Rio Grande do Sul

Coronavírus

Pandemia avança no país e chega a 1.546 casos e 25 mortes

Médico gaúcho do Sistema Único de Saúde, José Beltrame Neto fala sobre a necessidade de fortalecer o SUS

Porto Alegre | BdF RS |
"Na hora da catástrofe, quem vai nos defender é o sistema de Saúde Pública" - Arquivo pessoal

Com mais 418 casos em 24 horas, número de mortos por coronavírus no Brasil chegou a 25, um aumento de 39%, segundo balanço do Ministério da Saúde neste domingo (22). No sábado (21), eram 18 óbitos. Agora o país registra, ao todo, 1546 casos confirmados. 

O Sudeste continua sendo a região mais afetada, concentrando 59,9% dos casos do país, com 926 confirmações. Do total de mortes, 22 ocorreram no estado de São Paulo e três no Rio de Janeiro. De acordo com o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson Kebler de Oliveira, todos os estados brasileiros já notificaram infecções pela covid-19. No recorte por região, além do Sudeste, os casos estão repartidos entre o Norte (49), Centro-Oeste (161), Sul (179) e Nordeste (231). Com seis novos casos positivos confirmados neste domingo, o Rio Grande do Sul tem 77 pessoas infectadas por coronavírus.

Durante a coletiva, o ministro da Saúde criticou medidas de gestores públicos pelo país que, segundo ele, vem tomando “atitudes intempestivas”, em desacordo com as necessidades dos municípios neste momento. Sem citar nomes, Luiz Henrique Mandetta disse que muitas ações tomadas com o objetivo de frear a disseminação do vírus, acabam agravando ainda mais a situação de combate ao coronavírus. “Tivemos o exemplo de alguns prefeitos que disseram: ‘vou interromper o sistema de ônibus’, abruptamente. E aí, os profissionais de Saúde que trabalham nos hospitais não conseguiram chegar”. 

Estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde (CNS) apontou que, desde a entrada em vigor da emenda constitucional (EC) 95/2016, do “teto de gastos”, o Sistema Único de Saúde (SUS) já perdeu R$ 20 bilhões. O CNS afirma que “a autoproibição orçamentária que foi criada em 2016 é um suicídio econômico, político e social”. O ministro da Saúde falou na sexta-feira (20) que final de abril o sistema entra em colapso.

Confira entrevista com o médico gaúcho do Sistema Único de Saúde, José Beltrame Neto fala sobre a necessidade de fortalecer o SUS.

Brasil de Fato RS - Nós ainda não chegamos ao ápice no estado. Nosso sistema de saúde, por conta dos cortes e o teto do congelamento irá suportar?

José Beltrame - O vírus não reconhece fronteiras, e ao invés do estado do RS temos que pensar nacionalmente. Existem projeções matemáticas que apontam para muitos milhares de mortos no país. Um dos maiores crimes contra o Brasil foi cometido pelo governo Temer após o golpe de 2016, e odiosamente endossado pelo governo Bolsonaro, que foi a PEC95, depois EC95. É a emenda constitucional que “congela” os gastos em Saúde e Educação por vinte longos anos.

Quantos milhões de pessoas a mais teremos no Brasil dentro dos próximos 20 anos? Como conseguir atendimento de Saúde para uma população que terá aumentado, e muito? Este crime só foi possível depois do golpe, quando cruzamos um limite civilizatório que jamais poderia ter sido cruzado, mas lembro que isto foi aceito alegremente pela grande maioria da categoria médica. Vai faltar dinheiro, é óbvio. E os cortes de recursos para a ciência e a pesquisa feitos pelo governo Bolsonaro vão piorar ainda mais a nossa situação.

Na hora da catástrofe, quem vai nos defender? Será a “mão invisível do mercado”, aquela entidade quase mística “que se autorregula”, ou o Estado, através do SUS? Quem vai nos defender é o sistema de Saúde Pública, são os milhares de profissionais da medicina e enfermagem que se arriscam atendendo na linha de frente, e bioquímicos e farmacêuticos e outros de áreas afins. O deus mercado e os empresários visam sempre o lucro, e não tem maiores considerações com a saúde da população, se preocupam apenas na medida em que vão perder os préstimos de um eventual funcionário doente.

BdF RS - O decreto de calamidade trará algum alívio, o que ele significa? A revogação do teto seria nesse momento uma alternativa para conter/amenizar o colapso que o ministro disse que haverá em abril?

Beltrame - O decreto é útil, mas somente se todo mundo fizer a sua parte. E aí entram em jogo fatores culturais. Em Porto Alegre as ruas estão vazias, mas amigos e parentes do Interior me dizem que em algumas cidades as pessoas até debocham dos avisos para se cuidar. Isso pode estar ocorrendo em outros estados também. E o próprio presidente, que deveria ter a grandeza de agir como estadista em momento tão delicado, está dando péssimos exemplos. Um jornalista disse na TV portuguesa: “Pediram aos nossos avós que lutassem na Segunda Guerra Mundial. A vocês só estamos pedindo que fiquem em casa. Mais fácil, não?” Mas temos muita gente que não entendeu ainda a gravidade da situação.

BdF RS - Qual a situação da saúde em Porto Alegre? E os trabalhadores da saúde, estão preparados para enfrentar essa pandemia? 

Beltrame - A crise está apenas começando, e no pior cenário pode acabar sendo pior que na Itália. Aqui também houve demora das autoridades para iniciar as medidas preventivas, como fechamento de escolas e restrição da movimentação. Os trabalhadores da área da Saúde estão prontos para enfrentar com dedicação esta crise, mas pode haver falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para todos. E teremos médicos e enfermeiros doentes, também. Na Itália estão chamando até profissionais aposentados para voltar ao trabalho e ajudar. E pode chegar o momento em que médicos e profissionais da enfermagem sem nenhuma experiência com pacientes críticos tenham que atuar em casos graves.

BdF RS - Estão sendo espalhadas muitas fakenews sobre possíveis curas. Segundo a OMS, ainda não há cura e não há um tratamento medicamentoso definido. Mas, segundo o infectologista Anastácio Queiroz, existe a chamada "cura espontânea", que ocorre quando o corpo reage à infecção. Qual sua avaliação?

Beltrame - Para doenças virais pode-se dizer que a cura é sempre espontânea. Antibióticos não agem contra vírus, chás não ajudam, vitaminas não ajudam. Ainda não há nada específico para o coronavírus, nem vacina nem remédio. O organismo e seu sistema imunológico, aliados a hidratação adequada, repouso e tratamento dos sintomas como febre ou dor no corpo é o que funciona. Para casos mais graves, internação. 

Como prevenção o mais importante é a lavagem das mãos. Álcool gel também ajuda, mas a lavagem frequente é mais útil. E evitar tocar no rosto, olhos ou boca. É essencial se afastar de outras pessoas, porque não sabemos quem está contaminado ou não. E precisamos proteger os outros, porque aí não sabemos se nós mesmos estaremos contaminados. Então, tossir ou espirrar tapando o rosto com a dobra interna do cotovelo, não com a mão. O uso de máscara cirúrgica só é necessário para quem está doente ou suspeito, com sintomas. Não tem utilidade para as outras pessoas, e pode dar uma falsa sensação de segurança. A máscara deve ser substituída sempre que ficar úmida. Já os profissionais de Saúde devem usar outro tipo de máscara, a N-95.

Quem tiver sintomas leves não deve ir ao hospital, porque pode acabar se contaminando na própria sala de espera, com o sujeito sentado ao lado. Só se deve ir ao hospital se houver dificuldade de respirar, ou sensação de falta de ar. Pessoas sem sintomas não devem fazer nenhum teste, deixemos isto para quem realmente precisa.


"Ao ler uma 'notícia' as pessoas deveriam verificar a fonte, e usar um pouco de senso crítico" / Arquivo pessoal

BdF RS - Me parece que para uma parcela da população a situação ainda não é grave, algumas por não estarem no grupo de “risco”. Sabemos que na Espanha jovens morreram por conta do vírus. E que crianças podem ser portadoras sem apresentar os sintomas. As campanhas de conscientização estão sendo ineficazes? O excesso de informação ajuda ou atrapalha? 

Beltrame - Informação correta ajuda, sempre. O problema são as notícias falsas, as besteiras que até pessoas bem intencionadas passam adiante sem perceber que aquilo não tem fundamento. Por exemplo, tem se falado muito na Hidroxicloroquina, um medicamento usado para tratar lúpus e outras doenças autoimunes. Surgiu um estudo que parece promissor, mas isso ainda é hipotético, é preciso mais tempo e mais estudos para haver confirmação. Pois foi só isso cair na rede, de forma distorcida, para haver uma corrida às farmácias de gente que nem está doente e não deveria nem cogitar usar isto, e o resultado é que pode faltar medicação para quem realmente precisa. Seria bom que as pessoas que não podem ajudar pelo menos se conformassem em não atrapalhar. Ao ler uma “notícia” as pessoas deveriam verificar a fonte, e usar um pouco de senso crítico. Mas como esperar senso crítico de gente que acreditou na “mamadeira de piroca” e no “kit gay”?

Sobre estar ou não no grupo de risco, destaque-se que há sim mortes de jovens, e são sempre chocantes, mas são em número muito pequeno em termos epidemiológicos, quando se pensa numa grande população. E não só as crianças, mas todos nós poderemos ser portadores sem nem sequer adoecer. A grande maioria dos que vão ter sintomas terão algo parecido com uma gripe. O grande problema é que os casos graves, quando explodirem, podem impactar no sistema de Saúde a ponto de causar o caos. Por isso é preciso tentar “lentificar” a progressão com o isolamento social. Já as campanhas de conscientização estão deixando muito a desejar. O que há de útil vem da própria imprensa, ou de médicos que, provocados, se manifestam. E isto é muito pouco.

BdF RS - O que você diria para a grande maioria da população que não tem condições de cumprir com as medidas gerais, pois em muitas vilas nem água tem. E a situação dos moradores de rua? 

Beltrame - Se eu acreditasse em orações, diria: “rezem.” Para as pessoas em situação de rua chega a ser cruel dizer “fique em casa”. Que casa? A calçada? A sarjeta? Lembremos que em Porto Alegre há mais de 4.000 pessoas nessa situação. E em algumas comunidades onde não há fornecimento regular de água, por vezes nem para o banho, como pedir a essas pessoas que lavem as mãos com frequência? O vírus não escolhe classe social, mas é óbvio que, como sempre, os pobres vão sofrer mais. Pode haver algo equivalente a um massacre. E não parece haver algum esforço coordenado do governo federal, e nem dos governos do PSDB de Eduardo Leite no estado e de Nelson Marchezan Jr. na prefeitura que seja voltado para estas populações. Aliás, a administração do PSDB na prefeitura de Porto Alegre é uma vergonha, um fracasso total no que se trata de Assistência Social. O que fizeram nesse período foi destruir o que havia de bom. O símbolo desta administração poderia ser a infame declaração da tal comandante Nádia, dizendo que os moradores de rua “atrapalham o passeio dos pets”.

BdF RS - E qual a importância do isolamento social para a prevenção? 

Beltrame - O motivo de pedir que as pessoas fiquem em casa é diminuir a velocidade do contágio, para que a progressão seja mais lenta. Se muita gente ao mesmo tempo tiver as formas graves da doença, os recursos do sistema de Saúde vão se esgotar. As vagas em CTI, que já são escassas, poderão ser impossíveis de obter, e o sistema todo pode entrar em colapso, como aconteceu na Itália. E se todas as vagas em CTI estiverem ocupadas para os casos graves do covid-19, onde colocaremos as pessoas que precisam de tratamento intensivo por outras causas, como pacientes infartados ou politraumatizados? No caso de colapso do sistema, o indivíduo pode ter dinheiro, pode ter até uma ordem judicial, mas não vai ter como ser internado.

Já sabemos o que funcionou bem e o que deu errado em outros países, e poderíamos errar menos tomando as decisões corretas, mas podemos esperar decisões corretas e racionais de um governo que prima pela indigência intelectual, de um governo que inclui terraplanistas, e cujo ministro do Meio Ambiente diz que o aquecimento global não existe, que seria “um complô dos comunistas”? Dá pra ter esperança quando o governo tem um ministro da Educação que não sabe escrever no português mais básico? O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem tido uma atuação séria, mas o que diz é logo desmentido pela fanfarronice do presidente, que faz tudo ao contrário do que é preconizado.

BdF RS - Podemos fazer uma estimativa do retorno à vida normal?

Beltrame - Do ponto de vista estritamente sanitário há estimativas de que o quadro todo pode durar de 4 a 6 meses. Mas a vida, em termos mais amplos, retornará ao normal? Haverá imenso prejuízo à economia. Muitos pequenos negócios vão quebrar, muitas pessoas vão ficar desempregadas. Teremos condições de retomar atividades como se nada tivesse acontecido? Nesse aspecto as previsões são impossíveis de fazer, e não há como ser muito otimista.

Mas essa crise também pode ter um aspecto educativo, se quisermos ter uma visão esperançosa. Os adoradores do “Estado mínimo” agora imploram por ajuda do Estado, os terraplanistas agora imploram por vacinas e tratamentos, que só podem vir da ciência e dos cientistas que sempre labutam no setor público. O progresso a qualquer custo, passando por cima de questões ambientais e atropelando considerações éticas já deveria estar sendo revisto e substituído por novos paradigmas. Aprenderemos algo? Não é o que costuma acontecer na história do mundo, comumente as gerações não aprendem nada com os erros dos antecessores, mas veremos.  

* Com informações da Redação do BdF SP

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Edição: Marcelo Ferreira