BLOQUEIO

Como as sanções de Trump afetam o combate à pandemia no Irã, 4º país com mais mortes

Estados Unidos mantêm medidas que sufocam economia e dificultam importação de remédios e suprimentos de saúde

Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia) |

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Termômetros infravermelhos estão em falta no Irã, que depende de ajuda da China e da OMS para enfrentar a disseminação do coronavírus - AFP

As sanções econômicas impostas desde 2018 pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, têm agravado os problemas causados pelo novo coronavírus no Irã. O país do Oriente Médio é o quarto colocado no ranking de mortes em decorrência da pandemia de covid-19, atrás de Itália, China e Espanha.

Segundo o balanço mais recente, divulgado nesta quarta-feira (25), são mais de 27 mil infectados e 2.077 mil vítimas fatais em território iraniano. A contagem de casos em todo o mundo é apresentada em tempo real pela Universidade Johns Hopkins.

Trump determinou as sanções sob o pretexto de que o Irã enriquecia urânio para fabricação de bombas atômicas, acusação que até hoje não conseguiu comprovar. Desde então, itens produzidos pelos EUA ou que têm tecnologia estadunidense não podem entrar no país. Empresas que fazem trocas comerciais com o Irã também são impedidas de negociar com os Estados Unidos.

“O que é bloqueado no Irã é o acesso a tecnologias, equipamentos, sistemas de produção”, explica Vinicius Modolo Teixeira, professor de Geografia Humana na Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat). “São sanções com base nos Estados Unidos, mas elas geram um efeito em cascata e acabam afetando toda a cadeia de suprimentos no Irã”, complementa.

As sanções preveem ainda o bloqueio das contas internacionais do Irã, o que inclui não apenas transações oficiais, mas as movimentações financeiras de 250 pessoas físicas, lideranças militares e do governo iraniano no exterior. Por isso, embora a área da saúde não esteja nominalmente incluída nas sanções, a importação de remédios e equipamentos para prevenção e tratamento dos sintomas é cada vez mais difícil.

“A intenção é justamente enfraquecer, impedir que o país tenha liberdade de ação e acabe voltando à mesa de negociação com os EUA. O jogo é esse”, resume o pesquisador.

“Efeitos cruéis”

O sufocamento econômico fez com que o Irã registrasse queda de 89% na exportação de petróleo – de 2,3 bilhões para 260 mil barris por dia, entre 2017 e 2019, segundo dados divulgados pela agência Bloomberg e pela emissora BBC. Em dois anos, o Produto Interno Bruto (PIB) iraniano caiu 9,7% e a inflação ultrapassou os 30%.

Socióloga e doutora em Ciência Política, Ana Prestes lembra que os impactos se amplificam em momentos de crise, quando o país precisa importar remédios e equipamentos de saúde em maior volume.

“É uma questão de mercado. Nenhuma empresa quer arriscar, ainda mais em um momento de crise, ficar sem comércio com os EUA. Esse é o grande estrangulamento”, analisa a pesquisadora. “No Irã, o maior problema hoje é a chegada de medicamentos. E não apenas para os sintomas do coronavírus, mas de outras doenças. Porque, com uma pandemia, todo atendimento à saúde é sobrecarregado”.

 


OMS enviou kits com equipamentos de saúde ao Irã no dia 2 de março / AFP

 

Os obstáculos enfrentados pelo Irã remetem à realidade de dois países latino-americanos que também convivem com sanções. “No caso de Cuba e Venezuela, a gente usa os termos ‘embargo’ e ‘bloqueio’ porque quase não há brecha para negociação com empresas de fora. Sobre o Irã, as sanções não são tão duras porque os próprios EUA teriam impacto com um fechamento total”, acrescenta a pesquisadora. “Mas, para a população, não importa se o nome é embargo, bloqueio ou sanção. Os efeitos são sempre cruéis”, arremata.

Os cidadãos iranianos diagnosticados com coronavírus apresentam uma taxa de mortalidade quase três vezes maior que na China, país onde a pandemia se originou.

Com 83 milhões de habitantes, o Irã é a segunda maior nação do Oriente Médio e possui um dos sistemas públicos de saúde com maior cobertura entre os países asiáticos. Além das sanções, é considerado um agravante para a atual crise a demora do governo local em determinar o isolamento dos cidadãos.

Os principais analistas políticos iranianos consideram que eventos com grande concentração de pessoas deveriam ter sido suspensos. Exemplos disso seriam as comemorações do aniversário da Revolução Iraniana, em 11 de fevereiro, e as eleições parlamentares, em 21 de fevereiro. O governo alega que só teve notícia do surto após essas datas e imediatamente interditou os santuários muçulmanos de Mashhad e Qom, considerados os pontos iniciais de disseminação da doença no país.

Na semana passada, a média de mortes por covid-19 no Irã era uma a cada dez minutos. Desde a última quinta-feira (19), o número de diagnósticos reportados por dia caiu cerca de 20%. A subnotificação dos casos e a chegada de ajuda humanitária são consideradas as causas mais prováveis para essa diminuição.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou kits com milhares de máscaras e termômetros infravermelhos para o Irã no início de março. O país relatou que faltam equipamentos para diagnóstico e prevenção de doenças e até trajes adequados para os profissionais de saúde, tamanho o impacto das sanções estadunidenses.

Histórico

O Irã foi o principal aliado dos EUA no Oriente Médio por quase quatro décadas, entre 1940 e 1979. O professor Vinicius Modolo Teixeira explica que o território era estratégico no contexto da Guerra Fria, quando os Estados Unidos rivalizavam com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), extinta em 1991.

“O Irã cumpria um papel de fechamento de fronteiras na região, impedindo o avanço da URSS, e também dava aos EUA a possibilidade de espionagem”, analisa. “Além disso, eles controlavam a ‘torneira’ do petróleo, abastecendo os EUA e seus aliados na Europa. Em troca, o Irã tinha preferência ao receber armamentos”.

Em 1979, ocorreu a Revolução Iraniana, que derrubou a monarquia e transformou o país em uma república islâmica, comandada por um líder religioso – o aiatolá Khomeini. A mudança foi o gatilho para que os EUA inaugurassem uma série de sanções, em uma tentativa de desestabilização política e econômica.

“As sanções seguem determinados padrões, mas há diferenças ao longo do tempo”, observa Teixeira. “Houve um breve período, após o acordo nuclear [de 2015], por exemplo, em que equipamentos de aviação civil foram liberados. Quando os EUA saíram do acordo, a frota não havia sido renovada na totalidade, o que travou novamente o acesso do Irã à tecnologia. Hoje, alguns aviões iranianos não podem nem voar para a Europa porque faltam equipamentos de segurança que são produzidos nos EUA”, completa.

As sanções de maio de 2018 foram impostas por Trump ao anunciar a saída dos EUA de um acordo nuclear assinado por líderes de sete países em 2015. Nesse acordo, o Irã havia se comprometido a reduzir o estoque de urânio – elemento usado para geração de energia e fabricação de armamento nuclear – e o número de reatores em atividade no país, obtendo como contrapartida o fim de embargos econômicos.

Ao justificar a retirada, Trump acusou o Irã de enriquecer urânio clandestinamente, tornando-se “uma ameaça para o mundo”. A saída foi unilateral: China, França, Reino Unido, Rússia e Alemanha mantiveram os termos assinados há cinco anos por não verem provas definitivas de violação por parte do Irã.

O auge das tensões entre os dois países ocorreu em 3 de janeiro de 2020, quando o exército estadunidense matou o general Qasem Soleimani, número 2 na hierarquia do Irã e chefe da Força Quds, responsável por ações militares extraterritoriais. Cinco dias depois, em meio a promessas de “uma resposta à altura”, o Irã derrubou por engano uma aeronave ucraniana com 176 passageiros. O ataque reforçou a imagem negativa do país no exterior, corroborou a narrativa estadunidense e adiou a retaliação prometida pelo governo.

Nesse contexto, os EUA anunciaram novas sanções sobre a construção civil, mineração, metalurgia e indústria têxtil do Irã – até então, os setores diretamente afetados eram de produção de energia e transporte marítimo.

Perspectivas

Após o aumento dos casos de coronavírus em março, o ministro de Relações Exteriores do Irã, Mohamad Yavad Zarif, disse que os Estados Unidos têm “orgulho de matar iranianos” e mostra “absoluto desrespeito pela vida humana” ao manter as sanções.

A pandemia de covid-19 não altera a "política de máxima pressão" adotada pelos EUA na região. A expressão foi utilizada no início do mês pelo representante especial do governo estadunidense para o Irã, Brian Hook. Segundo ele, as sanções não impedem a entrada de ajuda humanitária.

Em 12 de março, o governo iraniano anunciou a intenção de fazer um empréstimo de US$ 5 bilhões do Fundo Monetário Internacional (FMI). “Se houver possibilidade, os Estados Unidos vão vetar, assim como fizeram com a Venezuela”, prevê a socióloga Ana Prestes. Na visão dela, Trump faz “chantagem” ao impor como condição a libertação de prisioneiros acusados de espionagem no Irã.

Impacto na geopolítica

A Rússia divulgou uma nota no último dia 17 em que se refere às sanções dos EUA como ilegais e desumanas. A China colocou profissionais de saúde à disposição do Irã e promete ajudar o governo local no processo de recuperação econômica pós-pandemia.

“A China depende de petróleo da região do Golfo e não quer desestabilização no Irã e nos países vizinhos”, acrescenta Teixeira. “Assim como a Rússia, ela cumpre um papel militar importante por meio do Pacto de Xangai, que busca pacificar e evitar conflitos na região. O Irã é um membro observador do Pacto de Xangai, então é visto como um aliado e deve receber auxílio no contexto do coronavírus”.

Os pesquisadores observam que a pandemia pode reforçar certa bipolarização no tabuleiro das relações internacionais: de um lado, Estados Unidos, Brasil, Índia e Israel; do outro, Rússia, China e Irã.

A socióloga lembra que o pré-candidato democrata às eleições nos EUA, Bernie Sanders, tem se posicionado contra as sanções ao Irã antes mesmo da pandemia. Na interpretação dela, a geopolítica mundial será impactada não só pela corrida presidencial estadunidense, mas pelos resultados obtidos por cada país no combate à doença.

“Se a China conseguir mesmo superar o coronavírus, eles vão se fortalecer muito. A Rússia também está conseguindo conter o número de casos, apesar das acusações de subnotificação. No segundo semestre de 2020, a geopolítica mundial pode ser outra, com a China ainda mais forte e o Trump enfraquecido”, conjectura Prestes.

Os Estados Unidos registram, até o momento, 65 mil casos confirmados e 926 mortes em decorrência do coronavírus.

Edição: Vivian Fernandes