racista e capitalista que, por enquanto, (des)organiza nossas vidas. São inadmissíveis as atitudes de Bolsonaro, que atenta contra as mulheres e contra a saúde coletiva. Fora, Bolsonaro!
Em 2007, quando o governo criou o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, os estados e municípios foram interpelados a desenvolver políticas públicas para as mulheres, que inclusive ultrapassem o atendimento às vítimas de violência, pela compreensão de que o enfrentamento à violência requer também políticas que possibilitem autonomia econômica das mulheres, acesso à saúde, assistência social, profissionalização etc.
Após o golpe e, agora, com o governo Bolsonaro, todas as políticas voltadas para as mulheres e para a população negra foram esvaziadas e tiveram seus recursos cortados. Muitos estados e municípios seguiram a lógica federal atual, acabando com Secretarias e demais organismos de políticas para as mulheres, como é o caso de São Paulo.
O retrocesso impacta muito na vida das mulheres e vai na contramão do real papel do Estado: reconhecer que existe uma desigualdade entre homens e mulheres, bem como entre brancos e negros, e eliminar as relações de poder e desigualdade na sociedade.
Em defesa da vida, precisamos garantir o cuidado e derrotar Bolsonaro. O coronavírus trouxe para a agenda uma discussão que passa pela saúde, mas também a ultrapassa. Precisamos de um Estado forte, que invista nas políticas públicas e sociais, esteja a serviço da vida do povo e assuma a tarefa de alterar as desigualdades sociais, raciais e de gênero. Evidentemente, não é com Bolsonaro no poder que conquistaremos isso. A pandemia do coronavírus explicita a seguinte pergunta, que precisa ser respondida cada vez mais amplamente: o que é necessário para a garantia e a qualidade da vida? O trabalho da maioria sustenta o lucro de poucos. Por isso, precisamos transformar a economia. A lógica da acumulação e a austeridade imposta pelo neoliberalismo demonstram ser incompatíveis com a vida da maioria da população. Trocando em miúdos, o capitalismo é incompatível com a vida humana e do planeta.
*Sônia Coelho integra a Marcha Mundial de Mulheres e a Sempreviva Organização Feminista (SOF).
Edição: Vivian Fernandes