Nestes tempos em que a presença militar ganha corpo nos mais diferentes compartimentos da política brasileira, é da memória e da história que o escritor Manuel Domingos Neto tira as considerações para entender o cenário do país e refletir sobre o que bate à porta. Nesta semana em que se rememoram os 56 anos do golpe militar de 1964, que se anunciou em 1º de abril daquele ano, o historiador conversou com o Brasil de Fato a respeito dos principais temas que hoje sacodem a política nacional à luz do avanço das Forças Armadas sobre os espaços de comando e poder.
::Em dívida com o passado, militares ganham espaço com Bolsonaro e comemoram ditadura::
Tendo atuado na organização de esquerda Ação Popular durante a ditadura, Domingos Neto é ex-preso político e militante de envergadura histórica, além de ex-deputado federal pelo Piauí e professor aposentado pelo curso de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). É desses substratos que partem suas análises sobre o risco imposto pela atual e ostensiva presença da ala militar no xadrez da política brasileira. “Quando tudo isso passar, o débito das Forças Armadas em relação à sociedade será elevadíssimo”, exclama o professor, quando tenta associar as lições do passado com as projeções sobre o temido futuro.
A relação entre o ministro Sérgio Moro e os fardados do poder, bem como a radicalização dos militares com a pauta dos costumes, o isolamento político do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o “caos” e a “imprevisibilidade” anunciada pelo contexto nacional também são pontos de reflexão de Domingos Neto.
Assista entrevista em vídeo com o historiador:
Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Em comparação a outros países da América Latina, como o Chile e a Argentina, onde torturadores foram punidos e o povo tem mais sensibilidade às vidas ceifadas pelos militares, no caso brasileiro, isso não acontece. Ao contrário, Ustra é exaltado por Bolsonaro, parlamentares, e parte da nação. Nos últimos dias, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, seguiu a interpretação do governo em relação ao golpe, e declarou que ele foi um "marco para a democracia brasileira". Isso lhe surpreende?
Manuel Domingos Neto: Como nós sabemos, a ditadura acabou através de um pacto. Esse pacto incluía a anistia e, portanto, incluiu a liberdade dos torturadores. Foi o pacto possível e, a partir de então, nós vivemos persistentemente um problema não resolvido. Os crimes de lesa-humanidade configurados na tortura e praticados pelos agentes do Estado não poderiam ser esquecidos ou se passar um pano em cima e acabou-se. Isso persistiu o tempo todo, tensionando, sendo, inclusive, uma das causas da animação dos militares pra retirar a esquerda de cena, porque eu acho que, no auge da legitimidade dos governos Lula, deveria ter sido feita alguma coisa. Não foi feito.
Estava muito vivo, nessas circunstâncias, o desgaste profundo dos militares e se tentou pôr panos quentes até na Comissão da Verdade, já no governo Dilma Roussef (PT), aí o incômodo foi terrível porque, durante todo esse período de democratização ou de democracia, a formação dos militares, a cabeça dos militares, as suas narrativas não foram mexidas, não foram tocadas. No máximo, eles silenciaram, ficaram, digamos, hibernando, e surgem, com o reacionarismo gritante apenas nos últimos anos.
Agora, eu não acredito que o retorno dos militares como agentes políticos, como protagonistas da cena política se deva apenas a isso. Acho que isso merece uma análise bem mais complicada porque entram outros fatores. Mas, sem duvida, o fato de não ter havido uma prestação de contas, esses panos quentes em cima da tortura contribuíram pra ferocidade com a qual eles retornam agora, paranifando um regime infame.
No dia de hoje, nós temos essa ordem do dia do ministro da Defesa, que é repugnante sob todos os aspectos. Ela é mentirosa, é falsa, desrespeitosa com os brasileiros, é desrespeitosa com a inteligência do homem comum. Não é preciso ser genial pra entender que essa ordem do ministro Fernando é um acinte. Como é que o sujeito assina um papel dizendo “instalamos uma ditadura pra defender a democracia”? Isso é ridículo, não tem fundamento, não tem cabimento.
Por que parte do povo brasileiro ainda nega a ditadura?
Ao longo de décadas, o reacionarismo inerente à sociedade brasileira foi alimentado de diversas formas. Algumas das mais evidentes foi o ativismo político dos neopentecostais, bombardeados e senhores da comunicação com a grande massa, mídias, as emissoras de rádio em qualquer canto do Brasil. Você constata uma predominância que atenta contra a democracia. Enfim, é um domínio acentuado desse ativismo sob a capa de pregação religiosa.
Agora, do ponto de vista estritamente militar, ao longo de todo esse período, as escolas militares estabeleceram, replicaram, insistiram, sofisticaram a narrativa do militar em defesa do Brasil, tomando o Brasil não obviamente como povo brasileiro. A narrativa era de salvadores da pátria, negando tudo o que está escrito na lei, na Constituição e o que foi vivido objetivamente pela historia do Brasil. Eu diria que, nestes anos de democracia, os militares viveram profundamente o grande dilema de sua existência de mais de 200 anos, que é [o fato de que eles] não sabiam se queriam ser policias ou se seriam força de defesa do Brasil. Acho que hoje predomina a primeira hipótese, a índole policial.
Eu diria que, nestes anos de democracia, os militares viveram profundamente o grande dilema de sua existência de mais de 200 anos, que é [o fato de que eles] não sabiam se queriam ser policias ou se seriam força de defesa do Brasil. Acho que hoje predomina a primeira hipótese, a índole policial.
Os meus colegas que estudaram as Forças Armadas estabeleceram outro dilema, também legítimo, que é se as Forças Armadas (FA) queriam ser políticas ou militares. Eu respeito essa interpretação, acho importante essa análise, mas, no meu trabalho, saliento muito mais essa história do dilema entre ser policial, ou seja, se preparar pra condicionar o cidadão brasileiro, ou militar pra enfrentar ameaça externa. As FA se prepararam pra enfrentar o povo brasileiro e não se prepararam pra enfrentar inimigos externos.
Como foi o comportamento militar no período petista? E o que representou a autorização do uso das Forças Armadas no Rio de Janeiro por Michel Temer, em 2017?
Eu, como tantos colegas que estudam os militares, ficamos atordoados. Nós nos enganamos, nós criamos ilusões, nós tivemos intenso convívio e debate com os próprios militares nesses anos todos. Formulamos, discutimos grandes programas estratégicos que foram transformados em estratégias e planos nacionais de defesa, programas estratégicos. E nós, eu, da minha parte, acreditei que haveria... O próprio Villas Boas inúmeras vezes repetia ‘foi muito ruim pras FA a experiência de governo’. Ele não chamava de ditadura militar. As FA sofriam com o regime como corporação. E, nessa conversa, a gente acredita que os militares tinham assimilado profundamente a necessidade de deixarem a política pros políticos, e não se envolverem na política, até porque o político armado estabelece uma relação absolutamente desonesta e covarde. Como é que eu vou agir politicamente se estou armado com a arma que tu me pagaste? Como é que você me paga pra me formar, me mantém, me dá as armas e eu vou discutir com você na política? Isso não tem cabimento, é a corrupção mais profunda que pode haver da ideia de democracia.
Como é que eu vou agir politicamente se estou armado com a arma que tu me pagaste? Como é que você me paga pra me formar, me mantém, me dá as armas e eu vou discutir com você na política? Isso não tem cabimento, é a corrupção mais profunda que pode haver da ideia de democracia.
Então, nós, falando com toda franqueza, houve muita ilusão... Eu não tenho, não tinha ilusão acerca do pensamento conservador dos militares. Isso estava nítido. É muito difícil você identificar, nesses últimos anos, um núcleo mais avançado. Do ponto de vista de apoiar o progresso social, isso não houve. Agora, nós não poderíamos imaginar que eles chegassem a ponto de paraninfar um governo de terraplanistas, de endossar um elemento selvagem como este presidente da República. Nós não imaginávamos que os militares fossem dar sustentação a alguém que torna o Brasil uma entidade estranha, exótica e abominável no mundo todo. Quem gosta do Brasil, efetivamente, pode apoiar tal coisa? Eu imaginei que os militares gostassem mais do Brasil e não chegassem a tanto, mas chegaram. A surpresa veio a partir de 2016, com o impeachment e, posteriormente, com as eleições. Quando eu vi militares da ativa e da reserva se engajando ativamente na eleição do Bolsonaro, fiquei atordoado.
Enfim, a repressão interna nas FA, a postura, o pensamento, a mentalidade ultraconservadora grassou exatamente no período democrático. É o que nós chamamos de a permissão de autonomia. O Estado concedeu uma autonomia exagerada às FA. As FA não concebem que o seu financiador, ou seja, a sociedade brasileira, dê qualquer pitaco acerca dos seus assuntos internos. Deu do no que deu. Estamos aí nessa situação catastrófica.
Eu não acho que os militares quisessem o Bolsonaro efetivamente. Me parece que eles entraram nessa como alternativa possível, alternativa única para derrotar e alijar a esquerda. Hoje eles estão absolutamente fechados na ideia de que Bolsonaro não é bom, é inconveniente. Bolsonaro é difícil, indomável, mas o pior dos mundos é o retorno da esquerda. Essa é, do meu ponto de vista, a razão pela qual eles continuam cada vez mais se afundando nessa crise descomunal. Se os militares têm muitas contas a prestar na história do Brasil, se mataram muitos brasileiros desde Canudos ou antes disso, se têm uma lista de coisas abomináveis sobre as quais silenciam ou negam ou mentem e constroem uma historia apenas pra enaltecimento da própria instituição, agora a coisa chegou a um exagero extremado. Nós estamos mergulhados numa crise sem a mínima noção de como vamos sair dela. E de uma coisa eu tenho convicção: no frigir dos ovos, quando tudo passar, o débito das FA em relação à sociedade brasileira será elevadíssimo.
O que foi a chegada de Bolsonaro ao poder, com a formação de um partido militar, a volta do discurso de defesa da pátria, a destruição do aparato estatal e sua reconfiguração como Estado autoritário? O que isso representa? Quais as diferenças para o regime militar de 1964?
Óbvio que o mundo de hoje é completamente distinto dos anos 60 e 70. Hoje a gente ainda tem um Congresso funcionando. Nós temos um Supremo. Eu diria ‘funcionando’ entre aspas porque tanto o Congresso quando o Supremo já têm razões acumuladas pra um impeachment, pro afastamento sumário do presidente, porque ele faz a coisa de forma muito grave, ele desrespeita a lei, comete crimes de responsabilidade a rodo. Portanto, quando a gente diz que a Justiça e as instituições estão funcionando, elas estão funcionando de uma forma que não interessa tanto à sociedade. Mas nós temos hoje uma sociedade radicalizada no sentido de que há um percentual pequeno que apoia Bolsonaro, que quer a intervenção militar, o fechamento do regime. É pequeno, mas é muito ativo e, nos meios atuais, essa minoria tem uma capacidade de influência muito maior do que teria no passado.
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Me parece também que o que nós estamos vivendo é o reflexo de uma situação internacional. Existe hoje uma mudança de ordem em curso, e não há exemplo na historia de mudança de ordem mundial que não seja sangrenta. Na ultima, foram dezenas de milhões de mortos, que foi a Segunda Guerra Mundial, que inaugurou a hegemonia norte-americana, mas sobra pouca dúvida de que os Estados Unidos chegarão ao fim. Há pouco tempo, o George Bush estava propugnando aí a unipolaridade, querendo organizar o mundo segundo a vontade única dos Estados Unidos. Isso não durou muito tempo porque teve desafiante do ponto de vista militar, sobretudo. Teve a Rússia, que soube se defender quebrando o bloqueio da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], e teve sobretudo a ascensão chinesa. O capitalismo chinês, classifique ele como você quiser, é o fenômeno mais importante. Não há quem negue o fato de que os EUA são potência descendente e a China uma potência em ascenso. E, também, com um domínio tecnológico cada vez mais sofisticado, ela ganha a competição e haveria que barrar a possibilidade de ascensão chinesa, sobretudo assegurar o domínio da América Latina. Era impensável pros EUA perder esse domínio.
Os governos progressistas criaram coisas insuportáveis pros EUA. O Celso Amorim [ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores], um craque em política internacional, criou coisas alvissareiras – obviamente, ao lado de outros, como o Samuel Pinheiro Guimarães, o Marco Aurélio, sob a direção de Lula. Eles deram passos efetivos de integração sul-americana e de presença na África. O Brasil começou a jogar pra valer na semi-internacional... Ora, o que nós vemos agora é um troco. O Brasil jogou um grande papel e era preciso destruir esse papel. O que o Bolsonaro representa é isso.
Como o senhor percebe o alinhamento das forças militares com membros da Lava Jato, a partir da figura do ministro Sérgio Moro?
Óbvio que há um planejamento estratégico. Nós vivemos um novo tipo de disputa, que alguns chamam de guerra hibrida e no qual o aparelho judicial tem uma função muito relevante. E ele foi a grande peça. Os militares adoram Sérgio Moro pela cara de moralista. Não importa se ele destruiu a engenharia brasileira, se foi um juiz que atuou sempre ao arrepio da lei, um sujeito que vai prestar contas com a história, que tem um débito pesado. Acho que o destino dele não será bonito, mas ele é uma figura endeusada pelos militares. No discurso em que o general Villas Boas entregou o comando do Exército [em janeiro de 2019], ele exaltou o Moro. Com toda a manipulação que ele fez da lei, com todas as suas arbitrariedades, jogadas espúrias, com toda a sua articulação com o Pentágono e com a CIA, ele persiste sendo considerado o grande homem e ainda está bem cotado naquela lista dos políticos. Está em situação até melhor que a do próprio presidente. Sergio Moro é peça-chave, inclusive pra um eventual fechamento de regime. Sua figura pode servir muito bem pra um regime futuro aí de repressão.
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A ligação de Bolsonaro com as milícias seria de conhecimento das Forças Armadas? Há uma negação dos militares em relação a esse tema?
Os militares conhecem mais do que ninguém as vinculações do Bolsonaro com as milícias, que não são coisa recente. É uma coisa muito antiga, muito consolidada a partir de sua base eleitoral no Rio de Janeiro. É muito estranho que as FA não tomem isso como uma ameaça ao monopólio da força porque, pela lei, deveriam zelar. Pela lei e pela lógica. São organizações fora da lei, são paramilitares, profundamente envolvidas com tudo que não presta, e estão intactas.
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Existe um grupo radicalizado que ainda acredita no chamado “marxismo cultural”. Na sua opinião, um retorno da esquerda ao poder poderia ser barrado por interferência das Forças Armadas?
Olha, eu acho que o neoconservadorismo é dominante junto com essas teorias todas. Os militares são racionais, estão na ponta de muitas áreas do conhecimento científico, mas, quanto à percepção social, eles são rasteiros. Eles não estudaram a história do Brasil e construíram uma história digna de si. Uma coisa fácil de verificar são as interpretações que eles dão aos acontecimentos, aos processos ao longo dos últimos 200 anos ou até mais, já que remontam seu nascimento à Batalha dos Guararapes, no Século XVII.
Eles são profundamente reacionários, e esse reacionarismo precisa se exprimir de uma forma reconhecível, aí entra essa grande palhaçada do “marxismo cultural”. Não havendo outra interpretação plausível, absorvem essa. Os militares são sensibilizados também pela pauta dos costumes. Eles radicalizam nessa matéria, acham que é traição ao Brasil essa política de inclusão a partir das discriminações raciais. O Brasil é tipo como se quisessem preservar o que nos sobrou da sociedade colonial – exclusão dos negros, dos pobres, dos sem-terra, dos índios.
Hoje, com a pandemia do novo coronavírus, vemos um alinhamento ainda maior do Brasil com os Estrados Unidos, até mesmo no sentido de negar a gravidade da covid-19. Fala-se que o presidente Bolsonaro estaria isolado, pelo Congresso, pelo Supremo, com força apenas no empresariado e na base radicalizada. Tem-se um ambiente perfeito para a militarização da política. Você concorda? Hoje Bolsonaro teria poder para um novo golpe militar?
Olha, eu não sei falar com segurança acerca disso. Li muito sobre os militares, mas eles me surpreendem muito. Não sei o que serão. Um homem como Villa Bôas, por exemplo, foi uma completa surpresa pra mim. Eu não sei o que eles vão fazer. Posso dar minha sensação, que é de que eles usaram Bolsonaro porque não havia outra opção, era o que estava disponível, e logo em seguida souberam que Bolsonaro era indomável, mas apostaram assim mesmo. Alguns oficiais mais experientes, como o Almirante Flores, meses antes das eleições, depois de reuniões e tudo mais com o almirantado, concluíram “esse não vai ser enquadrado, ele não é razoável”. Mas outros continuaram com a brincadeira.
Logo no começo do governo, eu cheguei a pensar que o ataque à honra militar foi tão profundo que seria insuportável e que haveria um descarte de Bolsonaro, mas eles aguentaram. Hoje eu não sei, não saberia dizer e acho que ninguém saberia, em que ponto as Forças Armadas controlam o imenso aparato de segurança do Brasil diante de uma previsível situação de caos. Nós estamos caminhando para o caos, e ele não será controlado pelas poucas centenas de integrantes das Forças Armadas. E, mais ainda, havendo desobediência de polícias militares, a situação ficará imprevisível.
Edição: Rodrigo Chagas