A Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou portaria em que deixa na mão de coordenadores regionais, quase todos nomeados politicamente, a decisão sobre fazer ou não contato com povos indígenas isolados ou de recente contato.
O ato, publicado pelo presidente da fundação, Marcelo Augusto Xavier da Silva, na terça-feira (17), usa como justificativa a pandemia do novo coronavírus.
A portaria suspende o trabalho de técnicos da Funai que lidam especificamente com isolados e passa às Coordenações Regionais (CR) a atribuição de avaliar a entrada nos povos, “caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado”.
A decisão fere o próprio regimento interno da Funai, que determina que os contatos devem obrigatoriamente ser feitos por servidores da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGiirc), e não pelas coordenações regionais.
Os servidores da CGiirc são capacitados tecnicamente para romper o isolamento de indígenas apenas em casos de extrema exceção, ainda assim levando em consideração a fragilidade dessas populações a doenças transmitidas por não indígenas (não só a covid-19) e, principalmente, a preservação das raízes etnoculturais.
“É incompetente, do ponto de vista do entendimento do regimento interno da própria Funai, de dar à CR [coordenação regional], que tem competência e atribuições para fazer uma série de outros tratamentos em relação à promoção de direito dos povos indígenas do país, mas não têm conhecimento técnico para trabalhar com a questão de povos indígenas isolados. Quem tem isso são as frentes de proteção etnoambientais. Isso está no regimento interno da Funai. Essa portaria ignora isso”, afirma Leonardo Lenin, ex-coordenador da CGiirc e membro do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato (OPI).
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Hoje, no Brasil, existem 11 frentes de proteção a isolados ligadas à CGiirc. O país segue há décadas a política de proteção dos povos isolados, baseada em tratados internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da (ONU, 1948) e a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (ONU, 1989).
A portaria, segundo Lenin, rompe com os tratados. “Essa portaria está falando o quê, quando você olha? As ações de contato estão virando o fim, não a exceção. Esse é o grande problema. Ela é colocada, dentro da portaria, não como uma situação extrema, mas como se fosse uma ação corriqueira fazer contato. Não é”, garante.
O ex-coordenador de isolados afirma que o enfraquecimento da área dentro da Funai tem sido constante desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo – a começar pela nomeação do pastor evangélico e antropólogo Ricardo Lopes Dias para assumir a coordenação, em fevereiro deste ano. “É total falta de conhecimento da máquina pública, do regimento interno, onde esses caras vieram coordenar. Eles vieram ser gestores dessa política e eles desconhecem ela”, critica.
“Por que você não empodera, não dá condições maiores das frentes de proteção, através das suas bases de campo, fazerem suas atividades cotidianas de proteção territorial e provocar, junto com a Sesai, os levantamentos para se fazer os planos de contingência? Não seria esse o encaminhamento mais correto?”, sugere Lenin.
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A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) destacou, em nota, "a ausência de vontade política do atual governo em elaborar um Plano de Contingência para Surtos e Epidemias, considerando as especificidades dos nossos povos, o seu modo de vida comunitário, que pode facilitar a programação rápida do Coronavírus".
Segundo a entidade, a portaria precisa ser revogada, pois traz mais risco à integridade dos povos isolados e de recente contato. "A decisão só pode ser justificada em razão de interesses não explicitados, já denunciados em outras oportunidades pela nossa organização."
Reações
A publicação da portaria também provocou reações de diversos órgãos ligados aos direitos humanos. A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), por exemplo, enviou recomendação à Funai para que a atribuição dos contatos às CRs seja revogada.
Na recomendação, o MPF lembra que as CRs “não têm entre suas atribuições a competência para executar ações de contato e pós contato, nem dispõem, no seu quadro de pessoal, de servidores com capacitação específica para lidar com as especificidades das políticas voltadas aos povos isolados e de recente contato, especialmente em situação de crise epidemiológica”.
A Funai tem cinco dias para responder se acata ou não a recomendação. Caso descumpra o prazo, a tendência é que o MPF entre com ação para revogar judicialmente a portaria.
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados foi outra a manifestar-se contrária à portaria. Em nota, o presidente da comissão, Helder Salomão, afirmou que a prevenção da pandemia não pode ser usada como contexto para a fragilização de normas da Funai.
Para ele, a portaria é editada “no contexto de uma série de investidas do Governo Federal e do próprio Presidente da República a fim de facilitar empreendimentos econômicos, particularmente a mineração, nas terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas”.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos do governo federal, foi outro órgão a criticar a resolução. No mesmo tom que o MPF, foi recomendado à Funai que se revogue o artigo que trata das medidas contra o coronavírus.
O presidente do CNDH, Renan Vinícius Sotto Mayor de Oliveira, ressalta que as consequências podem ser irreversíveis em caso de manutenção da portaria.
“É uma decisão ultra técnica [sobre os contatos], não é uma decisão simples. Na maior parte das políticas públicas, a gente pode: 'Não, o gestor público errou, vamos consertar'. Em relação aos indígenas isolados, não há essa possibilidade. Uma ação ou uma inação – quando às vezes tem que intervir e não intervém, ou quando não tem que interver e intervém – pode ocasionar a morte ou um etnocídio de etnias que, de repente, a gente não vai mais conhecer”, diz Sotto Mayor.
Ele afirma ver como “muita preocupação” a ação da Funai. “A gente está num momento de crise e a última coisa que eu esperava debater era isso – uma ação da Funai contra o regimento interno deles, colocando em risco a política dos isolados. A gente vê com muita preocupação”.
Segundo o presidente do CNDH, a omissão do coordenador da CGiirc em relação à portaria – até o momento, ele não se manifestou publicamente – causa preocupação. “A omissão do coordenador é muito preocupante, a omissão em reafirmar a competência da CGiirc para a questão dos isolados”.
Edição: Rodrigo Chagas