O discurso de Jair Bolsonaro na noite deste 24 de março foi genocida. Não há outra maneira de descrevê-lo, genocida é a única palavra.
Pode, ainda, fazer parte do processo de articulação de um autogolpe, que já esteve muitas vezes no leque de alternativas do presidente, e que provavelmente não encontrará sustento social na burguesia como vinha encontrando até este momento.
Frente à crise capitalista já em curso há tempos e às insuficientes medidas relativas à covid-19 e a seus impactos, nunca a legitimidade de Jair Bolsonaro foi tão baixa. O que acirra as rupturas internas ao bloco no poder, que já vinham se realizando mesmo antes da semana na qual uma nova onda da crise orgânica capitalista estourou (a semana do dia 09 de março). E pode transformar o sonho de autogolpe em suicídio político.
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Ao ver sua legitimidade corroída como nunca, Bolsonaro decidiu apostar tudo e apelar à parcela mais dogmática de sua base eleitoral – e ao apoio de que goza em algumas emissoras televisivas – para construir a “narrativa” de que a pandemia não é assim tão ruim.
E de que ele estaria salvando a população da recessão econômica que se seguirá ao isolamento frente ao novo coronavírus. O presidente criticou as medidas tomadas por alguns estados e por seu próprio Ministério da Saúde, decretou seu fim imediato, defendeu a volta às aulas e afirmou uma vez mais que o avanço da pandemia seria uma criação midiática.
Ele, que no dia anterior promulgou (e voltou atrás neste item) Medida Provisória garantindo legalmente a possibilidade de não pagamento do salário das/os trabalhadoras/es formais brasileiras/os durante quatro meses, em defesa dos interesses dos patrões e sob o pretexto de defender nossos empregos.
Ele, que tem 23 casos de covid-19 confirmados em sua comitiva aos EUA e que afirma não ter contraído a doença por ser forte, e Messias. Que convocou e compareceu a uma aglomeração popular em seu apoio buscando se fortalecer perante o Congresso, em meio à pandemia e mesmo podendo estar pessoalmente infectado.
Que não sabe utilizar uma máscara de proteção. E que, negando as chances indicadas por muitos estudos científicos, afirma que, apesar de sua idade avançada, não sentiria os sintomas da covid mais que os de “uma gripezinha”, por seu (questionável) histórico de atividades físicas.
Bolsonaro não tem possibilidade concreta de se legitimar por meio de políticas desenvolvimentistas – como fez a ditadura civil-militar –, em um momento no qual a reconfiguração capitalista as inviabiliza. Encontra-se na presidência durante aquela que provavelmente será a maior recessão mundial da história, podendo acarretar um nível de destruição das forças produtivas equiparável às guerras mundiais.
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No cerne do aprofundamento de uma crise capitalista que já vinha se desdobrando, que é econômica, política, hegemônica, ambiental e dos próprios valores da modernidade e da concepção liberal, em amplo espectro (na qual deve ser inserido também o próprio desenvolvimentismo).
Está em uma encruzilhada, sem ter para onde correr.
Bolsonaro apostou. Seguiu as últimas declarações de Donald Trump, autor da formulação pseudonacionalista de que a não implementação de quarentena salva a classe trabalhadora da recessão. Lembremo-nos de que os EUA são uma potência hegemônica em crise, que não pode se dar ao luxo de perder ainda mais produtividade frente à China.
Sua crise hegemônica aparece diretamente na guerra comercial com a China, na disputa militar com a Rússia e na derrubada recente dos preços do petróleo pela Arábia Saudita. Lembremo-nos também de que um dos resultados do golpe de Estado no Brasil foi o alinhamento do país aos EUA nesta disputa hegemônica e a contribuição para o enquadramento subimperialista de toda a região latino-americana e caribenha, inclusive contribuindo com o golpe de Estado na Bolívia e com o cerco à Venezuela. (O outro resultado importante foi a aceleração da reconfiguração da acumulação capitalista no Brasil, necessária às classes dominantes interna e externamente.)
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Bolsonaro apostou. Talvez contando com a possibilidade (pouquíssimo provável) de que a curva epidemiológica da covid-19 venha a ser distinta no Brasil. Talvez contando com a subnotificação de casos e mortes, dada a ausência de testes. Talvez contando com a máquina de criação e disseminação de fakenews.
É uma aposta alta, no entanto. Alta demais para não explicitar desespero. Como esconder as mortes, se de fato se acumularem, com tantas/os cientistas afirmando ser apenas uma questão de quando e não de se? Ou o presidente é efetivamente mais terraplanista do que parecia ser, ou está contando com a possibilidade de utilizar em seu favor a articulação que se acirrará a partir de agora para destituí-lo. Está contando com a possibilidade de denunciá-la a seus seguidores e promover o autogolpe.
A avaliação da família Bolsonaro sobre sua capacidade de autogolpe pode não ser, contudo, acertada. Sua possibilidade de governar sempre esteve na força social que o sustenta, assentada na necessidade da classe dominante de cortar direitos, promover contrarreformas, reconfigurar a acumulação de maneira tão profunda que requer o neofascismo presidencial, mesmo que o Estado não assumisse ainda em totalidade uma forma neofascista.
A articulação atual contra o presidente passa pela Câmara presidida por Rodrigo Maia – que indicou a possibilidade de impeachment na última semana –, pelo Senado presidido pelo ex-aliado Davi Alcolumbre – que repudiou em nota escrita o pronunciamento do Presidente –, pela maior rede televisiva do país – que pela primeira vez optou por mostrar largamente em horário nobre o repúdio a Bolsonaro – e por diversos governadores estaduais – sejam aqueles que já constituíam oposição à esquerda do governo, sejam aqueles que têm tomado individualmente medidas para garantir isolamento ao menos parcial da população, à revelia do governo federal, muitos deles políticos de direita e ultradireita que buscam crescer no enfrentamento ao presidente, como é o caso de Wilson Witzel e de João Doria.
A capacidade de Bolsonaro para cumprir o acordo interburguês que o sustenta no governo pode estar se esgotando. Nada garante, contudo, que Bolsonaro caia. Muito menos, que caia pela esquerda. O acordão com Mourão certamente já está sendo articulado como alternativa por aqueles que, de dentro do próprio bloco no poder, o ameaçam.
A progressiva deterioração de sua legitimidade pode entretanto implicar uma possibilidade de radicalização popular, caso se manifeste em descontentamento com o desmonte do sistema de saúde público, com o fim do Ministério do Trabalho e da legislação trabalhista (que já vinham sendo realizados nos governos anteriores e se aceleraram muitíssimo com o Golpe de Estado), com a EC95 (a “PEC da Morte”) com o altíssimo nível de desemprego e com a miséria generalizada. Catalizados pelos efeitos do coronavírus e pela genocida posição declarada explicitamente.
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O discurso presidencial passou longe de medidas como o aumento de leitos; a importação de matérias-primas; a conversão industrial para a produção de respiradores, máscaras, luvas, macas, testes; a concessão de isenção fiscal e renda mínima à classe trabalhadora. O não pagamento da dívida pública. A suspensão das dívidas individuais. Estas sim, passíveis de proteger as vidas, os empregos (nos casos em que existem) e a renda de trabalhadoras e trabalhadores.
Qualquer que seja o desfecho, Bolsonaro apostou. Partiu para o tudo ou nada. E as/os trabalhadoras/es? Que morram. De covid-19, ou de fome.
* Marina Machado Gouvêa é economista, doutora em Economia Política Internacional. Professora da ESS/UFRJ. Atualmente compõe a direção da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e da Sociedade Latino-Americana e Caribenha de Economia Política e Pensamento Crítico (SEPLA).
Edição: Leandro Melito