Em tempos de coronavírus, mais importante que higienizar as mãos com álcool em gel é lavá-las com água e sabão diversas vezes ao dia. Esta é uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde para que a população consiga combater a pandemia em todo o mundo. Mas a realidade nas favelas do Rio de Janeiro está muito distante do ideal para evitar a Covid-19.
Nos últimos dias, o canal “Voz das Comunidades” chamou a atenção para a falta d’água em diversas favelas da cidade. “Tenho 74 anos, não posso carregar água e tem mais de um mês que não cai nada aqui no Escadão, criança não tem água nem para lavar as mãos, estou com medo do coronavírus”, contou Dona Jurema, moradora do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio.
Outras comunidades vivem o mesmo problema, mas ele não é novo para nenhuma delas. Morador do Morro do Borel e integrante do Coletivo Brota na Laje – Juventude de Favelas, Patrick Lome, de 24 anos, disse ao Brasil de Fato que desde que nasceu, escuta, sofre e vê os moradores passarem por diversos problemas causados pela falta d’água.
“É um problema estrutural que não é de hoje. A reclamação do morador vem seguida por uma justificativa da Cedae [Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio] e a resposta é que a gente não paga água. A gente tem uma taxa social, as favelas do Rio ficam imunes à questão tributária da água. Temos um reservatório grande com um responsável pela distribuição, a Cedae não faz essa gestão, é um serviço centralizado pelas associações de moradores das favelas”, explica Patrick.
Segundo ele, como são muitas as vielas, becos e casas que vão sendo construídas na favela, o “manobreiro”, responsável por manobrar a água para diversos lugares do morro, nem sempre consegue dar conta do complexo trabalho. “Se ele fica doente, alguns lugares vão ficar durante vários dias sem receber água”, explica Patrick, acrescentando que a Cedae não cuida do serviço de distribuição nas comunidades.
Gabinete de crise
Moradora do Alemão e membro do Coletivo Papo Reto, Renata Trajano disse ao Brasil de Fato que o problema é crônico, mas que foi agravado com a crise da Cedae, no início do ano, quando foi detectada a geosmina, tipo de alga que estava provocando alterações de cor, odor e sabor na água.
Trajano relatou que algumas áreas do Alemão estão sem água há dois dias enquanto outras não recebem água há duas semanas. “Se a água chega, é sempre com auxílio de bomba comprada pelo morador. A gente já reclamou com a Cedae, a empresa disse que está resolvendo, mas a gente já sabe que a favela é sempre a última a receber tudo e que os direitos só vêm depois de muita cobrança”.
Enquanto o abastecimento não é resolvido, o Papo Reto, além de outros coletivos e associações, realiza campanhas para conscientizar os moradores. Renata comemorou o “gabinete de crise” do Alemão e disse que ele está funcionando muito melhor que o do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“Estamos conseguindo fundos para fazer faixas, para comprar álcool em gel e distribuir, já que daqui a pouco trabalhadores e trabalhadoras autônomas não terão como sustentar suas famílias. Nosso gabinete de crise funciona melhor que o do presidente da República, estamos dando retorno às pessoas, ensinando como proceder. Queremos conscientizar as pessoas da quarentena, mas o poder público não tem ajudado, né?”, questiona.
Desabafo
No Facebook, um dos textos mais compartilhados nos últimos dias foi o do produtor cultural Julio Ludemir, morador do Morro da Babilônia, na zona sul da cidade. Ele enumerou diversos itens de combate ao coronavírus que são mais difíceis de serem implementados, mas que não são vistos com mais atenção pelas autoridades públicas.
“Desculpe, governador, que aparentemente não está sendo tão patético quanto o presidente e o prefeito, mas você não diz nada para ninguém aqui quando diz que não vai cobrar água nos próximos dois meses. O problema aqui é ter água, que jamais chega com a quantidade necessária para que lavemos as mãos com a frequência exigida pela crise sanitária, muito menos para lavarmos as roupas tão logo entremos em casa”, escreveu Ludemir, num dos trechos da publicação.
O volume de queixas nos últimos dias e a preocupação com a proliferação do vírus levaram a Defensoria Pública do Estado a criar um canal para realizar um levantamento da situação de fornecimento de água no Rio de Janeiro, sobretudo nas favelas. O órgão está pedindo a ajuda de todas as pessoas, em especial das comunicadoras e comunicadores das favelas, para apresentar os dados às autoridades e analisar possíveis medidas judiciais de emergência.
Edição: Mariana Pitasse