Jair Bolsonaro (sem partido) perde agora seu último aliado externo, Donald Trump. O presidente estadunidense reconheceu a gravidade da crise e acertou a liberação de recursos, da ordem de 9% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Outro aliado Boris Johnson, primeiro ministro inglês, já havia feito o mesmo, na segunda-feira (23).
O pronunciamento de Bolsonaro na noite da terça-feira (24), convocando a população a romper o isolamento, desqualificando a gravidade da pandemia e atacando todos, de aliados a opositores atestam o seu nível de insensatez.
A postura do presidente da República confrontando governadores, prefeitos, entidades ligadas a saúde e negando a própria ciência, levaram Bolsonaro a um completo isolamento no cenário interno.
Apesar da escalada do coronavirus Bolsonaro insiste em seguir a cartilha, que o próprio Trump, agora, já abandonou.
Ao querer imitar Donald Trump, Bolsonaro não se dá conta de que os Estados Unidos têm uma capacidade, infinitamente maior, de enfrentar a crise, a começar pelo tamanho da economia, a maior do mundo, capaz de ampliar com mais velocidade as ações de saúde e preservar a renda da população. O desenvolvimento tecnológico, a infraestrutura física, uma rede hospitalar sofisticada mais distribuída e um orçamento para a saúde incomparável.
Trump e o Congresso dos EUA acertaram um pacote inédito de US$ 2 trilhões para o combate à doença e seus efeitos econômicos. O total representa 9,5% do PIB americano e inclui uma massiva transferência de renda para todas as famílias vulneráveis, no valor de U$$ 1,2 mil por mês (cerca de R$ 6 mil). Os recursos para os hospitais chegam a U$$ 130 bilhões (cerca de R$ 650 bilhões).
"Temos um acordo bipartidário sobre o maior pacote de resgate da história americana", disse o líder democrata no Senado, Chuck Schumer. Hoje, os EUA têm mais de 60 mil infectados e registra 827 mortes, um número bem maior que o Brasil, com 57 mortos e 2.433 infectados. No futuro os números podem ser bem diferentes. Lá, Trump reconheceu a gravidade da crise e entrou em campo. Aqui, Bolsonaro continua sendo Bolsonaro e a pandemia não passa de uma “gripezinha’.
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O primeiro ministro conservador da Inglaterra, Boris Johnson, jogava no mesmo time de Trump e Bolsonaro. Rejeitava qualquer medida mais drástica,
ao assumir as teses do seu principal conselheiro, Dominic Cummings, “imunidade de rebanho, proteger a economia e se isso significar que alguns pensionistas morram, assim seja”.
O relatório do Imperial College de Londres recebido pelo governo britânico, estimava que, com as primeiras medidas adotadas (isolamento de sete dias aos que apresentavam sintomas, 14 dias aos núcleos familiares e recomendação de isolamento social), o Reino Unido enfrentaria o possível número de 260 mil mortos, não somente pelo coronavírus, e sim por outras doenças que o Serviço Nacional de Saúde não teria capacidade de tratar. Esses dados, e a trágica evolução observada em países como a Itália e a Espanha, mudaram o rosto e o tom das falas de Johnson.
No mesmo dia em que recebeu o relatório, em 20 de março, o Reino Unido anunciou socorro de 350 bilhões de libras a empresas, incluindo o pagamento de até 80% do salário dos empregados. Valor equivale a R$ 2,12 trilhões ou a 15% do PIB anual da Inglaterra
Boris Johnson promete combater o vírus como "em tempo de guerra": "e temos de agir como qualquer governo em tempo de guerra e fazer tudo o que pudermos para apoiar a nossa economia".
Ele determinou, na segunda-feira (23), que o país entre em quarentena oficial após registrar 335 mortes pelo coronavírus.
Em pronunciamento, Johnson afirmou que os britânicos só poderão sair de casa para atividades essenciais, como comprar alimentos e remédios. Todo o comércio não essencial será fechado, qualquer tipo de eventos e cultos ou cerimônias religiosas serão suspensos. Foram proibidas ainda reuniões com mais de duas pessoas.
Guerra contra o vírus é mundial
Os EUA e a Inglaterra foram os últimos, mas vários países já tratam o combate à pandemia como uma operação de guerra.
A Itália está pagando um preço alto por resistir a medidas de isolamento social para conter a pandemia. "O objetivo é garantir que não haja sequer uma pessoa que perca o emprego por causa do coronavírus", disseram inicialmente o primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte e os ministros Roberto Gualtieri (Economia) e Nunzia Catalfo (Trabalho).
"Vamos aplicar o modelo da Ponte Morandi, que ensina que quando nosso país é golpeado, sabe se levantar, formar um time e tornar-se mais forte", frisou Conte.
O presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou medidas de choque sem precedentes, típicas da época da guerra, com 300 bilhões de euros dedicados à economia de empresas. "O pagamento de impostos e contribuições sociais, contas de água, luz e gás, bem como aluguéis, também será suspenso. Todas as reformas pendentes, como a controversa previdenciária, estão suspensas”, informou Macron à época.
Segundo o mandatário francês, o governo viu-se obrigado a dedicar-se exclusivamente ao combate ao coronavírus. "Estamos em guerra. Não lutamos contra um exército ou contra outra nação. Mas o inimigo está lá, invisível, imperceptível, progredindo. E isso requer nossa mobilização geral", disse, em seu gabinete no Palácio do Eliseu.
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O governo espanhol aprovou um pacote de medidas econômicas que mobilizará 200 bilhões de euros para enfrentar a forte queda da atividade econômica provocada pela pandemia do coronavírus. Um esforço extraordinário que representa quase 20% do PIB espanhol.
“Com estas medidas Espanha se une aos países que decidiram enfrentar a crise com um grande aumento do gasto público", explicou Pedro Sánchez, primeiro ministro espanhol.
A Alemanha acertou um pacote de 750 bilhões de euros para combater coronavírus. “Um pacote muito grande, com muitas medidas”, disse Olaf Scholz, vice-chanceler alemão, a repórteres durante entrevista ao lado de Peter Altmaier, ministro da Economia do país.
O governo de Angela Merkel planeja suspender as restrições constitucionais ao endividamento da Alemanha para combater a crise do coronavírus e irá aos mercados para captar até 156 bilhões de euros. "Desde a reunificação, não, desde a Segunda Guerra Mundial, não houve outro desafio para nosso país que dependa tanto de nossa ação solidária e comum", disse Merkel.
Xi Jinping, presidente da China, numa visita a Wuhan, epicentro da pandemia, disse a profissionais de saúde por videoconferência que "podemos vencer essa guerra". De máscaras, eles bateram continência. A China já superou o pior momento da proliferação do vírus e começa sua recuperação.
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Na África do Sul, o presidente Cyril Ramaphosa falou à nação pela TV e agarrou-se num evento glorioso, a luta contra o apartheid. Terminou citando "We Shall Overcome" (vamos superar), hino da luta contra a segregação racial, convocando os sul-africanos à união.
Enquanto isso, no Brasil...
...uma sucessão de posicionamentos desastrosos do presidente da República:
- 10 de março: “Obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.”
- 15 de março: "Tivemos vírus muito mais graves que não provocaram essa histeria. Certamente tem um interesse econômico nisso. Em 2009 teve um vírus também e não chegou nem perto disso. Mas era o PT no governo aqui e os democratas nos Estados Unidos.”
- 16 de março, após participar de manifestação contra o Congresso e o Judiciário, em Brasília (DF): "Foi surpreendente o que aconteceu na rua até com esse superdimensionamento. Que vai ter problema vai ter, quem é idoso, [quem] está com problema, [quem tem] alguma deficiência, mas não é tudo isso que dizem. Até que a China já praticamente está acabando."
- 22 de março:
“A dose do remédio não pode ser excessiva de modo que o efeito colateral seja mais danoso do que o vírus (...) Não podemos levar o pânico, o pânico é uma doença também, mais grave que a própria causa do vírus." - “O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos sim voltar à normalidade.
- “Algumas autoridades, municipais e estaduais, devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa.”
- “O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco são as pessoas com mais de 60 anos, então por que fechar escolas?”
- “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus não precisaria me preocupar, nada sentiria ou quando muito seria acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”
::Mentiras e inconsistências no pronunciamento de Jair Bolsonaro sobre coronavírus::
*Giles Azevedo é articulista e foi secretário executivo do gabinete da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Edição: Rodrigo Chagas